Nazismo sem fantasias

Documentário mostra fascismo não como sandice tresloucada — mas brutalidade latente, que se alimenta das prosaicas vaidades e mesquinharias humanas

 

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Documentário mostra fascismo não como sandice tresloucada — mas brutalidade latente, que se alimenta das mais prosaicas vaidades e mesquinharias humanas

Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo

Chegou finalmente ao Brasil, em DVD da Videofilmes, um dos documentários mais extraordinários já realizados, o monumental A tristeza e a piedade – Crônica de uma cidade francesa sob a ocupação (1969), de Marcel Ophuls.

O momento não poderia ser mais oportuno, agora que manifestações de fascismo e intolerância afloram em toda parte, de São Paulo à Noruega.

Pois o que o filme de Marcel Ophuls nos mostra – e é isso que o torna mais assustador – é que o nazi-fascismo não é meramente uma questão de poder militar ou de uma liderança política ensandecida, como o cinema hollywoodiano nos descreve há sete décadas, mas um fermento cotidiano, uma brutalidade latente que se alimenta das mais prosaicas vaidades e mesquinharias humanas.

Para construir seu rico painel do período da ocupação da França pelos nazistas, Ophuls concentra seu foco na cidade de Clermont-Ferrand e costura de modo sutil e engenhoso uma infinidade de materiais: cinejornais de época (franceses, alemães, ingleses, americanos), fotos, recortes de jornal. Tudo isso é entremeado por depoimentos dos indivíduos mais diversos que viveram aquele momento, de partisans da Resistência a oficiais nazistas, de espiões ingleses a colaboracionistas, de judeus deportados para campos de concentração a comerciantes que se mantiveram “neutros”.

Antissemitismo e aversão aos ingleses

O resultado é eletrizante, e causou furor na época de lançamento do filme, por contradizer a imagem que se construiu na França do pós-guerra, de um país que resistira em bloco, de maneira ativa ou passiva, à presença alemã. O que Le chagrin et la pitié mostra, ao contrário, é que a ocupação nazista foi facilitada por grande parte (se não a maioria) dos franceses, movidos por sentimentos como o antissemitismo, o medo do comunismo e a aversão aos ingleses, quando não por interesses materiais mais comezinhos, como vender seus produtos aos invasores alemães ou livrar-se de competidores incômodos no mercado comercial ou de trabalho.

Uma das estratégias críticas mais eficazes do documentário é confrontar a imagem que certos personagens constroem de si mesmos, na tentativa apagar ou atenuar sua atitude de colaboração ou conivência, com documentos de época que contradizem essa imagem: por exemplo, um anúncio de jornal em que um comerciante declarava não ser judeu. Ou então são os próprios depoimentos dos personagens que se contradizem uns aos outros. Em certo momento, o genro do primeiro-ministro fantoche francês Pierre Laval diz que este era um homem cordato e não-repressivo, logo depois que um oficial do exército informa que Laval mandou crianças francesas para campos de concentração alemães.

Nem monstros nem santos

A ironia, por ser sutil, tem sua contundência potencializada. (Michael Moore devia ver esse filme o quanto antes). Os depoimentos falam por si. Entre os mais iluminadores estão os de dois aristocratas franceses, um que aderiu ao nazismo, chegando a lutar na Waffen SS no front oriental, e o outro que se engajou na Resistência. Ophuls deixa-os à vontade para contarem sua história e explanarem suas ideias e sentimentos. Sentimo-nos próximos dos dois. O colaboracionista não é um monstro, o resistente não é um santo. São humanos, como nós, e é isso que inquieta e incomoda. Estamos longe, aqui, da fantasia maniqueísta e apaziguadora de Hollywood.

A dolorosa sinfonia de Max Ophuls termina de modo pungente: logo depois da guerra, num inglês carregado de sotaque, Maurice Chevalier fala ao público norte-americano para explicar sua dúbia atitude durante a ocupação nazista da França. É quase um pedido de desculpas e de emprego. Seria cômico se não fosse trágico.

Aqui vai o trailer americano (um tanto bombástico e enganoso) dessa obra-prima.

José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital.

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