O tempo das coisas

Nas palavras, há o lento processo de criar. Opõe-se ao frenesi do post, este produto banal. É o cultivo de uma pequena epifania. Começa num insight; o trabalho, longo e árduo, vem depois

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Nas palavras, como na natureza, há o lento processo de criar. Opõe-se diametralmente ao frenesi do post, este produto banal. É o cultivo de uma pequena epifania. Começa num insight; o trabalho, longo e árduo vem depois

Por Maria Bitarello | Imagem: Pablo Picasso, Mulher reclinada na leitura (1960)

Nosso século, que tanto fala de economia,

é um esbanjador:

esbanja o mais precioso, o espírito.

Friedrich Nietzsche

Quando você vai preparar um chá, tem o tempo de fervura da água, o momento da infusão, a espera pelo resfriamento e só então a ingestão da bebida. Não dá pra mudar a ordem dos fatores nem o tempo que cada um deles demanda. A água só vai ferver a 100oC, a erva precisa de alguns minutinhos na água quente pra ser infundida e se você não esperar esfriar vai queimar a língua. As coisas têm seu tempo. E embora os tempos hoje sejam de afobação, o chá ainda toma o tempo que toma pra ficar pronto. E tudo indica que vai continuar sendo assim. Saber disso, no corpo e na alma, é o que eu chamo de sabedoria.

Quase dois anos atrás escrevi o prefácio de um livro cujo lançamento acontece essa semana (14/6) na Livraria Blooks, no Shopping Frei Caneca. “Homo Sapiens Erectus” (Funalfa), do Ulisses Belleigoli, é uma coletânea de contos escritos ao longo de 15 anos. Quase metade da vida do autor. E há menos de um ano escrevi também a orelha do livro “Então é isso?!” (Giostri), da Letícia Coura, uma coletânea de contos eróticos, esses escritos ao longo de duas décadas – também quase metade da vida dela.

A paciência deles age como uma decantação literária. E ela me fala dessa sabedoria de deixar as coisas quararem ao sol. Quarar – palavra que provavelmente vem do Tupi, kwara’sy, a deidade sol – quer dizer clarear ou fazer mudar de cor pela exposição ao sol. Um processo demorado, de espera, que não pode ser acelerado. Uma alquimia, onde um elemento sob efeito de outro se transforma.

Escrever também é assim. Tem um tempo próprio. Jornadas são feitas às águas profundas, entremeadas de retornos à superfície pra respirar, acompanhadas da manufatura – dar forma aos achados. Depurar e refinar, destilar e fermentar, coar e aglutinar. Repousar. É como fazer queijo. Fazer cachaça. Repouso é parte do processo. Tem tempo de prateleira, pro queijo curtir, e tem tempo de barril, pra cachaça se impregnar da madeira. Palavra também tem tempo de página. Folha, tempo de gaveta. Como os furos que aeram o queijo. De vez em quando tem que mudar ele – o queijo, o texto – de posição. Provar uma beiradinha. Depois esperar. E só provar de novo quando você já for uma pessoa diferente.

Ulisses e Letícia sabem do tempo das coisas. Uma sabedoria que, em seus trabalhos, tem cara de teimosia e pinta de obsessão. Uma resiliência afetiva adquirida graças à convivência com seus anjos e demônios, com suas manias, com suas obras – sempre em construção. E uma capacidade que eu hoje chamaria de sobre-humana de resistir à facilmente realizável tentação de verbo-agir, de “postar” e diluir insights, no ato, em banalidades. Em espectro diametralmente oposto à postagem, essa banalização da inspiração, está a criação artística, que é o cultivo de uma pequena epifania. Insight é fagulha; trabalho vem depois. A engorda do caldo, que vira a obra, só se dá com teimosia.

Ulisses e Letícia são mineiros. E quem é de Minas sabe um pouco desse tempo das coisas, instintivamente. Nós, do interior, temos outro tempo mesmo. Outra forma de cultivar o deleite, de fruir do prazer. Outra atenção dada ao ócio. Ao jeito de se fazer as coisas. Ao tempo dedicado ao outro, à comida, à conversa fiada. A fala tem outro ritmo. Outros gestos. E o silêncio também. Tem outra batida e outro intervalo de duração. Tem conforto ao invés de embaraço. Silêncio, essa arte ameaçada, não é esperar pela vez de falar. É mais uma presença de corpo que uma ausência de som. Existência, sem resistência. É muito simples, mas nada banal.

Oswald de Andrade diz que “a gente escreve o que ouve, nunca o que houve”. Eu também acho. E acho ainda que quem não ouve não diz coisa com coisa. Quem não escuta, portanto, não escreve. Por isso o silêncio se faz imperativo. E por isso os mineiros são contadores de histórias natos. Porque o proseado é nosso ofício.

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Um comentario para "O tempo das coisas"

  1. Jairo disse:

    Os mineiros tbm contam estórias assim como muita gnt de outros lugares seguem esse ofício.

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