No Norte do Chile, memórias de salitre e guerra

Visita a usina salitreira convida a examinar conflito que feriu unidade sul-americana no século 19, e deixou Bolívia sem mar

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Texto e foto: Elaine Santana, editora da coluna Outras Américas

Vende el “huasito” sus vacas,

sus caballos ensillados

porque dicen que en el Norte

ganan plata a puñados.

P’al Norte me voy, me voy

p’al Norte calichero

donde seré un caballero,

de bastón y de “tongoy”.

Canção popular da época da exploração salitreira*

 

A Oficina Salitreira Santa Laura fica a 47 quilômetros de Iquique na região de Tarapacá, no norte do Chile. Oficina salitreira é o nome que recebiam os diferentes centros de exploração que processavam salitre na região que hoje pertence ao Chile.

Aqui, o sol brilha sempre, incansável. É difícil mesmo encontrar uma sombra durante o dia. Mas assim que o sol se põe, o frio se instala e só vai embora quando o sol aparece novamente no dia seguinte.

Para visitar a oficina, dá para contratar um passeio turístico, mas fomos até lá por conta própria, no carro alugado por uns dias. Avistamos a oficina de longe cercada pelo deserto incandescente.

É impossível falar da Oficina Santa Laura e não falar da indústria salitreira, da Guerra do Pacífico e do processo de tomada de território peruano e boliviano por parte do governo chileno.

Então, vamos lá…

O salitre é uma mistura de nitrato de sódio (NaNO3) e nitrato de potássio (KNO3), encontrado naturalmente em grandes extensões na América do Sul, principalmente na Bolívia e no norte do Chile.

Ele é utilizado para evitar a proliferação de bactérias e realçar a cor dos alimentos em carnes defumadas e embutidos (salsichas, linguiças, salames). Também é usado como fertilizante de plantas.

Só que o grande interesse da Europa e Estados Unidos pelo salitre não tinha nada a ver com adubo ou conservação de alimentos embutidos. Na época, o salitre era usado para produção de pólvora e explosivos.

Diz uma lenda que o salitre na região de Tarapacá foi descoberto quando os indígenas da região fizeram uma fogueira e a terra pegou fogo junto com a lenha. O padre local foi avisado, recolheu umas amostras e assim começou o processo de extração de salitre na América da Sul.

Lenda ou não, a verdade é que uma parte do minério estava em território (região de Antofagasta) cuja soberania era disputada pelo Chile e pela Bolívia e uma parte estava em território que pertencia ao Peru (região de Tarapacá).

A disputa territorial vinha de longa data, com a Bolívia reclamando seu direito de acesso ao mar. Em 1866, através de um tratado, o Chile reconheceu o porto de Antofagasta como pertencente à Bolívia. Em troca, no entanto, o Chile passou a ter livre acesso para exploração de salitre na região pertencente a Bolívia e ao Peru.

Em 1879, porém, o ditador boliviano Hilarión Daza decidiu aumentar os impostos para exportação de salitre, rompendo assim, na visão do governo chileno, o tratado de 1866. As empresas chilenas que extraíam minério na região recusaram-se a pagar o imposto e o ditador resolveu, então, anunciar o sequestro dos bens pertencentes a elas.

No dia marcado para a execução do sequestro dos bens, tropas chilenas desembarcaram na região para proteger as propriedades. Em seguida, o Chile declarou guerra contra a Bolívia. Era 14 de fevereiro de 1879. A guerra acabou somente em 20 de outubro de 1883, com cerca de 20 mil mortos, entre civis e militares.

Com o fim do conflito, o Chile anexou a região de Tarapacá e as cidades de Arica e Tacna. Pertenciam ao Peru, que se recusara a permanecer neutro no conflito (em 1873, em segredo, Bolívia e Peru haviam assinado Tratado de Aliança Defensiva) e acabou tendo seu território invadido e aniquilado pelo Chile (Tacna foi devolvida ao governo peruano depois de plebiscito realizado em 1925, mas Arica continua a fazer parte do território chileno, assim como toda o restante da região de Tarapacá). A Bolívia perdeu, desde então, seu acesso ao mar.

Até hoje, são tensas as relações diplomáticas de Bolívia e Peru com o Chile. Muitos historiadores bolivianos clamam que grande parte dos problemas econômicos do país deve-se ao fato de este não ter acesso ao mar. A Bolívia segue tendo esperanças de que  Peru ou Chile cederão pequena parte de seu território para lhe assegurar passagem ao oceano.

Depois da guerra, o território onde a indústria salitreira estava instalada passou a pertencer ao Chile, mas as empresas que atuavam na região foram criadas com capital majoritariamente inglês e, em menor proporção, alemão e estadunidense.

A Oficina Santa Laura foi construída em 1870 pelo peruano Abraham Guillermo Wendell Tizon. Sem nunca ter produção significativa, passou, depois da Guerra, às mãos da The New Tamarugal Nitrate Company. Em função da baixa produtividade, os trabalhos foram novamente paralisados em 1913, e retomados em 1920, quando um novo sistema de extração foi instalado para a empresa “London Nitrate Co. Ltd”.

Santa Laura funcionou até 1961, quando foi abandonada. Nos anos subsequentes, sofreu desgastes do tempo e pilhagens.

Em 2005, foi declarada Patrimônio Histórico da Humanidade. Suas ruínas e vestígios nos dão uma boa ideia do que foi a época de ouro do salitre.

Quando descemos do carro, de longe já dava para ouvir o vento chacoalhando as paredes enferrujadas das casas de processamento. Dentro da casa de máquinas, os raios do sol vazavam por entre os buracos nos metais corroídos pelo tempo e o vento estalava as telhas soltas produzindo um barulho metálico constante e estridente.

Na sala de processamento, ainda dava para sentir o cheiro de nitrato. E algumas das máquinas tinham ainda um resíduo verde-amarelado, deixado pelo tratamento de salitre.

No lugar onde antigamente funcionava a casa grande, agora funciona um museu. Botinas ocupam a mesma vitrina que talheres e outros utensílios de cozinha. Longe do calor insuportável que fazia lá fora, me esbaldei com os objetos encontrados nas escavações dos vestígios deixados por quem passou por lá.

A indústria salitreira entrou em amplo declínio a partir de 1920, quando foi inventado o salitre sintético, que passou a ser usado na fabricação de pólvora. E acabou quase que definitivamente com a crise de 1929. Em pequenínissima escala, ainda existe exploração de salitre na região.

 Elaine Santana é fotógrafa e documentarista. Participa desde 2010 da Escola Livre de Comunicação Compartilhada de Outras Palavras. Sua viagem está sendo relatada, desde maio, em posts e fotos publicadas em seu blog:http://blog.elainesantana.com.br. Escreve, especialmente para o siteuma coluna quinzenal em que reflete sobre estas andanças e seu sentido. Leia aqui todas as edições anteriores.

*Tradução da canção no início do texto: Vende o homenzinho do campo as suas vacas, | seus cavalos selados, | porque dizem que no Norte, | ganha-se “grana” aos punhados. | P’o Norte eu vou, eu vou, | p’o Norte salitreiro, | onde serei um cavalheiro, | de bastão e de chapéu.

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Um comentario para "No Norte do Chile, memórias de salitre e guerra"

  1. Por mais paradoxal que possa parecer eu visitei o Museu do Mar em La Paz e alí pude constatar o sentimento de tristeza e nostalgia daquele povo sofrido pela perda do acesso ao mar.

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