O drama do cinema de elite

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O festival de Cannes, segundo seu diretor, é encarregado de “defender o cinema de autor”. Pequeno lembrete sobre esta figura tão frágil quanto autoritária que é o autor de cinema.

Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.

 

Com o início de mais uma edição do festival de cinema de Cannes, o diretor artístico, Thierry Frémaux, multiplicou suas aparições na mídia para defender suas escolhas e seus trabalhos. Ele se apresentou em pelo menos uma mesa redonda ou entrevista por dia. Por fim, as questões se repetiam, mas as respostas se tornaram cada vez mais interessantes: “Nós temos que ajudar este cinema a existir”, “Todos nós (críticos) sabemos o que é um filme bom, essa é a nossa profissão” ou ainda “A seleção deste ano está objetivamente boa”.

Aparentemente, estes comentários não chocaram ninguém. Alguns críticos inclusive lançaram: “Obrigado, Senhor Frémaux, por ajudar este cinema a ser visto”. Ora, seria interessante refletir um instante sobre as consequências deste tipo de pensamento para o festival, para o cinema e para as noções de arte popular e arte erudita. Primeiramente, é preciso sublinhar que este artigo não pretende atacar o diretor geral de Cannes nem o festival em si, apenas uma ideia muito comum que ele está longe de representar sozinho – ela se difunde há pelo menos 60 anos pela crítica de cinema francesa.

Este tipo de discurso resume Cannes a uma certa forma de militância, de luta pelo “cinema de autor”. A cada ano lança-se um novo apelo em sua defesa, reclama-se da crise deste segmento, declara-se a morte de tal ou tal cinematografia nacional por falta e público e de apoios do governo. A crítica de cinema é uma atividade que sempre se estimou em crise, mesmo durante os anos 1920, e o dito cinema de arte, que apareceu pouco depois no cenário internacional, sempre lançou ameaças simbólicas ao mercado que ousar destruí-lo (“a morte da crítica seria a morte do cinema”, diziam os franceses, ou “o público precisa de autores para se identificar”, dizia Bazin). Os “grandes autores”, figuras essenciais da existência de Cannes, representam portanto uma necessidade, uma luta de vítimas contra o sistema.

Chega a ser irônico ver o discurso vitimizador ter sua origem dentro de um dos festivais mais ricos do mundo, com um dos mercados de cinema mais lucrativos, o Marché du Film – esta outra metade do festival que o diretor artístico nunca cita. O crítico e o diretor de “filmes de autor” se unem numa mesma entidade, simultaneamente frágil e poderosa, democrática e autoritária: é Cannes que “define quais filmes serão vistos”, repetindo sempre os mesmos grandes diretores, mas qualquer ataque a esta configuração parece se dirigir não aos poderosos da arte cinematográfica, e sim aos frágeis representantes de uma profissão instável. Frémaux defendia inclusive seu esforço pela diversidade, citando a existência de dois diretores estreantes na seleção oficial de 2011, além de quatro mulheres, um filme em 3D e um blockbuster americano. Ora, esses filmes são justamente a exceção dentre os 20 escolhidos – o que só reforça a ideia de que o cinema/crítica de autor ainda é um território essencialmente masculino, branco, europeu e conservador.

O jornal francês de esquerda Libération escreveu inclusive um longo artigo de capa declarando a “morte do festival de Cannes” se ele não souber se adaptar às novas tecnologias e ao novo cinema. Talvez o problema seja justamente este: o cinema evoluiu em discurso e técnica, ao mesmo tempo a cinefilia popular evoluiu com novos tipos de olhar e de ídolos, com o exibicionismo, com YouTube e festivais de filmes feitos com celulares, mas Cannes é conservadora, o templo do “cinema de autor que nós amamos tanto” – ainda segundo Frémaux -, um cinema menospreza geralmente as comédias, os documentários, os filmes do sul do globo, o engajamento político evidente, as novas tecnologias, os diretores estreantes não midiatizados, o cinema comercial e popular. Esta é uma forma de pensar que menospreza, acima de tudo, a existência de outros polos de inovação. Cannes se apresenta como “o cinema de margem”, mas talvez seja mais correto vê-la como a elite da margem, uma margem que cria voluntariamente esta distinção, necessária à instituição de seu valor simbólico. Por isso, nada de menção ao mercado, ao dinheiro investido, ao sucesso comercial em salas: tanto o festival quanto os filmes nascem de um amor paterno, abstrato, e são construídos apenas pela “paixão à sétima arte”.

Talvez o jornal Libération esteja errado quando anuncia a morte certeira de Cannes: esta forma de pensamento reacionário (no sentido estrito do termo) existe pelo menos desde 1950, e não mudou nada em sua estrutura desde então, pelo número significativo de apoio à política dos autores. Ao invés de “morte”, o que pode acontecer é este festival se separar cada vez mais da realidade do mercado e da arte cinematográficos (não, esses dois termos não são antônimos), já que o cinema se transforma radicalmente, mas o amor romântico e pseudo-objetivo do cinema de autor recusa a se adaptar.

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