Polêmica: O fantasma do autoritarismo?

Processo bolivariano promoveu mobilização popular inédita. Mas tendência à hierarquização, verificada desde o final de 2010, pode levar ao desastre

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Entrevista com Edgardo Lander | Tradução: Daniela Frabasile

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Desde dezembro do ano passado, existe uma nova situação na Venezuela. A ação legislativa foi limitada pela aprovação da Lei Habilitante e reforma dos procedimentos da Assembleia Nacional. Qual a sua leitura desses eventos?

Todos esses fatos sõ efetivamente passos rumo à redução da esfera pública e do debate político. Em termos estritamente numéricos, o governo perdeu as eleições de 26 de setembro de 2010. Se contarmos com os votos obtidos pelo PPT (Pátria Para Todos) — um antigo aliado do governo, mas que hoje é partido de oposição –, esta teve 52% dos votos.

O outro problema é como a Assembleia foi constituída. A nova lei eleitoral de 2009 limitou a representação proporcional e a representação das minorias, e modificou os distritos eleitorais. Isso levou a situações como a de Caracas, onde a oposição obteve (por uma pequena margem) mais votos, mas ainda assim a maioria dos deputados eleitos pertence ao PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela, no poder).

O sistema eleitoral, que era muito bom e confiável, tornou-se enganoso, no sentido de que não representa genuinamente a vontade dos eleitores. Entretanto, a realidade é que, após esses resultados, o governo não tem, sozinho, a maioria necessária para aprovar as leis mais importantes e assegurar a nomeação de autoridades públicas de alto nível, como juízes do Supremo Tribunal.

Por que o governo nega essa realidade?

Existe a impressão generalizada na sociedade — não apenas da oposição, mas também entre aqueles que apoiaram o processo de mudanças durante todos esses anos — de que estamos em uma situação de deterioração; de que a oposição está ganhando espaço também entre as classes populares (como é possível perceber com os resultados eleitorais em áreas como Petare, La Vega e Caricuao, por exemplo). Esse fato não pode ser ignorado.

Em dezembro, surgiram dois documentos muito importantes. Um, de alguns líderes do PSUV, chamava-se UmaProposta para a Presente Emergência da Revolução Bolivariana. Apesar de apresentar uma reflexão crítica sobre muitos problemas, enfatizava a falta de liderança coletiva e a ausência de debates e construção coletiva de propostas.

O outro era um editorial da Tribuna Popular (jornal oficial do Partido Comunista Venezuelano), no qual a preocupação principal era com a falta de liderança coletiva no processo revolucionário. Isso é o que os comunistas estão falando. Diga-se isso publicamente ou não, o apoio ao governo está diminuindo, e entre as organizações sociais e apoiadores de Chávez existe uma grande sensação de desconforto e reivindicações de mudanças e correção de erros.

Pode-se tentar superar as dificuldades por diversos caminhos. Uma seria propor, como fazem muitos setores populares, uma radicalização da democracia. Isso requereria uma abertura a espaços para participação, lugares de debates e uma pluralidade de iniciativas da sociedade venezuelana. Mas estamos em uma direção contrária: tomadas de decisão mais hierárquicas e maior concentração de poder.

Seria o caminho por um beco sem saída, uma vez que coloca em primeiro plano interesses de curto prazo, e prioriza o controle do governo e do estado, que irão ameaçar dois processos fundamentais. O primeiro é a construção de uma sociedade mais democrática através da participação e a construção de novas hegemonias e uma sociedade alternativa. O segundo é a viabilização e continuidade dos processos de mudança, porque quando existem imposições de cima, elas geram poucas mudanças.

Ande isso pode conduzir?

O pior que pode acontecer na Venezuela seria uma situação na qual nos confrontemos com duas opções: stalinismo ou neoliberalismo. Se isso acontecer, estaremos em uma grande confusão. Alguns afirmam, por exemplo, que a oposição não tem um programa. Não é verdade: ela tem um programa, e ele se chama neoliberalismo. A ideia de um mercado livre, aberto a investimentos estrangeiros, provável privatização da PDVSA (Petróleos da Venezuela): tudo isso abre um pacote de medidas que não precisam ser inventadas, porque já existem. Por outro lado, ainda temos que ver se há a possibilidade de construir uma sociedade mais democrática, e se o socialismo é necessariamente stalinismo.

O que significa se de esquerda atualmente?

Os projetos socialistas e aqueles que foram inspirados por Marx nos séculos 19 e 20 eram ligados à construção de um socialismo de estado e de desenvolvimento. A imaginação coletiva é profundamente monocultural e eurocêntrica, visualiza o desenvolvimento como o uso de forças produtivas, ciência e tecnologia, e coloca a liberdade acima da necessidade.

Atualmente, os desafios para a esquerda têm várias características em comum com o passado, uma vez que ainda estamos fundamentalmente envolvidos em uma luta pela equidade, igualdade entre seres humanos. Os Estados Unidos são um exemplo, onde dois ou três por cento dos mais ricos aproveitam o crescimento econômico, enquanto os salários da maioria das pessoas permanecem os mesmos há décadas. A inquietação social e os protestos que resultaram explicam, em grande medidas, a militarização do mundo.

A alternativa não impor uma igualdade absoluta, porque não seria democrático. Mas significa ter a igualdade como um valor permanente, envolvido na constante luta contra a desigualdade que a sociedade cria. Na mina opinião, ser de esquerda significa coerência com uma ética da vida, e busca de ações coletivas. Não podemos destruir a natureza; precisamos de um reconhecimento radical da pluralidade do nosso planeta, de nossos povos e de nossas ações. Esses são os desafios: encontrar um equilíbrio entre igualdade e diversidade, preservando as condições que fazem a vida possível no planeta Terra.

Deveríamos radicalizar também na busca de democracia participativa, a democracia pró-ativa que o chavismo não só proclamou, mas também gerou. Mas é preciso colocar as questões: o que essas ações recentes do governo têm de democráticas? Repito, a radicalização pode ir em direções muito diferentes. Esse governo criou uma contradição, às vezes entre discurso e prática; às vezes, entre suas próprias práticas; às vezes, entre o incentivo à organização popular e as tomadas de decisão extremamente hierárquicas.

Na Venezuela, testemunhamos um enorme processo de organização popular, desconhecido na história do país, e vimos profundas transformações da cultura popular em relação ao empoderamento, dando ao povo o poder de intervir com dignidade em seu futuro. Essa é uma realidade inegável do processo que vivemos.

Mas há também luta constante com a concentração de poder e tomadas de decisão hierárquicas. Os debates continuam, mas as decisões surgem de cima, sem avisos. É um mundo quase esquizofrênico – e corre o risco de esvaziar qualquer participação no processo. É isso que vimos na lei universitária vetada, que falava sobre o “modo de produção socialista”, da construção de uma “sociedade socialista”, de uma “pátria socialista Bolivariana”, como se afirmar retoricamente o socialismo resolvesse algum problema. Mas o socialismo não pode ser usado como selo para evitar o debate.

Quais as vantagens da democracia participativa contra a democracia representativa?

Existem muitas razões pelas quais uma democracia unicamente representativa apresenta sérias limitações. Apesar disso, nas sociedades de hoje existem problemas que, por sua natureza, requerem mecanismos de representação para tomar decisões. Isso é inevitável, e requer uma esfera pública democrática, que inclui componentes importantes como a mídia, debates e um Parlamento.

A democracia participativa e direta é também profundamente importante para o aprofundamento da democracia e para criar contrapesos contra os mecanismos de concentração de poder que tendem a acompanhar a democracia representativa. A Constituição diz isso muito claramente: não é a democracia participativa que substitui a democracia representativa; mas ambos são parte de um processo democrático muito mais profundo.

O chavismo age como se a oposição fosse algo sem vida, como se estivesse condenada ao fracasso e, portanto, todos equívocos, erros e até fracassos do governo fossem meramente dificuldades, não existindo a hipótese do retorno da oposição. Você acredita nisso?

Não sei se o governo, a oposição, ou alguém, de fato acredita nisso. A razão pela qual existe tanto desconforto no interior do chavismo é o reconhecimento de sérios problemas.

É preciso reconhecer os problemas e retificá-los em áreas de prestação de serviços públicos, verticalismo e falta de democracia efetiva. Quem prefere negar os problemas, ou tratá-los como invenções da oposição – e portanto mentiras – anda de olhos vendados, e acabará em desastre.

Se daqui em diante o Estado fechar espaços de democracia – mesmo com o objetivo de salvar o governo – isso marcaria o fracasso do projeto, um fracasso em transformar a sociedade e a democracia. As consequências seriam devastadoras para toda a América Latina, uma vez que marcariam o retorno da oposição e da direita.

Edgardo Lander é professor de Cieências Sociais na Universidade Central da Venezuela, em Caracas. É, também, um dos líderes entre os pensadores e escritores da esquerda na Venezuela, Apoia a revolução venezuelana e faz críticas construtivas a ela e ao governo de Chávez. Envolveu-se ativamente nos movimentos sociais nas Américas que derrotaram a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). É membro do grupo de pesquisa sobre Hegemonias e Emancipações do Conselho de Ciências Sociais da América Latina e do conselho editorial da publicação acadeêmica Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales.

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