O FMI e a Taxa Tobin

Reviravolta surpreendente levou Fundo a considerar propostas defendidas pelos movimentos altermundistas. Abre-se espaço para governos e sociedades

Olivier Blanchard um professor heterodoxo como  economista-chefe do Fundo, sinal dos solavandos dos últimos dois anos

Olivier Blanchard um professor heterodoxo como economista-chefe do Fundo, um sinal dos solavancos dos últimos dois anos

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Por Paulo Kliass

Nada como um dia após o outro. Quem poderia imaginar que o FMI, considerado por tanto tempo o próprio dragão da maldade, seja agora como referência para mudanças progressistas em termos de política econômica?

Embora muito surpreendente, é o que está ocorrendo. O Fundo Monetário Internacional está sendo submetido a sacolejos internos e reavaliações das políticas equivocadas que levou cabo nas últimas décadas ao redor do mundo. Em consequência, sua direção tem promovido alguns estudos e debates a respeito da necessidade de estabelecer algum tipo de controle sobre a livre circulação de capitais entre os países.

A proposta seria considerada uma verdadeira heresia até há alguns anos atrás. Vai na contramão de toda a antiga argumentação a favor da liberdade irrestrita de ação dos agentes econômicos e contra qualquer tipo de regulamentação por parte do poder público. Um de seus desdobramentos pode ser instituir o chamado Tributo Tobin, bandeira que motiva movimentos internacionais como o ATTAC e tem enorme repercussão no Fórum Social Mundial.

A mudança não é apenas retórica. O estímulo a medidas que regulem do fluxo de capitais passou a fazer parte de manifestações oficiais do FMI. Isso reveste-se de importância particular para países como o Brasil: um dos passos necessários para frear a tendência à valorização do real é reduzir o ingresso de recursos especulativos do exterior.

Duas ordens de fatores contribuem para a nova posição do Fundo. Por um lado, o movimento de análise e crítica provocado pela crise financeira pós-2008 abalou os dogmas hegemônicos do neoliberalismo e do Consenso de Washington. Este movimento atravessou quase todas as esferas de debate: universidades, centros de pesquisa, governos, foros diplomáticos, agências multilaterais, etc. De outro lado, pesaram mudanças na orientação nos governos que compõem o FMI e nas visões dos próprios integrantes do “staff” de carreira da instituição. Como sua estrutura é composta por representações dos Estados-membros, a reorientação das políticas da instituição passou a ser mais visível. Para ela contribui decisivamente a presença, nos organismos de direção do Fundo, de economistas como o brasileiro Paulo Nogueira Baptista Jr. O próprio posto de economista-chefe do órgão é ocupado hoje, aliás, pelo francês Olivier Blanchard – que construiu boa parte de sua vida acadêmica ligado ao meio universitário dos Estados Unidos, com algumas contribuições que podem ser classificadas no campo da heterodoxia.

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Ainda que imprevista, a reviravolta atual tem fundamento lógico. Esquecida durante décadas, a ideia de que os Estados e sociedades têm direito de impor limites à circulação do dinheiro está presente da própria criação do Fundo e do Banco Mundial — durante a famosa conferência de Bretton Woods, realizada pelos países aliados do Ocidente em julho de 1944, pouco antes do final da II Guerra.

Ali começavam a ser esboçados os primeiros ensaios da nova ordem econômica internacional. O final do conflito, que se avizinhava, exigiria, dos países do bloco capitalista, um grau maior de coordenação e articulação no plano econômico. Daí vieram todo o esforço da reconstrução do pós-guerra, o Plano Marshall e a compreensão de que a participação do Estado era fundamental para a recuperação das economias mais atingidas pelo conflito — Japão e Europa Ocidental, especialmente. A proposta de constituir um fundo monetário internacional, literalmente, era uma das sugestões de Keynes para a nova ordem de relações econômicas entre os países.

Pela proposta original, e logo em seguida abandonada pelos dirigentes mais liberais, o FMI serviria como um fundo de compensação das trocas econômicas e comerciais entre países muito desiguais. Isso seria necessário pois, ao contrário do que havia ocorrido com a libra esterlina antes da guerra, o dólar norte-americano ainda não era aceito de forma consensual como a moeda de referência para as trocas internacionais. Os eventuais desequilíbrios nas trocas comerciais e nos fluxos de capital entre as nações seriam equacionados por meio do acesso aos recursos de tal fundo.

O passar do tempo e a recuperação dos negócios cristalizaram e consolidaram a ordem liberal no pensamento hegemônico das organizações multilaterais. Os EUA saíram fortalecidos como a potência hegemônica. Sua moeda virou o meio de troca de aceitação global. O paradigma liberal imperava (ao menos no plano do discurso) nas relações econômicas internacionais. E isso implicava aceitar que a liberdade de comércio de bens e serviços era a soluções mais eficiente para as contradições e diferenças. Generalizava-se a utilização do conceito do “deus-todo-poderoso-mercado” não apenas nas políticas de cada país, mas também nas relações econômicas entre Estados.

Porém, a realidade e os interesses econômicos das forças internas dos países capitalistas também exerciam suas pressões. O desenho institucional da maioria dos países europeus incorporava o que ficou conhecido como “Estado do Bem Estar”, com forte presença do setor público na constituição de setores importantes da economia. Até mesmo os Estados Unidos escapavam, pragmaticamente, dos ditames do liberalismo que tanto pregavam, quando se tratava de proteger os negócios, os empregos e os setores estratégicos em seu próprio território. Ou seja: todos eram muito sérios e rígidos na defesa incondicional da ordem liberal … para os outros.

O processo de avanço do fenômeno da globalização exigia a abertura dos mercados em escala internacional, inclusive a conta de capitais. Os países do chamado Terceiro Mundo terminaram sucumbindo a tal imposição e permitiram o livre trânsito de recursos financeiros, a maior parte com origem nos países desenvolvidos. A mágica era apresentada como a eficiência propiciada pelo resultado do “livre encontro” das forças de demanda e de oferta no plano mundial. O resultado é conhecido: aprofundamento das desigualdades entre países e surgimento da nova dimensão da crise financeira em razão, por exemplo, das dívidas externas em crescimento vertiginoso e do descontrole especulativo nos mercados internacionais de matérias-primas.

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Apesar de tudo isso, já na década de 1970, um economista norte-americano, James Tobin (1918-2002), propôs a criação de um imposto a ser aplicado nas transações financeiras internacionais. Embora de formação conservadora, Tobin compreendia a necessidade de algum grau de regulação da desordem das transações internacionais. A criação de um tributo incidente sobre as transações financeiras internacionais teria dupla função. Regularia e ordenaria esse tipo de operação, até hoje fora de qualquer tipo de supervisão ou controle. Além disso, permitiria constituir um fundo internacional destinado a combater o profundo e vergonhoso estágio da desigualdade social e econômica entre as nações.

Sua ideia foi bombardeada por mais de trinta anos pelas forças vinculadas ao sistema financeiro – em especial depois que ela se converteu em bandeira dos grupos progressistas de todos os cantos do planeta. O tributo Tobin foi uma das bases da constituição de movimentos que lutam por uma nova ordem econômica mundial. É o caso da ATTAC, sigla da “Associação para a Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos”, criada da França em 1998. Rapidamente a iniciativa começou a ganhar escala internacional, muito na onda do altermundismo e das articulações em torno das diversas etapas do Fórum Social Mundial.

Após a crise devastadora iniciada em 2008, aquilo que poderia parecer mais a pauta de um movimento de características típicas de esquerda foi aos pouco sendo debatido – quem diria? – no coração mesmo do establishment do capitalismo financeiro e internacional.

No Brasil, a grande imprensa nunca deu eco a tais debates. No ano passado, passou em branco, nos jornais, uma importante iniciativa: o lançamento da publicação Globalização para Todos – Taxação Solidária sobre os Fluxos Financeiros Internacionais . O livro é uma co-edição do IPEA com a Fundação Alexandre Gusmão, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores.

É claro que esse processo de mudança é bastante lento. Nem está assegurado que o FMI sustente a nova posição por muito tempo. Mas a mudança de cenário não deve ser desperdiçada. Esse é o momento para que os governos identificados com uma ordem internacional mais justa e menos desigual, bem como as entidades do movimento social, reforcem suas ações no sentido de recuperar a ideia do imposto Tobin e as sugestões da ATTAC. Além do elemento simbólico de se promover maior controle sobre a especulação e o rentismo desenfreados, a medida permitiria arrecadar recursos não desprezíveis para o combate à miséria, à fome e às injustiças no mundo contemporâneo. E o mais importante é que os benefícios são enormes quando contrapostos aos custos irrisórios da medida. A título de exemplo, caso fosse adotada uma alíquota insignificante de 0,01% sobre as operações no mercado financeiro internacional, as projeções falam de uma soma anual de US 300 bilhões para o fundo que vier a ser constituído.

Nada mal para um primeiro passo na construção de um mundo melhor, menos desigual e mais fraterno.

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