Os Condenados: segundo trecho da trilogia de Oswald

“O cáften vinha, risonho, pálido das noitadas. Ela dava-lhe tudo: a vida, a lama, os beijos e o dinheiro à beça”

140530_ Kees van Dongen (1877-1968)

.

“O cáften vinha, risonho, pálido das noitadas. Ela dava-lhe tudo – a vida e a lama: os beijos e o dinheiro à beça”

Por  Oswald de Andrade | Imagem: Kees van Dongen (1877-1968)140601-SeloOswald

MAIS:

Outras Palavras” publica, em capítulos, a trilogia “Os Condenados”, que Oswald de Andrade escreveu entre 1922 e 1934. O primeiro capítulo – que contém o início do romance “Alma” pode ser lido aqui. Uma crítica do romance, por Mário da Silva Brito, pode ser encontrada aqui.

Na sequência anterior, nos braços de Mauro, Alma descobre-se mulher. João, o telegrafista, louco de paixão pela jovem, fica sabendo que ela tem outro amor. Mauro exige que Alma fuja da casa do avô. Decidiram nervosamente: deixava tudo para trás. O abandono faz o velho pensar: onde estaria ela? Parecia que tinha morrido gente em casa. Lobão vinha dizer ao telegrafista, brutal e guloso de desastres, sem contemplação, sem piedade: Alma tinha sido deflorada num “rendez-vous”. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60”)

___

Por que não agira? Por que não soubera enfrentar tudo, arrancá-la do outro e do avô? Por quê?

Vieram os dias da desgraçada pesquisa do seu insolúvel inferno. Uma emoção bárbara tomou-o. As tardes foram horríveis, as noites horrendas, as madrugadas lúgubres.

Até o dia em que soube, pela vizinhança alarmada e risonha, que Alma voltara para a companhia do velho. E que passara a sair todos os dias, bem trajada, com um sujeito recurvo e galhardo, que a esperava na esquina.

*-*-*-*-*

O Dr. Carlos Ribeiro não quisera envolver-se no caso: havia abandonado a política municipal. O capitão Marcellino não recebera o velho, na sua grande chácara quieta. O Mascarenhas tinha morrido.

Ele passou uma semana inteira sem banho. O moleque pulava o portão, desaparecia longas horas. A cozinheira servia-lhe o almoço e o jantar, insistindo para que ele comesse.

Vestia-se para sair, para providenciar.

O cãozinho conversava com ele aos latidos longos, expressivos, num abanar de cauda que lhe indicava corajosos caminhos.

E nessa manhã de maio, Alma aparecera no bairro, com o rosto borrado de um soco. Vinha num vestido novo e claro, de seda, sob um desconhecido chapéu. O moleque correu a avisá-lo. Ele quis esperá-la no quarto, no grande paletó azul, para estender-lhe o descarnado braço cheio de anátemas, quando ela soluçasse de joelhos.

Alma não vinha.

Um longo soluço envolveu-lhe o peito magro.

Desceu precipitadamente as escadas, para abraçá-la no portão. Ela ia entrando.

Na penumbra do velho lar, não estava nada mudado. Apareceram em silêncio, pelo corredor, o moleque e a cozinheira. O velho perguntou-lhe se tinha fome. Ela ficou chorando num pequenino lenço, precioso e perfumado.

*-*-*-*-*

Afastaram-se do bulício cruel do bairro que comentava.

Estavam desolados e mudos. A paisagem, renascida do outono, invadia de ouro e azul a casa morna.

O Velho Lucas, sentado ao leito guinchante, ouvia-a repetir as histórias do homem adunco.

E as manhãs foram as mesmas de outrora, acordadas pelo apitar longo e sucessivo das fábricas do bairro.

O diabo sátiro contara que era casado em Buenos Aires e esperava o divórcio para legitimar aquela situação.

O velho, num desvairo, proibira-a de sair. Mas o homem forte e furioso começou a cercar a casa quieta.

O ancião fez a retirada heróica para a sombra do seu quarto.

*-*-*-*-*

Deus dissera, pela boca do profeta Jeremias, como cantava a Verônica nas procissões: Attendite el videte si est dolor similis sicut dolor meus.

*-*-*-*-*

O homem barbudo e simples que, no dia 15, veio trazer o aluguel das duas casinhas da Lapa, não aprovou aquele estado de coisa.

O velho expandira-se muito tempo com ele no jardim.

*-*-*-*-*

Tudo isso acontece porque a gente é pobre. Se o velho não fosse pobre, a polícia o defenderia com os amigos alvoroçados e os soldados luzidos, cheios de botões.

*-*-*-*-*

Frederico Carlos Lobão tornara-se o companheiro eleito das horas magoadas de João do Carmo. Num desperdício verborréico de análise, comentava as mulheres.

Atravessava noites ao lado do outro, mudo soterrado do amor. E lá iam aos passos, num contraste. Lobão gesticulava gordo pelas ruas e praças, onde o vento do outono abatia rajadas de folhas amarelas. João era todo ouvidos abertos.

*-*-*-*-*

– Eu incorporei a minha portuguesa à massa das Evas pérfidas. Você precisa fazer o mesmo! Coragem!

Desceram até a Ponte Grande na tarde quieta. João do Carmo deixara de nadar, abandonara para sempre as madrugadas de remo na neblina. Os seus músculos decresciam. Pedira demissão do cargo de segundo secretário do clube.

Penetraram no jardim arborizado.

O sol tombante acendera os seus fogos dentro d’água. Nadadores saíam com corpos perfeitos, de animais, da toalha negra do rio. Recolhiam-se barcos esguios. No céu houve um desperdício de colorido longínquo por trás da Floresta. Depois uma última rubescência morreu e a primeira estrela, muito alta, luziu.

E tudo engrandeceu, tristezas e águas, na noite que chegava.

*-*-*-*-*

No escuro inutilmente místico, entre êxtases, braços abertos, iluminações, resplendores e mágoas de patriarcas, o Senhor Jesus da capa roxa, amarrado pelos pulsos, tinha a coroa de espinhos burlescamente de banda, como na noite de Caifás, em Jerusalém.

Em sua frente, o velho Lucas, sob o desfiado algodão dos cabelos, encolhido e magro no leito guinchante, escutava passar nas horas imensas uma procissão de enterro sem música.

E, no outro quarto, Alma, com um relogiozinho de pulso que ganhara, sentia que a vida era uma cavalgada de faunos pela terra.

*-*-*-*-*

Mauro recolhia todo o dinheiro arranjado em casa de D. Rosaura. Ela não ficava com coisa nenhuma.

Era uma luta estabelecida, clara, com surtidas e embates, recuos e rendições, entre o cáften branco e a covardia rica da cidade. Eles iam todos, os vadios da sociedade chique, os velhos vermelhos do São Paulo Clube, os arrivistas comerciais, levados na volúpia de possuir num leito rendado de casa suspeita, a desvirginada do bairro distante, cuja inocência a senilidade trêmula e ingênua do velho avô garantia. Era um caso raro: uma menina de família brasileira, educada para as devotações burguesas dos lares obscuros, e que rolava num esbandalhamento de gritos e surpresas, pela rampa mirífica das prostituições sensacionais.

Os poucos que a haviam conhecido nos bons tempos, quando o avô Lucas, depois de fechar a sua casa de louças, fora cinco anos gerente de uma grande firma, na Ladeira João Alfredo, punham um requinte que os suspendia nas trêmulas escoras sexuais, gastas pelas vidas de regulado deboche, em ter ali, no quarto de penumbra medida, consigo, no leito, as recordações honestas da família impoluta, que a vida estatelara de costas no colchão dos vencidos.

Não era ela – o corpo imperfeito de adolescente, o rosto mártir sob o capacete desfiado dos cabelos fulvos, e a inexpressiva sexualidade dos vinte anos. Não: era o caso, a neta do velho, a prima do escultor que estudava em Roma, a criança sem defesa que punha um pudor doido de punhos convulsos no ato nefando, para gozo maior e volúpia mais cega dos impotentes do amor.

Era um estupro diário, um desvirginamento de todas as horas, o sacrifício diabólico dum retrátil hímen psíquico que resistia à onda impura, criava barreiras divinas à bárbara devastação e apenas amava, amava, amava o seu algoz inflexível.

Mauro oferecia-lhes o defloramento sem complicações, sem consequências, a bom preço, longe da escalada noturna às pazes tutelares de onde ele a tirara num longo soluço de iniciações.

Passado o primeiro mês de sufocação idiota entre braços alheios, Alma, no entanto, se repusera, se afirmara. Era uma fera enjaulada, na casa esquisita onde a vendiam.

Muda, sem seduções a não ser a da sua mocidade banhada de sol e a da sua tristeza banhada de lua, incapaz de agrados e de falsificações, esperava a hora do leito como um doente que esperasse a hora inadiável da morte.

O homem moreno e flácido, de bigodes bem tratados, sorria depois da gelada posse, dando-lhe a nota brilhante.

– Cuide de si. Não entregue a ele tudo que ganha!

Aquele interesse fazia-lhe subir um asco seco à garganta. Olhava o interlocutor com vontade de cuspir-lhe no rosto cínico todas as cobras que a faziam engolir. Ele vestia-se sem pensar na filhinha de dez anos que se fantasiara de Camponesa da Holanda para o último baile do Internacional. Ia contar ao clube ávido que possuíra a menina ruiva, comentar-lhe os seios redondos e brancos que apenas entrevira sob a camiseta pudica.

Ela ficava à espera de outro, entre as demais asiladas, quieta, tétrica, na sua juventude dourada.

O cáften vinha, risonho, pálido das noitadas. Ela dava-lhe tudo – a vida e a lama: os beijos que eram seus, que guardara só para ele, inviolados aos lábios de acaso que a tinham sufocado, e o dinheiro, o dinheiro à beça que lhe punha uma auréola de super-humanidade entre os seus irmãos aduncos de seita:

– És um felizardo! És um felizardo!

*-*-*-*-*

Nos dias mornos da casa suspeita, entre reposteiros, Alma perdia-se às vezes em pensar no que fariam a essas horas no sobrado antigo, o avô desonrado e o moleque e o cão. O velho Lucas não saía mais, tinha uma vergonha infantil dos vizinhos maldizentes. Uma tarde, ele chorou. Perguntou-lhe uma mulher compassiva a razão daquelas lágrimas.

– Elas vêm. É preciso pô-las para fora.

*-*-*-*-*

O contato diário com o nauseabundo tipo de calva integral no sorriso, no couro, na alma e na vida – o repulsivo gozador morto das migalhas da existência e das sobras do amor, o burguês do dinheiro,

sem educação e sem vergonha, posto de balandrau na cômica procissão trágica dos gozos da terra, foi formando em Alma um desvio de dolorido cinismo. Pensavam que ela era como as outras e talvez tivessem razão. No entanto, às impenetráveis reservas da sua candura, subiam às vezes faíscas doidas.

Aquele dia, entrara na casa, posando desde a porta um olho clínico de entendedor, um médico de crânio chato que parecia apertar chatos pensamentos.

Apresentaram-na numa apresentação humilhante – a única a que ela tinha direito. E ele disse:

– Conheço-a de fama.

Ela ficou ofegante no seu canto. Era conhecida de fama… O velho Lucas, o cão, o moleque, o telegrafista, todos morreriam de síncope, um atrás do outro, se ouvissem.

O homem sentou-se numa segurança de bonzo que adivinha tronos por todas as banquetas onde se pagam bebidas. Fez vir chartreuse, fez vir benedictine, fez vir pippermint.

Ela era forçada a servir-se com as outras, em redor do senhor momentâneo do ambiente. Aceitou sem gestos o cálice cor-de-losna e provou.

E a mulher gorda, em quem a presença do freguês excelente acendera, entre rugas, os olhos avaros, pôs-se a repetir o elogio, gravado na sua pobre cabeça de quarenta anos daquela vida bêbeda.

– É de fazer inveja!

– Por que? – sorriu com dois dentes na boca trevosa o amarelo calvo.

– Porque todos a querem.

– Eu não faço questão.

Examinava-a.

Oh! as humilhações da vida, as humilhações que precipitam em vontades de chorar a circulação já doente do ser convulso e magoado. Ela sabia que não valia nada, sabia por Mauro. Mas aquele homem também não valia nada, era um nojento bem vestido, como um cadáver.

O calvo analisava-a. Disse duas pilhérias grosseiras. As mulheres riram atenciosas. Levantou-se. Concentrara o seu exame parvo na figura ruiva, de cabeça baixada. Não teve a última coragem, a de dizer alto que a queria. Saiu para a saleta. E daí a pouco, D. Rosaura voltava para buscá-la.

– Não vou.

Houve uma estupefação na sala das vendidas. A discussão em voz alta cresceu. Numa indignação surpresa, a caftina saiu e voltou.

– Dá até quinhentos mil-réis.

– Não vou!

E nessa noite, na Luz, Mauro ressurgiu para atirar-lhe ao rosto, com toda a sua raiva de cocaína, um sapato americano, depois de a ter garganteado nos lençóis.

*-*-*-*-*

O avô conduziu-a machucada e lívida até junto do oratório extático.

E ela pôs-se a pensar em Mauro: como ele era lindo, como tinha razão contra os outros!

*-*-*-*-*

Na sua garçonnière de cretone búlgaro, o médico de calva chata comentava com gente de sua classe bem posta.

– Quem a vendeu foi o avô. Tive-a ontem depois de muita fita. Agora o velho e o outro repartem os lucros.

*-*-*-*-*

Plou! Plou! Um pedaço de pau na torrente da vida.

*-*-*-*-*

João do Carmo conhecia quase toda a verdade. E viera-lhe, num acesso de lancinante despeito, a decisão de possuí-la sem amor. Ser Don Juan por desastre sentimental era a sua escusa, o seu programa.

Pôs-se a provocar encontros com Alma, na volta habitual da cidade. Ela tivera um arrepio íntimo, ao vê-lo pela primeira vez. Voltara o rosto bruscamente, instintivamente, fugindo à fulminação daqueles pobres olhos traídos.

Ele saudara-a com a velha palheta, amarela das garoas, num sorriso onde ia todo o seu esfacelamento.

Regressara sobre os próprios passos para vê-la entrar: queria que ela o pressentisse ainda, o cumprimentasse ainda.

Mas Alma fugia como uma ave baleada. Bateu o portão, entrou.

Em cima, no balcão de jasmins, nem sinal de vida.

João esperou anoitecer, rondando para cá e para lá… Achava absurdo que ela tivesse passado incólume pela sua sugestão amorosa e constante.

Na rua, claudicou longamente, com moleques atrás, uma carroça de reclamo de circo.

*-*-*-*-*

Abordou-a afinal. E tateando a enovelada tragédia, como quem teme uma explosão sufocante, falou vagamente da verdade.

Ela se mantinha numa atitude de reserva e dissimulação, recostada, muito fulva, rescendendo a Yvonette, nas velhas grades do jardim. Parecia ter o rosto martirizado e maior.

Desviara-se, por uma convenção piedosa de ambos, a vida do asilo de D. Rosaura. Ela parecia sensibilizada. Pusera-se a sonhar.

E, no íntimo do telegrafista, cresceu de súbito uma mágoa profunda contra aquele portão, em que o outro a seduzira. Disse mal, hiperbolicamente, dos varais, onde a pintura se chagara em longos anos. Passou a insultar a sombra dos canteiros mal cuidados. Alma reagiu espicaçada.

– Foi aqui que conheci a minha desgraça e o meu amor.

João correu ávido ao encontro do próprio sacrifício horrendo.

– Estavas pensando nele?

– Estava…

– É verdade?

– É verdade.

Foram chicotadas de aço na noite.

*-*-*-*-*

Um moço bem vestido, com um monóculo arregalado na pupila direita, apertou a campainha do rendez-vous. Seriam dez horas da noite.

Uma mulher, de cabelos curtos e loiros, veio abrir e desapareceu para o interior, numa corrida de louca alegre.

Na sala encerada e escura, onde ao piano tangava um rapaz curvo, um sujeito, afundado na cadeira de couro do canto, sorria por debaixo dos bigodes. Ladeavam-no, muito perfiladas em outras cadeiras, uma inglesa que era professora de bailados e uma chilena grávida de sete meses.

A mulher de cabelos curtos e loiros fez sentar o rapaz de monóculo, disse-lhe num tropel que D. Rosaura estava ocupada, que quem mandava aquela noite era ela e que havia outras lá dentro.

– Você sabe, a Pippermint está aí!

Num afobamento de dona de casa, tirou a jaqueta azul, fez servir whisky por um garçon grave. Da blusa saía-lhe, sob a oxigenada cabeleira, o pescoço alvo e curto. O rapaz enlaçou-a e beijou-lhe a pele branca e quente. Ela enervou-se: estava tomando conta da casa, não queria saber de ninguém. E foi para dentro aos pulos.

Ao som indisciplinado do piano, onde a chilena grávida se sentara, o rapaz curvo e a professora inglesa dançaram. A loirita voltou trazendo uma mulher estática com olhos parados, numa toilette pisada.

O piano claudicou.

Era a Pippermint, que tivera uma tragédia longínqua e andava bêbeda pelas ruas e praças. O Bentinho da Bolsa de Mercadorias amava-a dedicadamente.

A alcoólica espectral parou. Da garganta saíam-lhe sons inapreciáveis. Perguntava quem a tinha chamado. A mulher loira sentou-a como um bonzo magro. Repetiram-se as bebidas.

O rapaz curvo voltou ao piano.

Uma fulva criança de vinte anos veio vindo lá de dentro com um velhote. Parecia tonta. Ensaiou no meio da sala alguns passos esbeltos, à tarantela que ressoava. Ria-se numa desigualdade de tons, roçando pelo velho o corpo juvenil e mostrando a perfeição dos dentes. A chilena grávida, na sua poltrona, esbodegava-se de alegria expansiva. A inglesa torcia de riso o corpo franzino.

Convencido, surdo à algazarra, o pianista continuava, de costas, a sonora melodia napolitana.

*-*-*-*-*

A menina de vinte anos, que tinha o estranho nome de Alma, centralizava as atenções, fazia momices ao músico, jogava as pernas para o alto. O rapaz de monóculo, que se levantara, passou a boca duas vezes pelos cabelos desgrenhados e cor-de-labareda.

O homem, afundado na cadeira de couro do canto, deixara de sorrir por debaixo dos bigodes e espatifou de repente um copo no soalho. A bulha cresceu.

O rapaz perdeu o monóculo. A professora inglesa gritava para a bailarina improvisada que executasse a Dança das Horas. Bateram palmas. O velho quis intervir. O rapaz, que perdera o monóculo, investiu para atracar-se com ele. Houve um tumulto. O piano parou. Mas um coro de adesões desencontradas e bêbedas estrugiu, convenceu:

– Dança! Dança!

O moço zangado desfez a tromba: compreendeu que estavam todos alegres. Só a Pippermint se conservava séria, de olhos fixos, imóvel na sua cadeira. O velho foi sentar-se rindo.

O rapaz curvo anunciou que ia tocar a Salomé, aos berros; voltou de novo as costas; começou uma escala no teclado.

Esganando-se de gozo da vida, o velho disse que era São João.

Então, ante a alegria tocada de fúria sensual da disparatada assembleia, com grandes risadas de abandono, as faces em tijolo, os verdes olhos mortiços, Alma dançou a versão lasciva de Oscar Wilde.

*-*-*-*-*

A vizinha redonda da frente que costurava com as filhas e tinha, em letras pretas, um cartaz na janela: Faz-se point à jour e trou-trou, chamou-a no começo caricioso da noite e perguntou-lhe se não precisava de um manteau e de um renard.

*-*-*-*-*

Num divã, Alma suplicava ao lado de Mauro. Ele permanecia impassível, fumando.

– Que bom ter um filhinho, um filhinho teu! Deixa-o viver…

– Tens certeza de que é meu?

– De quem pode ser?

Erguera-se muito séria; deitou de novo a cabeça e ficou quieta.

– Não custa nada, disse ele. Conheço uma italiana que faz isso.

– Não quero, não quero, Mauro.

– Mas eu quero.

Houve um silêncio.

– Eu morro disso – murmurou Alma num pressentimento.

E Mauro disse:

– Se morresse!

*-*-*-*-*

Mauro deu-lhe a mão, fê-la levantar-se, depois de um instante. No leito, ficaram coágulos quase negros de sangue.

Encostada a ele, Alma saiu cambaleante e sorrindo. Tinha um medo enorme de que o avô soubesse.

*-*-*-*-*

Quase morrera. Passou uma semana trágica num quarto de D. Rosaura, que a tratou.

As outras foram visitá-la. Contavam-lhe as vidas iguais e os amores iguais. Todas tinham um homem adunco que as espancava e lhes tirava o dinheiro precioso. E falando de Mauro, todas lhe diziam, encordoando os pulsos raquíticos:

– Se fosse comigo!

*-*-*-*-*

O velho avô permaneceu dias e noites na fogueira acesa dos seus nervos. Fungava no leito, pensando na desaparecida.

O cão, sobre o tapete desfiado, sonambulava antigas caçadas de ratos.

*-*-*-*-*

O quarto escuro iluminou-se daquele sorriso, a casa torva também, a cidade crepuscular também, o ergástulo do mundo também.

Sozinha, sentindo os seios doloridos, ela apertara um biquinho duro e vira, num assombro, despontar do imperceptível manancial uma gota branca de maternidade.

*-*-*-*-*

Sentindo-se melhor saiu chorando, na madrugada. Tomou um táxi chorando, foi para casa chorando. O chauffeur tinha uma cara redonda e branca. A cidade neblinava indiferentemente.

*-*-*-*-*

Camila Maia, uma perdida elegante, veio visitá-la, com o seu pequeno sorriso, na Rua dos Clérigos. O velho Lucas não disse nada, deitado no leito guinchante.

Numa sentida raiva, lembrava o Amazonas, onde vivera, e os sobrinhos que tinham querido Alma em pequenina e depois o haviam abandonado. Antero d’Alvelos, fazendeiro rico em Iacanga, havia de pagar, depois da morte, tamanha desgraça.

*-*-*-*-*

João do Carmo levantou-se às duas horas do dia quente. Alma, na véspera, fingira não o ver.

Foi procurar Frederico Carlos Lobão na sua água-furtada de desenhos grudados. Não o encontrou. Tornou desolado ao quarto da Avenida Tiradentes. Lobão esperava-o à porta. Trazia uma novela, cheia de psicologia, no bolso. Leu-a, num banco calmo do Jardim Público da Luz com a voz tonitruante, acompanhada de gestos gordos e iguais. Esfalfou-se nos pedaços maiores. De longe em longe, aves excitadas gritavam. João distraíra-se. Com os braços cruzados, ouvindo confusamente, pensava em Alma.

Depois de lhe pedir a opinião com sinceridade, Lobão passou uma descomponenda nos governos que não protegem os artistas nem aproveitam as vocações.

O telegrafista, de folga, tinha a noite livre.

Falaram literatura. João do Carmo empolgou-se um instante, mas veio-lhe logo uma canseira mortal. Dentro dele havia só o coração que amava.

Lobão propôs que jantassem no Hotel Rebecchino. Rachariam a despesa. Sentaram-se ao fundo da sala pobre. Casais com crianças e homens simples do interior vieram devagar, apinharam as mesas, onde espigados vasos de vidro punham notas fanadas de flores.

Ao calor amável de um botelhão de Chianti, Frederico Carlos foi imprevisto, foi pitoresco. Para o outro, um instante esquecido, narrou uma viagem que fizera ao sul de Minas.

Seriam oito horas quando subiram ao centro. João do Carmo teve um lancinante silêncio, pelas ruas, sem ouvir o boêmio que falava sempre.

Na esplanada do Municipal, a fanfarra da polícia tocava um trecho da Bohème de Puccini, em meio do povo. As saudades falhadas cresceram no peito amoroso.

Deram de cara com um amigo comum, só, parado em nervos, no Viaduto. Chamava-se Dagoberto Lessa e nunca conseguira nada da vida. Disse-lhes de chofre, como quem tem uma velha idéia a despejar:

– A esperança é um espeto onde sempre falta o assado.

Lobão desemburrou-o à força de risadas gelatinosas de todo o corpo. João despediu-se, cada vez mais vencido.

*-*-*-*-*

E ficou andando, sem destino, até a madrugada perfumar os jardins calados da cidade.

*-*-*-*-*

Alma queria ter um gatinho, passá-lo no decote do vestido, pelos seios nus.

*-*-*-*-*

O velho pedira-lhe que somasse o caderno da venda. E, como antigamente, ela dizia alto, na mesa, recoberta pelo desbotado pano xadrez, perto do moleque, crescido, de pé, escutando.

Fubá… 400 réis; alpiste… 400 réis; cebola… 200 réis…

O alpiste era para a coleirinha bisonha que o avô comprara na porta numa ingênua festa, quando ela regressara.

*-*-*-*-*

Mauro reapareceu.

E ela teve dias pela casa, sentindo um aperto em cada canto; outros, uma alegria em cada porta. Interrogava as paredes, o passarinho, o cachorro idiota e peludo.

Voltava-lhe às vezes, para inundar o coração pequeno, aquela tristeza que pedia mais…

*-*-*-*-*

Mauro levou-a para jogar pocker a uma casa baixa e iluminada da Ponte Grande.

*-*-*-*-*

Oh! que canseira fulmínea da vida aos vinte anos!

Deitou-se ao leito conhecido, com um telefone à mesa da cabeceira. Tinha fechado a porta para que ninguém viesse.

Tomou o boião de éter do aparador. Ensopou dois lenços de linho.

Aquela moleza gostosa… uma vertigem fria subindo… e uma vontade indecisa de não sei que… subindo sempre… Afrouxara-se-lhe o nó da vida… O homem de preto era cor-de-cinza… Aquela cara… Uma vertigem boa que a levava… E o passarinho ria calado… ria… cor-de-palha… Caras… Caras… Caras… Subindo… Por que tantas caras? E a moleza amarela que a abraçava, que a levava, que a sufocava de lábios tontos… Levava-a, fazia-a rodar e subir frio… As caras desfilavam, subiam, fugiam, sem barulho, sem nenhum barulho… por impalpáveis salões… por…

*-*-*-*-*

Esperou o velho dormir e veio num bonde até a cidade. Estava num tailleur esbelto, de gola alta.

Os convites de aventuras passavam por ela, sem acordo.

A fanfarra da polícia concertava ao ar livre, no anfiteatro de luzes do Municipal.

Sentou-se a uma das últimas mesas. Pediu whisky. Achava horrível a droga, mas bebia até perder a última vigilância da lucidez.

Fazia-se tarde. Foi pelas ruas andando. Um gemido integral do espírito, com vontade de ser gritado, afogava-se dentro dela.

A madrugada surpreendeu-a, misteriosa, num jardim de chorões. Ficou parada na ponte abaulada, sobre o lago sujo da Praça da República. De repente, gritou. Um vagabundo que bebia água na concha das mãos, entre pedras, ergueu a cabeça apreensivo. Perceberam-se num mútuo receio. E partiram em direção oposta, pela noite.

(Continua na próxima semana.)

Leia Também:

Um comentario para "Os Condenados: segundo trecho da trilogia de Oswald"

  1. “Na noite que chegava…” Chegou minha cara Inês. E você sabe, não é uma ironia vivermos num sem ironias. Essa cidade que ele, Oswald, descreve é dele. A minha é sem florestas, sem estrelas e sem noites estreladas muitas vezes, fazer o quê.
    Abraços.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *