O que os professores, em greve, podem ensinar

Felizmente, já não faltam recursos ao governo Dilma. Falta uma visão menos convencional sobre futuro do país e da democracia

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Felizmente, já não faltam recursos ao governo Dilma. Falta, sim, uma visão menos convencional sobre futuro do país e da democracia

Por Antonio Martins

 I.

A greve das universidades federais está testando o sangue-frio do ministro da Educação, Aloísio Mercadante, e o do governo Dilma. Em 13 de julho, o sindicato da categoria e o Comando de Greve já haviam rejeitado proposta que previa aumento de salários entre 16% e 36%, mas postergava o benefício para… daqui a três anos, quando os percentuais terão sido humilhados pela inflação (leia texto de Bruna Bernacchio).

Desde então, tudo se complicou. Das 59 universidades federais, pelo menos 56 seguem firmes no movimento (Laís Bellini escreve a respeito). A paralisação conquistou apoio de partidários do governo e setores do PT, alastrando-se por outras categorias de funcionários federais – e pelo menos dez mil pessoas manifestaram-se diante do Palácio do Planalto na última quinta-feira, 18 de Julho. É provável que o ministro tenha se arrependido de ter declarado, há dias, que as reivindicações custariam à União R$ 3,9 bilhões – e por isso, não poderiam ser atendidas.

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 A soma negada aos grevistas era dinheiro trocado, na farra que a Câmara dos Deputados promoveu terça-feira à noite, horas antes da manifestação diante do Palácio do Planalto. Foram votadas duas Medidas Provisórias (MPs 563 e 564), que criam o Plano Brasil Maior, proposto pelo governo em abril, para incentivar a economia. A proposta original transferia R$ 60,4 bilhões a alguns setores, por meio de créditos baratos, subsídios e isenções de impostos. Porém, os deputados perceberam que podiam arrancar mais.

Ameaçando derrotar as MPs, caso não atendidos, eles incluíram, no texto das medidas, “contrabandos”. Ofereceram presentes “a um vasto leque de interesses de agricultores, construtoras, empresas de telecomunicações e transportes”, segundo relatou Caio Junqueira, no Valor. Ele detalha: “Houve farta apresentação de emendas. A MP 563 chegou com 54 artigos e saiu de lá com 78”. Num único item acrescentado – a desoneração das folhas de pagamento das empresas de trasporte rodoviário – a renúncia prevista é de R$ 1 bilhão. Foi particularmente intensa, conta o repórter, a movimentação dos lobbies – grupos de pressão que agem para “convencer” parlamentares a apresentar projetos que beneficiam interesses específicos.

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As duas cenas ajudam a compreender transformações essenciais que as políticas de Estado estão vivendo no Brasil, desde a crise internacional iniciada em 2008. A época do neoliberalismo, em que o governo federal afastava-se da chamada “economia real” e se limitava a garantir a transferência de recursos para o sistema financeiro, vai ficando para trás. Muito dinheiro público está sendo mobilizado, na forma de investimentos e incentivos, para irrigar a produção. Porém, a aplicação destes recursos despreza (e muitas vezes afronta) os dois desejos que emergem com mais força dos setores interessados em continuar transformando a sociedade. Eles querem um projeto de país que vá além do velho desenvolvimentismo e uma democracia que não seja refém da “classe política” e suas chantagens.

Até o momento, a presidente Dilma não parece levar a sério estas vontades. Entusiasmada por seus índices estratosféricos de popularidade, e pelas alianças políticas e empresariais que estabeleceu, ela ainda não se deu conta de que tais apoios são frágeis; e, mais importante, (voltam seu governo para trás.)

II.

Ao contrário do que fizeram, por exemplo, os países europeus, o Brasil respondeu à crise financeira global elevando continuamente, desde 2008, as despesas e investimentos públicos. O Orçamento da União, por exemplo, saltou de R$ 1,232 trilhão para R$ 2,225 trilhões, previstos em 2012 – um crescimento de 80,6%. Esta elevação pode ser melhor compreendida quando se examinam seus três componentes fundamentais.

Primeiro, houve elevação consistente dos gastos com custeio – as despesas de consumo e pessoal do governo federal. Enfrentou-se, em algumas áreas, a tradicional insuficiência dos serviços públicos, ainda que de maneira parcial e errática. Num período um pouco mais amplo (o que começa com a eleição de Lula), o orçamento do Ministério da Educação, por exemplo, mais que triplicou, o que gerou resultados concretos, como se verá adiante.

O orçamento da seguridade social cresceu 78% entre 2008 e 2012. O aumento real do salário-mínimo repercute na maior parte dos benefícios previdenciários, que se tornaram menos minguados. O bolsa-família passou a atender mais brasileiros, e foi majorada.

Finalmente, avançaram os investimentos – tanto os diretos, da administração pública, quanto os das empresas estatais (+168%, entre 2007 e 2012). Eles resultam tanto em grandes obras (as relacionadas à Copa-2014 e Olimpíadas-2016, por exemplo) quanto em programas como o Minha Casa, Minha Vida, em geral, pouco percebidos pela classe média. Só este último deverá resultar na construção de 2 milhões de moradias, em quatro anos – com subsídios aos compradores equivalentes a R$ 18 bilhões ao ano.

Entre os diversos fatores que permitiram a mudança de cenário, um deve ser destacado. Desde 2008 (com um breve retrocesso, nos primeiros sete meses do mandato de Dilma), o governo federal agiu para reduzir as taxas de juros pagas pelo Estado. Embora estejam, ainda, entre as mais altas do mundo, elas caíram de 13,75% para 8% ao ano. A redução economiza dezenas de bilhões de reais ao ano. São recursos públicos que, ao invés de transferidos aos bancos e grandes aplicadores, tornam-se disponíveis para outros usos.

Para que usos, porém? A enorme energia liberada pelas mudanças descritas acima foi capturada, em grande parte, por dois buracos negros que dominam a paisagem institucional brasileira. São eles: as relações do Estado com os grandes grupos empresariais; e um sistema de representação que concentra as decisões na “classe política”, bloqueando as possibilidades de participação direta dos cidadãos.

Em outras condições políticas, o fim do período neoliberal e a possibilidade de aproveitar os recursos que ele sequestrava, já teria aberto espaço para um amplo processo de planejamento democrático. Ele permitira identificar as debilidades do país; compará-las com as tendências e desafios visíveis no horizonte de algumas décadas; adotar as políticas necessárias para enfrentá-los.

Dezenas de bilhões de reais agora disponíveis criariam condições para oferecer, por exemplo, os serviços básicos a que a maioria da população ainda não tem acesso: saneamento, bairros urbanizados, rios despoluídos, mobilidade nas metrópoles. A construção da infra-estrutura necessária asseguraria ocupação para milhões de pessoas, de todos os níveis de qualificação.

Entre os grandes riscos do século 21 estão o aquecimento global, o colapso de ecossistemas, o esgotamento de recursos estratégicos. Um país autorizado a refletir sobre si mesmo reagiria a estas ameaças aproveitando seu potencial de energias limpas; inventariando sua biodiversidade única; tirando proveito dela sem devastá-la.

E avançaria rumo à realização das potencialidades relacionadas à economia do imaterial. Implica transformar a conexão em banda larga num direito; oferecer, a milhões de jovens que revelam imensa criatividade nas lan-houses, acesso a conceitos e técnicas das artes, cultura e comunicação; explorar as oportunidades de enfrentar, por este caminho, o imenso déficit de nosso sistema educacional arcaico.

São linhas gerais que precisariam ser ampliadas, desenvolvidas, detalhadas. Mas ao invés de se entregar a este trabalho, e de convocar a sociedade a se integrar a ele, o Estado brasileiro desperdiça a maior parte dos novos recursos alocando-o onde é mais fácil – ou seja deixando, que sejam atraídos pelo sorvedouros empresarial e político-institucional.

Ao invés de um plano consistente de recuperação das ferrovias, e construção acelerada de trens metropolitanos e metrôs, temos os incentivos fiscais à indústria automobilística. No lugar de estimular a pesquisa científica sobre as potencialidades econômicas das florestas e outros ecossistemas, o Legislativo aprova um Código Florestal ao gosto do latifúndio e da produção de commodities agrícolas.

Nas metrópoles, os recursos vultosíssimos atraídos pelos megaeventos esportivos são empregados sem planejamento, debate ou participação alguma. São destinados quase automaticamente às obras que empreiteiras propõem porque estão acostumadas a executar. Novos estádios em locais remotos; avenidas que conduzem a eles sem relação com os usos permanentes da população; projetos que ampliam a segregação urbana e a especulação imobiliária, ao afastar os pobres das regiões centrais e valorizar artificialmente os terrenos e construções.

Os interesses dos grandes grupos econômicos e os da velha política conjugam-se para produzir inércia e bloquear a inovação. Para uma construtora, é muito mais cômodo e lucrativo projetar uma nova rodovia que pensar a recuperação de uma via férrea sucateada. Um banco de fomento sente-se mais seguro financiando uma grande lavoura de soja do que centenas de pequenos produtores agro-ecológicos. Por que motivo a maior parte dos parlamentares perderá tempo, estudando projetos de mobilidade urbana, se um lobista entrega em suas mãos a emenda necessária a financiar uma nova avenida – e depois o recompensa, financiando sua próxima campanha?

III.

Num certo sentido, a Educação e as universidades vivem um paradoxo semelhante ao do conjunto do país. Os problemas não estão na falta de recursos. Entre 2003 e 2011, o orçamento do MEC mais que triplicou: passou de R$ 20 bilhões para R$ 67 bi. No ensino superior criaram-se 14 novas universidades federais e 120 campi. Abriram-se 300 mil vagas, boa parte delas para estudantes antes excluídos – agora beneficiados pelas políticas de quotas ou pelo Reuni.

Neste contexto, por que o ministro Mercadante e a presidente Dilma resistiriam a dispender mais R$ 3,9 bilhões a cada ano, e atender as reivindicações dos professores? Que os leva a correr o risco de um desgaste que pode turvar os avanços reais havidos na Educação?

Talvez haja duas pistas para a intransigência. Do ponto de vista da política econômica, tanto governo quanto oposição conservadora temem o surgimento de demandas novas, capazes de desarranjar o financiamento estatal a grandes projetos. Os jornais comerciais e noticiários de TV, por exemplo, omitem quase sempre a greve. Os editorias a condenam. Uma matéria publicada em O Globo, nesta quarta-feira (18/7) sugeria o motivo: “um aumento generalizado dos salários do funcionalismo tiraria espaço para novos investimentos e desonerações de tributos…

A segunda pista é mais difusa, mas não menos provável. Satisfeito com suas atuais base de apoio e popularidade, o governo parece ver com desconfiança os fatores que as questionam. Em diversas ocasiões anteriores, foram tratados com ironia e certo menosprezo movimentos que pediam, por exemplo, o fim das isenções fiscais aos automóveis; um Plano Nacional de Banda Larga sob direção da Telebrás; ou um ministério da Cultura capaz de retomar as ações criativas da era Lula-Gilberto Gil-Juca Ferreira. É como se fossem ideias de sonhadores ingênuos, incapazes de enxergar o mundo da política real.

A greve dos docentes parece situar-se na galáxia dos que querem superar o velho desenvolvimentismo e não aceitam o sequestro da política. Ela lembra que os novos investimentos na Educação, e nas próprias universidades, serão pouco efetivos, se estas instituições não valorizarem o que sempre tiveram de melhor: a capacidade de questionamento. Se continuar capaz de mobilizar dezenas de milhares de professores, e em especial se contagiar os estudantes, ela pode multiplicar a visibilidade de uma crítica da qual o país e o próprio governo necessitam.

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7 comentários para "O que os professores, em greve, podem ensinar"

  1. Sim, Precisamos de verba, apoio e competencia para uma negociação. enfim, votei para um Governo democratico e não estou encontrando um. Não votei MESMO para essa farra de exonerações para o capital. Votei em uma politica de estado que valorize o estado. Também em um governo que OUÇA os trabalhadores e saiba negociar conosco. Não é o que estou vendo, triste.NUNCA VOTEI EM UMA UNIVERSIDADE PRODUTIVISTA.

  2. Antonio Martins disse:

    Caro Eduardo,
    Obrigado por seus comentários tão circunstanciados. Te conto que escrevi o texto com uma certa dor no coração mas, ao mesmo tempo, com vontade de ampliar limites. Votei no Lula e na Dilma e concordo contigo: é uma enorme transformação assegurar, a milhões de brasileiros, condições de uma vida digna; permitir que deixem a condição de quase-párias. Esta mudança terá, ainda, repercussões políticas enormes, que parte da esquerda infelizmente não enxerga.
    Mais: também é de enorme importância a virada na política macroeconômica — esta, que está retirando dezenas de bilhões de reais de um pequeno número de rentistas e abrindo novas condições para o investimento público. O significado desta postura fica mais claro quando a gente a compara com o ataque selvagem promovido pelos governos europeus contra o antigo estado de bem-estar social; ou, aqui mesmo, com a subserviência dos governos FHC ao sistema financeira, sempre que teve de lidar com crises.
    Porém, acho que nosso papel é tanto preservar estas conquistas quanto entender e tentar ultrapassar seus limites. Não se trata, sequer, de pedir uma política revolucionária, mas de suscitar de novo a ideia do *planejamento*, de que os recursos da sociedade e do Estado são finitos e precisam ser empregados com consciência e debate. Planejamento tornou-se uma palavra gasta, por conta do dirigismo e ultracentralismo que prevaleceram no velho bloco socialista. Mas podemos resgatá-la, demonstrando que pode ser combinado com a expansão da democracia; com a superação gradual da “velha política”, que também aqui está voltando as costas para a sociedade. O Brasil tem uma tradição riquíssima de articulação popular, talvez sem paralelo no mundo. Ela pode ser convocada para repensar o país. Já criamos, inclusive, embriões dos mecanismos políticos necessários para isso: entre outros, os Orçamentos Participativos e as Conferências Nacionais.
    Vamos nos transformar, em duas décadas, num país muito mais rico, economicamente. Além das mudanças macroeconômicas, há, por exemplo, a riqueza do pré-sal, que pode financiar investimentos públicos capazes de mudar a cara da sociedade. No texto, apontei alguns exemplos, algumas metas possíveis. Garantir, por exemplo, que em quinze anos não haja mais um brasileiro sem esgoto sanitário, e um sistema de saneamento despejado em rios. Construir uma malha ferroviária moderna, estendida em todo o território (sem as pirotecnias de um “trem-bala” que atende a três cidades). Assegurar banda larga de internet para todos. Tirar proveito da vocação dos brasileiros para a comunicação em rede para superar nosso déficit educacional imenso. O país pode ser mobilizado em torno de um conjunto de ideias-chaves sobre seu futuro. Isso limita o poder das elites, porque coloca, no centro da agenda, um conjunto de objetivos comuns, definidos democraticamente e em debate. Não vejo, infelizmente, nenhum movimento no governo neste rumo. Talvez fosse esperar demais, conhecendo os limites e atrelamentos do Estado. Reivindicar este futuro possível é trabalho nosso. Foi esta a intenção do texto.
    Abraços
    Antonio

  3. Flavia Peres disse:

    Também ensinamos: a capacidade de questionamento, a busca por justiça, a luta digna. A greve continua!

  4. Mônica Athayde disse:

    Obrigada, Antônio Martins!! Ótima análise sobre o contexto da greve, nós, servidores, já estamos cansados de ouvir tanta besteira da “mídia nativa”. Abs
    Mônica Athayde – servidora técnico administrativa
    Instituto Federal Fluminense

  5. Paulo disse:

    Ao contrário do esperado, o ímpeto por mudanças da era Lula decaiu com Dilma. Ela e sua equipe se restringem a criar amortecedores para que a crise sistêmica não não pegue o Brasil em cheio, mas perdem com isso a visão de futuro. E depois, se houver um depois, ? Até quando uma economista na presidência e um economista na pasta da Educação vão gerenciar apenas o desenvolvimentismo? Até quando a sociedade será tratada como subproduto da economia ? “Penso que teremos de ampliar nossa pauta de lutas para evitar que, daqui a 3 anos, voltemos ao mesmo cenário, com perspectivas semelhantes[do comentário anterior]”.

  6. Eduardo Sarquis Soares disse:

    Realmente o texto é bastante interessante porque amplia a visão que se tem do funcionamento do poder. Mas, ao mesmo tempo, cai no senso comum de colocar toda a responsabilidade sobre a presidente e o ministro. Não quero isentá-los de suas responsabilidades, absolutamente. Mas estou ciente de que as forças que interferem no poder são muito maiores que os cargos que eles ocupam. Não lhe parece irônico, Antônio Martins, termos ali uma ex guerrilheira e um ex vice-presidente the ANDES? Já lhe ocorreu que qualquer um de nós que ocupasse aqueles cargos estaria fazendo a mesma coisa? Por que o texto não menciona a farra que o judiciário vem promovendo em todas as instâncias? Por que juízes e parlamentares têm tanto poder neste país? Eu concordaria integralmente com o texto se o você apontasse para o desafio maior que é a luta por uma justiça ampla. No dia em que tivermos um plano de carreira para o servidor público, definindo pisos e tetos justos para todos, não haverá mais necessidade de greve. Penso que teremos de ampliar nossa pauta de lutas para evitar que, daqui a 3 anos, voltemos ao mesmo cenário, com perspectivas semelhantes, mais uma vez repetindo o que venho fazendo desde a primeira greve de que participei, em 1979. E desde o início the minha carreira de professor público, naquele ano, só tivemos perdas. A longo prazo, nós, professores, só perdemos até agora.

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