Mia Couto sugere costurar sonhos em terra devastada

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“Os Cadernos de Kindzu” são encenados em clima de mágico realismo, no Rio. Só um mergulho na fantasia pode salvar a vida, após terror das guerras civis

Por Wagner Correa de Araujo

Os Cadernos de Kindzu

De quarta a domingo, às 19:30h, até 18/12

Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil

Rua Primeiro de Março, 66, Rio de Janeiro – Fone: 3808.2020

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— O que andas a fazer com um caderno? — Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando. — E alguém vai ler isto? – Talvez. É bom ensinar alguém a sonhar…”

É assim, a partir da segunda parte do romance Terra Sonâmbula, do celebrado escritor moçambicano Mia Couto, que se estrutura a narrativa teatralizada pelo Amok Teatro na sua última concepção, titulada como Os Cadernos de Kindzu.

Escrito em 1992, o livro mostra uma terra devastada por uma década (1965/75) de guerras civis, capazes de tornar todos, vítimas ou carrascos, uma massa humana informe e desmemoriada.

E onde, na tragicidade da inexorável predestinação de efeitos “sonambulizantes”, a única perspectiva de “futuros e felicidades” seria o visceral mergulho nos sonhos.

Sentindo-se estrangeiro em sua própria nação, Kindzu (Thiago Catarino), com as raízes familiais dizimadas, inicia sua trajetória de exilado em país de ninguém.

Cruzando, na sua sonhada costura de desejos reprimidos, com o fantasma do pai (Sérgio Loureiro) e com as áridas lembranças da irmã de desterro Farida (Graciana Valladares). Remetendo-se, ainda, às presenças femininas maternais ou prostituídas (Luciana Lopes e Vanessa Dias) e às personalizações masculinas do indiano rejeitado (Stephane Brodt) ou do português dominador (Gustavo Damasceno).

Adaptar dramaturgicamente o purismo de um texto literário de perceptível inventividade, com seus neologismos e suas nuances de poética oralidade, é um desafio à não perda de sua intrínseca substancialidade.

Retomando o nativismo mítico da peça anterior “Salina – a Última Vértebra”, a presente concepção diretorial/cenográfica de Ana Teixeira e Stéphane Brodt revela, outra vez, um privilegiado alcance do substrato de sensorial esteticismo, no dimensionamento psicológico dos personagens e em sua pulsão de emotiva interatividade palco/plateia.

Tanto na apurada austeridade plástica dos elementos cenográficos e dos figurinos, como na instauração de um clima de mágico realismo na execução de música autoral pelos atores e nas filigranadas modulações do desenho de luz (Renato Machado).

O elenco, na sua irrestrita entrega à performance, tem tal exaltação e organicidade em suas linhas dramáticas que quase impossibilita destaques individualizados na segurança coletiva da construção de seus papéis.

Mas, diante da potencialidade carismática no protagonismo titular de Kindzu na condução da trama, não há como cada espectador escapar de ser cúmplice da espontaneidade gestual e da força interior de seu intérprete (Thiago Catarino).

No reflexivo propósito de Mia Couto “para que cada homem fosse visto sem o peso de sua raça”, Os Cadernos de Kinzdu ressoam, enfim, na triste paisagem da contemporaneidade, olhando a vida pelo sonho com transcendental “ousadia para levantar asas pelo azul”.

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