O delírio e a cegueira

Chegar próximo das motivações complexas de seres ficcionais permite entender o estranho. Tem-se aí porta de entrada para si mesmo

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Por Theotonio de Paiva | Imagem: Urs Kahler

Experiência que tem animado, com o mais profundo interesse, algumas grandes expressões da história do pensamento, a ideia de conhecer aqueles desejos e motivações terríveis, que alguns personagens possuem como eixo central em suas criações, tem mobilizado, ao longo dos tempos, tanto estudos da literatura, quanto da dramaturgia. E, exatamente pela sua condição de serem figuras invariavelmente contraditórias, tais criações, apesar de encerrarem um princípio mobilizador determinante em suas condutas, não necessariamente revelam seus objetivos de imediato. E é exatamente isso o que as torna sedutoras e pontos de partida para toda a sorte de reflexão sobre os habitantes dessa rocha que gira em torno de uma bola de fogo.

Na medida em que nos aproximamos daquelas motivações e objetivos, somos levados a entender melhor, ainda que muito modestamente, acerca daquele homem, palpável, concreto. Contudo, aí temos um outro problema: ainda é possível afirmar, sem nenhum alcance da dúvida, que tal ser assim exista nesse início de século, após tantas transformações, tantos descentramentos, como sabidamente sintetizou Stuart Hall? Posto o devido reparo, caro leitor, precisamos seguir adiante.

De todo modo, resta a especulação: como proceder a essa façanha, de procurar as mais difíceis traduções da alma humana, se não for através da arte? Das coisas que aprendemos e não aprendemos nos discos, não seria difícil esquadrinhar, por exemplo, aquilo que se acha perdido nas conversas mais ou menos íntimas ou nos conchavos, bem como a indecisão ou o medo nas falas interditas. E contaríamos, talvez, as choramingas entre grandes conhecidos, assim como os comentários ignominiosos e patéticos da internet, até desemborcarmos nos julgamentos públicos, e a redenção através da cicuta ou do choro do discípulo. Evidentemente, desde que este tenha talento suficiente para deixar o legado de uma grande obra.

Não é difícil perceber, pois, que nada lhe tira o mérito e a mediação segue como o grande encantamento da arte: aprender a ver e a transver, como dizia o poeta, é um exercício profundo.

E a arte jamais se furtou. A literatura, o teatro, o cinema, em suas mais distintas concepções, deram asas a algumas das criações mais notáveis do espírito humano. E, ao conceberem personagens-símbolos, chegaram muito perto do inferno e do maravilhoso.

Neste sentido, a aproximação com parte daquele imaginário, mais ou menos fantasioso, possibilita que, em nosso ato de decompor sistemas, através do qual o texto se fundamenta, possamos também estabelecer uma visada que ambiciona compreender mais detidamente os novos/velhos enigmas que porventura estejam surgindo. E é essa uma porta de entrada para a reinvenção da própria tradição literária.

Portanto, com grande engenho, não foram poucos os autores que conseguiram apresentar-nos algumas criações especialíssimas. Em muitas delas, alguns traços deixavam claro que a sua aposta substantiva se afirmava no “mundo dos homens”. Desse modo, objetivava-se compreender melhor o mundo real. E, nesse quadro, destacavam-se personagens que se definiam por guardarem algumas ambições a qualquer preço.

Aquieta o coração, leitora, pois não é tão simples encontrar sujeito que se preste a determinados serviços. A concretização de alguns objetivos, sabemos, encobre uma aceitação mais ou menos tácita de outras ordens de princípios, de composições de poder muito bem administradas, que incluem, paradoxalmente, em determinados casos, uma evidente subserviência a um outro mando, pois ninguém governa sozinho, diz o adágio. No frigir dos ovos, o elogio da vassalagem requer talento e arte.

Mas isso ainda não é nada. Na verdade, uma aceitação plena dessa nova condição, qualifica esse hipotético personagem-síntese a um duplo movimento de auto-afirmação e fechamento em si mesmo. E estará pronto a entregar a própria alma aos princípios mais abjetos, enquanto acredita, na verdade, que dedica a própria vida a uma consagração perpétua, dentro do espírito de uma auto-representação idealizada.

Evidentemente, compreenderá o leitor, parte significativa da sociedade, presente naquele mundo imaginário, está pronta, pelo menos, a intuir a natureza daqueles movimentos de poder. Desse modo, não seria difícil encontrar nas descrições, nas rubricas do autor, nas observâncias dos coros, a intensidade daquelas manobras.

Entretanto, assim como existem as coisas dizíveis, aconselhava-se, por uma outra medida, a não ir além de um silêncio constrangedor. Quantas vezes, os membros da sociedade, regidos por um Corifeu, não se detêm em suas angústias e se afastam de si mesmos? Quase sempre, nesse abandono, entregam ao destino aquela difícil medida de decisão – imprecisão da vida e de todos os governos.

Muitas das vezes, não é difícil vislumbrarmos, por detrás daqueles contornos terríveis, compreendidos como personagens de grande intensidade dramática, uma fantástica capacidade de desvelar o não compreendido. Naquelas jornadas, somos apresentados aos infortúnios. Profecias, motivações para crimes, assassinatos, golpes, perversões de toda ordem, bailam numa dança macabra, leitor inquieto, e nos conduzem a uma espécie de tragicidade plasmada na solidão, ou na loucura.

Contudo, no campo da grande arte, seja erudita ou popular, é preciso avançar até o fim. E então se constata que não há meios da imaginação dar meia volta e se aquietar intimidada. Ela avança e se pronuncia de um modo violento sobre os aspectos mais aflitivos. E cobra do leitor que lhe decifre o enigma. Mas, como se valer para tamanha empreitada? Qual a chave que se emprega?

Para entender a lógica das motivações de certas criações, muitas das vezes, é comum nos surpreendermos agindo como se fôssemos um ator. Como assim? Foi exatamente isso o que você leu, leitora. É uma lógica tão simples: o que eu faria se ali estivesse? De pronto, a roda do mistério começa a girar mais intensamente.

Nesse instante, nos orientamos mentalmente para compor um personagem. Rapidamente o abraçamos como uma partitura, que devesse ser construída a fim de chegar à arte da representação. E nos imaginamos, curiosos, em condições de tocar, ainda que de leve, a natureza difícil que nos causava admiração e perplexidade, medo e ira.

Ao mobilizar tantas mulheres e homens, essa roda do mistério é dona de uma intuição singular. Por qual motivo? É que ela mesma carrega, bem lá no alto, um raro instrumento de orientação, a antena da raça.

Para chegarmos a determinadas percepções, e o leitor já deve ter percebido há tempos, precisamos dispor igualmente de instrumentos, que nos permitam adivinhar aquilo que se esconde no outro canto do mundo. E, às vezes, para que se realize, esse encontro necessita apenas atravessar uma porta estreita a fim de se maravilhar. No outro lado de um muro, o olhar se depara com uma diversidade estupenda, não de respostas precisas, mas de novas e inquietantes perguntas.

Num jogo absolutamente lúdico, somos capazes de manejar alguma espécie de bússola, com feição diversa. Nessa nova condição, nos tornamos senhores de novos movimentos e percepções. No entanto, cuidado. Esse instrumento sensível pode confundir as direções das vagas no meio de uma tempestade, encobrindo a verdadeira vontade humana. Mergulhados nas aparências, chegam até nós as surpresas e os encantamentos, como chegaram até Ulysses os cantos durante a travessia. E tal assombro pode ser revelador ou simplesmente fatal.

Mundo que segue, não é difícil qualificar como uma experiência superior os sentimentos encontrados nas fibras internas daquelas construções literárias e teatrais, mesmo quando entendidas como as mais perversas e ignóbeis, semeaduras da cólera e do ódio. E, ao fazermos a incursão por aquela dimensão simbólica, somos levados a procurar o sentido ou a ausência de sentido da experiência humana.

Com qual objetivo tudo isso? – voltará a um ponto de retorno o nosso infatigável leitor. De algum modo, ao nos virarmos para esse problema, valendo-nos de uma curiosidade que não conseguimos aplacar, procuramos, com maior ou menor consciência, tentar desvendar algumas dimensões veladas, escondidas, escamoteadas, cuja força celebra algum tipo de conhecimento superior. O mal precisa ser re-conhecido.

Fundamentalmente, aceitamos o difícil hábito de nos deixar impactar, sobressaltar mesmo, pelas manifestações mais terríveis. E com elas, próximo a elas, somos tentados a entender o que a simples colocação de uma máscara na expressão do outro o transforma inexoravelmente. Às vezes, enquanto expressão de poder, em outras, como inapelável submissão à condição de servilismo. Em outras, as duas formas conjuminadas.

Mas não fiquemos somente nisso. Uma experiência dessa natureza – chegar próximo das motivações mais complexas de seres ficcionais – nos faz entender melhor em relação àquele que se apresenta como um estranho. E, de algum modo, paradoxalmente, tem-se aí também uma porta de entrada para si mesmo.

Algumas daquelas personas, feito máscaras construídas por mãos capazes de esculpir com todo o esmero um ríctus de estranha perversidade – aonde nos conduziriam? Pois bem, diria a leitora preocupada em entender o espírito humano, que tais personas surgiram curiosamente já imbuídas de uma confrontação categórica. Que tipo de confrontação? – me aproximo para entender melhor.

Elas precisam do conflito e da dor, responde afirmativamente. E argumenta, balançando-se com o corpo, como se através dele duvidasse daquilo que o hálito deixa escapar: essas mesmas personagens são ditadas por suas condições sociais e opções políticas. Emerge a condição de serem escravos de uma espécie de delírio, pois incapazes de reservarem alguma medida que ilumine a lenta agonia noite adentro.

Não conseguiriam voltar atrás? – provoco. É bem mais do que isso: não há como voltar atrás. Inflexíveis até a medula, não aprenderam a prescindir da espantosa violência que a espécie carrega como um sinal de Caim. E conclui: não seria difícil encontrar naqueles conflitos apresentados uma proposição maniqueísta de um mundo dividido rigorosamente entre homens bons e maus – e os maus evidentemente estariam sempre do outro lado, na mais desprezível aliança.

Com efeito, faço pelo meu lado algumas ponderações. Defendo que é comum procurar, por todos os meios, especializados ou não, denegrir o outro como um mal que mereça ser extirpado inapelavelmente.

Ora, num mundo que historicamente apresenta uma grande dificuldade em ser mais bem compreendido – responde timidamente – algumas manifestações de ódios e violência soam como se acontecessem numa esfera que dificilmente encontra o seu sentido. Se quisermos ampliar o nosso entendimento, poderemos conjeturar sobre os verdadeiros responsáveis pela percepção de um mundo confuso. No entanto, é curioso notar o quanto ainda somos inundados por uma espécie de cegueira.

Por outro lado, algumas angustiantes observações notadas, aqui e ali, poderiam nos levar a especular se não estaríamos, diante do delírio e da cegueira, na condição de reféns. Eles serviriam como excelentes pontos de fuga a uma realidade tão hostil quanto encantadora. Contudo, é melhor parar por aqui, pois essa forma de ver as coisas talvez seja julgar de um modo muito cruel as ciências dos homens.

De todo modo, como responder à natureza de um quadro tão complexo e angustiante? E, nesse momento, talvez cedesse à tentação de chegar perto não apenas daqueles personagens ficcionais, mas de outros ainda, de outra sorte e natureza, porque reais. Mas isso eu deixarei por conta da minha atenta leitora.

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* Theotonio de Paiva é dramaturgo e diretor de teatro, doutor em Teoria Literária pela UFRJ e colaborador do Outras Palavras. O conjunto de seus textos publicados no site está aqui.

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3 comentários para "O delírio e a cegueira"

  1. Vitor Menezes disse:

    Grande Theotonio !!!
    Entender essas relações do ser com outros, ou consigo mesmo, só através das artes. As ciências delas derivam e delas dependem.
    “… E, ao conceberem personagens-símbolos, chegaram muito perto do inferno e do maravilhoso.”
    Personagens & símbolos… aí a essência de ser humano. Por isso, explicar ou definir o que é arte, ficará, sempre, para a próxima geração.

  2. Luzete Luzt disse:

    ah, theo gostei, sim, desta tua reflexão sobre homens e suas máscaras. e, claro, suas realidades mais escondidas e as tentativas de penetrá-las. mas tem coisas que são como os sonhos, elas não podem ser plenamente reveladas. são salvaguardas the nossa (des)humanidade… daí a arte. é ela a quem está permitido brincar e fazer de conta que (re)inventa o homem. e assim o homem conquista sobrevidas, né? quem foi que disse que se a vida fosse suficiente não haveria necessidade the arte. ou a arte é a prova de que a vida não é suficiente. algo assim…

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