O dilema da barata

Ameaçar chamar o zelador, outro macho, para invadir território do Valter e executar o que era dele esperado, era demais…

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Por Ney Pereira, editor do blog Casos Crônicos

– Então você tá me dizendo que a sua felicidade depende da morte deste inseto?

Valter soltou a frase não só pra confirmar o que já esperava, mas também pra ver se assim, dita em voz alta, a informação fazia mais sentido pra ele. Não fazia, mas Cristina foi taxativa:

– É um jeito um pouco simplista de ver a situação, mas nem por isso incorreto. Eu quero essa barata morta. Agora.

Apesar de progressos rumo à igualdade entre homens e mulheres, ainda há certos papéis definidos, coisas que são esperadas de um e outro. Pra Cristina, por exemplo, matar a barata na parede da cozinha era claramente obrigação do Valter.

– Com o chinelo, disse Cris, imperativa, assim que viu o marido chegando resignado, com a lata de veneno.

– Chinelo? Porque com o chinelo?

– Veneno é muito cruel, amor. Ela fica se debatendo, asfixiada…

Nem ela acreditou na piedade em sua voz. Valter não precisou apertar pra obter a confissão:

– Ok, a verdade é que com o veneno você nunca tem certeza. Ela sai cambaleando, some de vista, e um belo dia você abre um armário e tá lá o baratão. Tem que ser na chinelada, decretou, descalçando o pé esquerdo e entregando a Valter a arma do crime.

Acontece que, assim como nenhuma mulher jamais assinou um contrato assumindo a responsabilidade pelas tarefas do lar, não há registro formal de homem algum clamando pra si o Departamento de Controle de Pragas Domésticas. Nosso Valter, por exemplo, preferia lavar uma pia de louça pós-almoço de domingo a matar uma barata. E também não era lá muito proficiente em outras prendas tidas como masculinas.

– Hipoteticamente falando, o que você faria se eu me recusasse?

– Chamaria o Seu Afonso, disse Cristina, distraidamente. Ele mata uma barata que é uma beleza.

São parcos os recursos da mente masculina. O mesmo já não se pode dizer da sua contraparte venusiana. Quando começou a discussão, Cristina já tinha na ponta da língua o argumento que a encerraria. Ameaçar chamar o zelador, um outro macho, para invadir o território do Valter e executar o que era dele esperado, era mais do que o pobre rapaz poderia suportar.

– Então o seu Afonso mata barata melhor do que eu? E o que mais ele faz? Troca o courinho da torneira?

– Não disse isso, falou Cristina, saboreando o efeito da cutucada. O outrora vacilante Soldado do Veneno Aerossol agora se transformava num sanguinário Exterminador de Artrópodes, de olhos injetados e chinelo em punho. Valter já negociava.

– Eu mato. Mas não limpo a parede depois. Fica uma nojeira.

Cris ia abrindo a boca pra reclamar, mas ele não deu tempo.

– Quando você espreme um cravo nas minhas costas, contra a minha vontade, me fazendo sentir uma dor que eu não queria, você limpa a meleca na minha camiseta, dizendo que está me fazendo um bem. Eu estou claramente te fazendo um bem. Você limpa a parede.

Cristina pesou o argumento e decidiu que seu grau de feminismo poderia suportar aquela concessão em nome da aniquilação do inimigo. Topou.

Valter ainda tentava achar um significado maior pra tudo aquilo. Devia ser um ritual de sacrifício – o cadáver da barata aplaca a ira dos deuses, que em troca promovem a paz mundial ou pagam a mensalidade da pós graduação.

O grau de cavalheirismo deste narrador não permite uma descrição detalhada da cena que se passou a seguir – digamos apenas que o problema foi resolvido.

Não teve beijo da mocinha agradecida no herói – como já estava claro, era apenas sua obrigação.

– Eu também não dei beijinho no Seu Afonso, explicou Cris, não sem razão.

No dia seguinte, o pai do Valter atende o telefone ainda com voz de sono.

– Oi, Valtinho, aconteceu alguma coisa?

– Mais ou menos, pai. Preciso de você.

– O que foi, meu filho?

– Preciso que você me ensine urgente a trocar a resistência do chuveiro, desentupir a pia e usar a furadeira.

– Ok, meu filho, mas porque…

– Já passou da hora, pai. Mais dia menos dia, o Seu Afonso ganha beijinho.

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