Mostra de Cinema de Tiradentes, o anti-Oscar

Festival amplia sua aposta no cinema de invenção. Como evitar que se reduza a uma bolha, em que os realizadores dialogam apenas com seus pares?

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Festival amplia sua aposta no cinema autoral, de invenção e experiência. Desafio é evitar que este espaço de liberdade criativa reduza-se a uma bolha, onde realizadores dialogam apenas com seus pares 

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Não vamos falar, ao menos por enquanto, dos famigerados “filmes do Oscar”, que inundam as telas e a mídia todo início de ano. Tem tempo para isso. Hoje é dia de falar da Mostra de Cinema de Tiradentes, a pleno vapor em sua vigésima edição. Entre os festivais brasileiros, é o que aposta mais radicalmente no cinema autoral, de invenção, de experiência, ou seja lá como se queira chamar esse punhado de filmes estranhos ao mercado e avessos às classificações. De certo modo, é o anti-Oscar.

Predominam aqui os jovens realizadores, mas há destaque também para os veteranos que não se curvaram às convenções e conveniências (estéticas, políticas, mercadológicas). Uma das homenageadas deste ano foi a atriz e cineasta Helena Ignez, e um dos filmes mais aguardados é Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho, que comparece também com um novo curta, Gozo/gozar.

Mas vamos aos novos. Dos sete longas-metragens concorrentes da mostra Aurora, vi quatro. Dois ainda serão exibidos hoje (sexta-feira, 27 de janeiro) e perdi a sessão de Baronesa, de Juliana Antunes, muito bem recebido pelo público e pela crítica.

Cinema em esboço

Os quatro vistos são um bom retrato do que costuma ser a produção que trafega por Tiradentes: estimulantes, inventivos, íntegros, mas também um tanto falhos, por vezes claudicantes, como projetos que não se cumpriram totalmente. Em conjunto, passam a ideia de um cinema em esboço, em formação, em busca de um caminho mais firme.

O mais bem-sucedido dos quatro, isto é, aquele que parece levar a cabo mais inteiramente sua proposta, é Sem raiz, de Renan Rovida. Produzido pela Tela Suja, que se apresenta como um “coletivo anticapitalista”, o filme retrata o cotidiano, os sonhos e frustrações de quatro trabalhadoras da Grande São Paulo: uma desempregada que vende flores no semáforo, uma operadora de telemarketing que sonha em construir uma creche, uma corretora imobiliária que quer morar no campo e uma professora universitária vinda da Argentina.

Com uma mise-en-scène ao mesmo tempo precisa e aberta ao improviso e ao acaso, feita predominantemente de planos fixos mais ou menos longos, a narrativa observa suas personagens a uma espécie de meia-distância, permitindo que entrem em quadro os ruídos e “sujeiras” da metrópole. Por meio dessas histórias pessoais, delineia-se claramente o movimento sufocante, anônimo e onipresente do capital, a tornar precárias as relações e restringir os espaços para o desejo e o sonho. Um belo longa de estreia do diretor e, salvo engano, também de seu coletivo.

Pornochanchada revisitada

Outro longa igualmente animador, mas por motivos diferentes, é o documentário Histórias que nosso cinema (não) contava, da também estreante Fernanda Pessoa. É um filme de montagem, supostamente só com cenas de pornochanchadas dos anos 1970, nas quais a diretora pinçou referências à realidade do período de auge e início do declínio da ditadura militar. Digo “supostamente” porque a compilação inclui trechos de longas de Antônio Calmon, como Nos embalos de Ipanema (1978) e Terror e êxtase (1979), que dificilmente poderiam ser enquadrados no gênero.

Feita a ressalva, é impressionante como o documentário revela o que, naquela filmografia tão subvalorizada, estava diante dos nossos olhos e no entanto não víamos, pelo menos não com a devida atenção: referências não apenas ao arbítrio militar, mas às contradições sociais, à segregação racial, às questões de gênero, às mudanças de costumes e às reações a elas, à avassaladora presença da televisão e da publicidade, ao avanço da sociedade de consumo.

Interessante mesmo seria observar a recepção de Histórias que nosso cinema (não) contava por diferentes plateias, em termos de faixa etária (quem viveu e quem não viveu aquela época) e de extração social. Uma coisa é certa: o público popular que lotava os cinemas para ver aquelas pornochanchadas não existe mais. Nas últimas décadas houve uma elitização do circuito exibidor, e a demanda popular por ficção e entretenimento passou a ser suprida hegemonicamente pela TV.

Autorreferência e metalinguagem

O próprio cinema é também, desde o título, o tema central de Um filme de cinema, de Thiago B. Mendonça, vencedor do Aurora do ano passado com Jovens infelizes. Desta vez, trata-se de uma curiosa ficção “familiar” estrelada pelas duas filhas do diretor, em especial Bebel, de uns oito anos, que deseja fazer um filme para a escola e pede emprestada a câmera do pai (Rodrigo Scarpelli), um cineasta em crise criativa.

Essa história singela, que espelha parcialmente a própria situação familiar do diretor, acaba assumindo um tom de fábula infantil que homenageia o “primeiro cinema” (de Lumière e Méliès a Chaplin e Buster Keaton) como um território de descoberta, invenção e poesia análogo à infância. A articulação de cenas dos filmes mudos com a narrativa familiar nem sempre funciona bem, e a encenação parece por vezes um tanto frouxa, mas o resultado final é mais que simpático e deixa a sensação de que tudo o que veio depois já estava inscrito, ao menos em potência, naquele cinema dos pioneiros.

Por fim, Subybaya, de Leo Pyrata, é uma comédia metalinguística centrada na construção de uma personagem feminina no Brasil de hoje e nas questões de gênero que isso suscita. O desenvolvimento da narrativa, que acompanha o dia a dia de uma jovem insatisfeita de classe média de Belo Horizonte, é pontuado por críticas de um grupo de implacáveis espectadoras feministas. A piada se completa com a atuação do próprio diretor como um personagem de macho cafajeste. O tom é um tanto juvenil, com uma autocrítica que acaba funcionando como autodefesa, mas não deixa de ser divertido.

Dito tudo isso, o grande mérito da Mostra de Tiradentes dos últimos anos – revelar e fomentar uma produção inquieta, à margem do mercado – traz também um risco e um desafio. O risco é de que esse oásis de liberdade criativa se torne uma bolha, uma redoma, em que os realizadores dialoguem somente com seus pares e com o público cinéfilo local, que se habituou à “estranheza” de seus filmes. O desafio é não deixar que isso aconteça, é ajudar essa produção a ganhar visibilidade e encontrar suas plateias. Quem disse que é fácil?

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