O falso documentário

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I’m Still Here relata falsa a conversão do ator Joaquin Phoenix em rapper; questionando a verdade no documentário.

 

Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.

Os falsos documentários não são mais novidade na paisagem cinematográfica atual. Faz décadas que o cinema aprendeu a usar e subverter a linguagem ou do documentário, ou do reality show, com seus ângulos, fotografias e cenas particulares, para construir um discurso sobre o cinema ou sobre a sociedade.

De Zelig, com seu Woody Allen camaleão, aos corrosivos Redacted e Exit Through The Gift Shop, os falsos documentários já se construíram de todas as formas, das mais transparentes àquelas que, mesmo após a sessão, não elucidam o limite entre o real e a ficção. As grandes diferenças entre estes filmes encontram-se na intenção do discurso e na relação com o espectador: a linguagem “realista” é utilizada apenas para a diversão, ela pretende propor uma reflexão, persuadir? Até que ponto o espectador é manipulado ou cúmplice nesta empreitada?

I’m Still Here vem adicionar uma conotação diferente daquela mostrada nos filmes acima. Embora ele seja um dos mais simples no uso de uma linguagem realista, seu discurso é de longe o mais ambicioso, mais publicitário. Afinal, diretor e ator encarnaram seus papéis fora das câmeras para tentar vender o tal documentário como real, ou ao menos fazer uma grande publicidade deste produto. Joaquin Phoenix de fato anunciou, após as filmagens de Amantes, que abandonaria a carreira de ator para se transformar em cantor de hip hop. Poucos acreditaram nesta conversão repentina, mas o blefe durou tanto tempo (mais de um ano) que alguns acabaram por comprar a ideia. Enquanto isso, Phoenix aparecia nos programas de televisão com um físico e uma aparência descuidadas, refletindo o tal abandono de qualquer atenção à própria imagem.

O resultado teria sido gravado por Casey Affleck, cunhado de Phoenix, num documentário caseiro, resultando neste filme, real (no sentido em que ele realmente existe, independentemente da falsa publicidade criada pela equipe), mas não sobre uma realidade (não, Phoenix não abandonou as cenas). Pode-se ainda falar que ele é “naturalista” (câmera na mão, luz natural, sensação de improviso) ou “realista” (verossímil, tem a aparência de algo que se vê no mundo), ou mesmo “verdadeiro” (seu discurso sobre a falsidade é autêntico). Mesmo o termo “falso documentário” pode ser questionado, já que o documentário existe, sendo portanto “real” – apenas seu tema é baseado numa afirmação falsa.

Longe desta confusão de terminologia, o fato é que I’m Still Here é inteligente o suficiente para se apegar não somente à linguagem dos reality shows e documentários, mas também a alguns símbolos que parecem ser marca de ausência de trucagens ou manipulação. Os dois elementos principais parecem ser a nudez e a escatologia. Há pelo menos meia dúzia de pessoas em momentos de nudez frontal, em cenas sexuais (sem mostrar o sexo propriamente dito), além de urina, fezes e litros de vômito saindo da boca de Phoenix. Como ele poderia ter guardado tal quantidade de líquido na boca, num plano sem cortes, se aquilo fosse uma trucagem?

O fato é que, diante da manipulação de informações, o fator de maior credibilidade para Casey Affleck é o corpo de seu ator, devidamente remodelado em proporções absurdas, no intuito de sugerir que as outras inverossimilhanças ao redor também poderiam ser reais. A barriga saliente e os cabelos jamais penteados parecem provar que pelo menos isto faz parte de uma realidade, que o ator foi obrigado a modificar sua aparência para o papel. Estamos próximos de um valor hollywoodiano estável, que o é da transformação física: diante da incapacidade simbólica de dissociar a estrela de seu personagem, a mudança física radical instaura uma aparência de dificuldade, de sacrifício e portanto de boa atuação.

Apesar destes elementos de persuasão, o filme é pouquíssimo credível em seu discurso por tentar construir um documentário “ao vivo”, enquanto a ação acontece. Enquanto a maioria dos documentários é obrigada a relatar os fatos como eles teriam ocorrido, I’m Still Here forja a possibilidade do cinema feito ao vivo, com uma espécie de “diretor onisciente”, sempre no foco da ação enquanto ela se desenvolve. A câmera acompanha Phoenix desde suas hesitações até o anúncio e a reconversão em rapper. A imagem não está presente para apreender fatos do mundo, e sim o mundo só parece existir quando há câmeras para apreendê-lo – sinal marcante da ficção, ou pelo menos da “mise en scène”, de algo construído.

O que este filme traz de novo ao “subgênero” dos falsos documentários? Talvez o mais notável neste projeto seja realmente sua dimensão extra-fílmica, todo o esforço fora das câmeras para dar uma impressão de realidade. O filme em si, o resultado deste esforço, exibe uma reflexão de imagens muito menos profunda. I’m Still Here funciona como estratégia de marketing, por pôr em risco um fator de credibilidade considerável – a fama de Joaquin Phoenix. Que discurso se articula através destas “verdadeiras imagens sobre uma informação falsa”? Nada sobre o cinema em si (estamos longe do “tratado sobre a arte” que é Exit Through The Gift Shop), nem tanto sobre o estrelato. Esta é mais uma prova de que os limites da credibilidade do espectador podem ser testados como finalidade em si, de maneira cada vez mais ousada. Por esta razão, I’m Still Here, o filme, é apenas um detalhe de menor importância dentro de I’m Still Here, o blefe midiático.

I’m Still Here (2010)

Filme norte-americano dirigido por Casey Affleck.

Com Joaquin Phoenix, Casey Affleck, Antony Langdon, P. Diddy, Ben Stiller, David Letterman.

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