O monitor

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Embora muitas as músicas, a sensação melódica era uma só. Talvez o tema fosse também um só: erguer-se à santidade

Por Theotonio de Paiva*

Na imensa livraria do centro do Rio, um monitor insensível reproduz as imagens do programa de um antigo ídolo da nossa música. As gravações foram feitas no outro lado do mundo, naquela terra em que, há muito tempo, as paixões religiosas, ao criarem as motivações para a “reconquista” do espaço sagrado, deram origem a uma das manifestações mais negativas do Ocidente, as Cruzadas. Como pensava Le Goff, a Cruzada marca o fim perverso da atitude pacífica dos cristãos diante da guerra. Aos poucos, eles passam a aceitá-la, e mais, a sacralizá-la.

Mas deixemos as conquistas, cobiças e pilhagens no mar revolto das usurpações. O monitor, dizia, pregado na parede, está literalmente a alguns centímetros da cabeça de uma funcionária. Embora sejam muitas, lado a lado, numa linha reta, todas trabalhando nos caixas da loja, apenas aquela primeira, pouco mais do que uma menina, estava de fato exposta às representações do vídeo.

Houve um tempo em que os encarregados dessas operações ficavam apenas a um único degrau do caixa de banco. O nosso antropófago maior alardeava que a esse último deveriam ser erguidas estátuas, grandes homenagens, a fim de celebrar o brilho de suas honestidades. Esse tipo de decência não tinha preço e, provavelmente, nos magazines e pequenos comércios a tentação não deveria ser diversa.

Além do mais, no confronto entre os deserdados do mundo e a acumulação ulterior, reservada às duzentas famílias que mandam no mundo, nenhuma justificativa daquele comportamento se encontraria. A grande maioria, entretanto, resistia bravamente ao apelo da nota que manuseava freneticamente. Hoje em dia, com o dinheiro de plástico, na condição de seres miseravelmente robotizados, deixam escapar apenas a pergunta: crédito ou débito?

Mas, aquela moça, com os cabelos estrategicamente presos atrás da nuca, a fim de que nenhuma sensualidade a denuncie, recebia, no balanço das horas, aquele bombardeio aparentemente doce. Em seu contrato, possivelmente, está impedida de manifestar qualquer energia à flor da pele.

O monitor imitava as melodias incansavelmente. O rosto do ídolo, os meneios do microfone, sorrisos, ataques de orquestra, mais sorrisos, os cruzamentos dos jatos de luz, eram servidos, através de cortes previsíveis de câmera, ao olhar bestificado de uma plateia de estrangeiros.

Queria saber há quanto tempo aquela situação se instalara. Lancei a aposta, jogando no ar uma pergunta marota. Quatro? Seis? Engano meu. Não eram horas, eram dias. Mais precisamente, quinze dias. Duas longas semanas, segundo a colega que estava ao lado. Esta era visivelmente um pouquinho mais desinibida, diria mesmo, distante, de qualquer fascínio pelas imagens daquela mercadoria.

Embora fossem muitas as músicas, a sensação melódica era uma só. Talvez, se pensássemos melhor, embora aparentassem ser vários, chegaríamos à conclusão de que o tema, preso a uma espécie de fatalismo, também era um só: erguer-se à santidade. E, para tanto, não se pouparam recursos, grandes recursos. É preciso que a fé invada os corações e mentes e lá se instale, sem pedir licença, a ponto de se cristalizar num tipo de emoção do qual não abandone mais a criatura.

Ou criador? Porque se trata sobretudo de um ídolo curioso. Uma vez que precisa se manter jovem evidencia-se, na verdade, a sua condição de mito. Os cabelos não se acinzentam, não se mesclam com a história, com os traumas, os dramas, as profundas incertezas humanas. São compridos como os dos deuses antigos. E, naquele mundo de encenações de uma realidade, comparece como um exemplo a mais das contradições das categorias determinantes da nossa civilização.

Restaria apenas a fé e um evidente pacto com o tempo naquele modelo de valores eternos. Enquanto procura se sobrepujar a qualquer dimensão humana, o ídolo, na sua reprodução técnica, se conserva como um jovem deus morto que, acredita, carrega para si a grandeza da humanidade e o pranto diminuto das moças que duramente trabalham nos megastores do mundo.

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* Theotonio de Paiva é colaborador do Outras Palavras e editor do Caderno Ensaios

> Edições anteriores da coluna:

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3 comentários para "O monitor"

  1. Luciene Caruso disse:

    E o rei é muito mais bonito nu.

  2. Edilson Rocha disse:

    Desde que todo mundo é livre para dizer e escrever o que dá na telha, o cara pode fazer o que quer com as palavras. No final, pode-se perguntar: o que é mesmo que ele queria expressar? Não seria mais simples dizer que não crê nas bobagens em que os outros acretitam? Mas sempre pode-se perceber que se trata de seres humanos que estão muito acima dos outros pobres, manipuláveis e enganáveis seres menos capazes de ver a realidade com olhos privilegiados, mais inteligentes e lúcidos. Esta é a sensação diante de escritos assim. Coitados destes pobres humanos que ainda se debatem na ignorância! Que ainda não chegaram à maturidade de quem olha o mundo e o universo por ângulos que a maioria dos outros pobres humanos ainda estão a anos-luzes distantes!

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