Mário de Andrade revisita o Modernismo (2)

Em ensaio de 1942, escritor opina: movimento inovou por buscar, além da pesquisa estética, estabilização da consciência criadora nacional

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Outras Palavras lança série de textos para celebrar escritor cuja obra parece cada vez mais atual, na Cultura e Política

Em ensaio publicado em 1942, escritor opina: movimento inovou por buscar, além da pesquisa estética, estabilização da consciência criadora nacional

Por Mário de Andrade | Imagem: Tarsila do Amaral

“Outras Palavras” publica o ensaio de Mário de Andrade sobre o movimento modernista em duas partes. A primeira pode ser lida aqui. Estamos diante de uma notável análise crítica do mais significativo movimento cultural do século passado. Além disso, é possível ver nela um precioso documento, no qual o autor revê sua participação nessa criação destruidora do espírito humano. (Theotônio de Paiva, editor de Oswald60)

Capítulo 3

Não cabe aqui o processo integral do movimento modernista. O que o caracterizou essencialmente, a meu ver, foi a fusão de três princípios fundamentais:

1.º – o direito à pesquisa estética;

2.º – a atualização da inteligência artística brasileira;

3.º – a estabilização de uma consciência criadora nacional.

Nada disso representa exatamente uma inovação e de tudo encontramos exemplos na história artística do Brasil: a fundamental, a gloriosa novidade, imposta pelo movimento, foi a conjugação dessas três normas num todo orgânico da consciência coletiva. E se dantes, nós distinguimos a estabilização assombrosa da consciência nacional num Gregório de Matos, ou, mais natural e eficiente, num Castro Alves, é certo que a nacionalidade deste, como o nacionalismo do outro, de um Carlos Gomes e até mesmo de um Almeida Júnior, eram episódios como realidade do espírito. E em qualquer caso era um individualismo. Quanto ao direito de pesquisa e atualização universal da criação artística, é incontestável que todos os movimentos históricos das nossas artes se basearam no academismo. Com alguma exceção rara e sem a menor repercussão coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas já consagradas, se eliminava assim o direito de pesquisa e consequentemente de atualidade. E foi dentro desse academismo inelutável que se realizaram nossos maiores, um Aleijadinho, um Costa Ataíde, Cláudio Manuel Gonzaga, Gonçalves Dias, José Mauricio, Nepomuceno, Aluísio, e até mesmo um Álvares de Azevedo, até mesmo um Alphonsus de Guimarães.

Ora, o nosso individualismo entorpecente se desperdiçou no mais desprezível dos lemas: “Não há escolas!” e isso terá por certo prejudicado muito a eficiência criadora do movimento modernista. E se não prejudicou a sua ação espiritual sobre o País, foi porque o espírito paira sempre acima dos preceitos como das próprias ideias… Já é tempo de observar, não o que um Ronald de Carvalho e um Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que têm de igual. E o que nos igualava, por cima dos dispautérios individualistas, era justamente a organicidade de um espírito atualizado que pesquisava, já gostosamente radicado à sua identidade coletiva. Não apenas acomodado à terra, mas radicado em sua realidade. O que não se deu sem alguma patriotice e muita falsificação.

Nisso as orelhas burguesas se alardearam refartas por debaixo da aristocrática pele de leão que nos vestira… Porque, com efeito, o que se observa, o que caracteriza essa radicação na terra, num grupo numeroso de gente, é um conformismo legítimo, disfarçado e mal e mal disfarçado nos melhores, mas, na verdade, cheio de uma cínica satisfação, da terra, bastante acadêmica e nacionalista, que não raro se tornou um porque meufanismo larvar. A verdadeira consciência da terra levaria fatalmente ao não conformismo e ao protesto, como Paulo Prado com o “Retrato do Brasil” e os raros “anjos” do Partido Democrático e do Integralismo. Para a maioria, o Brasil se tornou uma dádiva do céu. Um céu bastante governamental… Graça Aranha, sempre desacomodado em nosso meio que ele não sentia, tornou-se o exegeta desse conformismo modernista, com aquela frase detestável de não sermos a “câmara mortuária de Portugal”. Quem pensava nisso! Pelo contrário, o que ficou escrito foi que não nos incomodava nada “coincidir” com Portugal, pois o importante era a desistência do confronto e das liberdades falsas.

O resultado mais barulhento dessa radicação à pátria foi o problema da “língua brasileira”. Mas foi puro boato falso. Na verdade, apesar das aparências e da bulha que fazem agora certas santidades de última hora, nós estamos, ainda hoje, tão escravos da gramática lusa como qualquer luso. Não há dúvida nenhuma que nós atualmente sentimos e pensamos o “quantum satis” brasileiramente. Digo isto até com certa ‘malincolia’, amigo Macunaíma, meu irmão. Mas isso não é o bastante para identificar nossa expressão verbal, muito embora a realidade brasileira, mesmo psicológica, seja agora mais forte e insolúvel que nos tempos de José de Alencar ou Machado de Assis. E como negar que esses também pensavam brasileiramente! Como negar que no estilo de Machado de Assis, luso pelo ideal, intervém um “quid” familiar que o diferença verticalmente de um Garret e um Ortigão! Mas se em Álvares de Azevedo, Varela, Alencar, Macedo há uma identidade nacional que nos parece bem maior que a de Brás Cubas ou Bilac, é porque nos românticos chegou-se a um “esquecimento” da gramática portuguesa que lhes permitiu muito maior equilíbrio do ser com sua expressão linguística.

O espírito modernista reconheceu que se vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade. Inventou-se, do dia pra noite, a fabulosíssima “língua brasileira”. Mas ainda era cedo, e a força de elementos contrários, principalmente a ausência de órgãos científicos adequados, reduziu tudo a boataria. E hoje, como normalidade de língua culta e escrita, estamos em situação inferior à de cem anos atrás. A ignorância pessoal de vários fez com que se anunciassem em suas primeiras obras como padrões excelentes de brasileirismo estilístico. Era ainda o mesmo caso dos românticos: não se tratava de uma superação da lei portuguesa, mas de uma ignorância dela. Mas assim que alguns desses prosadores se firmaram, pelo valor pessoal admirável que possuíam (me refiro à geração de 30), principiaram as veleidades de escrever certo… E é cômico observar que, hoje, em alguns dos nossos mais fortes estilistas, surgem a cada passo, dentro de uma expressão já intensamente brasileira, lusitanismos sintáxicos ridículos. Tão ridículos que se tornam verdadeiros erros de gramática!

Noutros, esse reaportuguesamento expressional ainda é mais desprezível: querem ser lidos além-mar e surgiu o problema econômico de serem vendidos em Portugal. Enquanto isso, a melhor intelectualidade lusa, numa liberdade admirável, aceitava abertamente os mais exagerados de nós, compreensiva, sadia, mão na mão.

Houve também os que, desaconselhados pela preguiça, resolveram se “despreocupar” do problema: são os que empregam anglicismos e galicismos dos mais abusivos, enquanto repudiam qualquer “me parece” por artificial! Outros mais cômicos ainda, dividiram o problema em dois: nos seus textos escrevem gramaticalmente, mas permitem que seus personagens, falando, “errem” o português. Assim, a “culpa” não é dos escritores, é dos personagens. Ora, não há solução mais incongruente em sua aparência conciliatória. Não só põe em foco o problema do erro de português, como estabelece um divórcio inapelável entre a linguagem falada e a língua escrita – bobagem bêbada para quem souber um naco de filologia. E há mesmo as garças brancas do individualismo que, embora reconhecendo a legitimidade do problema, se recusam a colocar brasileiramente um pronome, para não ficarem parecendo com Fulano! Esses entontecidos esquecem que o problema é coletivo e que, se adotado por muitos, muitos ficavam se parecendo com o Brasil!

A tudo isso se ajuntava, quase decisório, o interesse econômico de revistas, jornais, editores, que intimidados com alguma carta rara de leitor gramatiquento ameaçando não comprar, se opõem à pesquisa linguística e chegam ao desplante de corrigir artigos assinados! Ainda recentemente uma das maiores revistas do País, republicando um conto, não só mudava todo “pra” em “para”, o que apenas é fenômeno de surdez rítmica, mas “corrigia” um boleio sintáxico, sem sequer uma consulta ao seu autor! Mas, morto o metropolitano Pedro II, quem nunca respeitou a inteligência neste país!…

Tudo isso, no entanto, era sempre estar com o problema em campo. A desistência grande foi criarem o mito do “escrever naturalmente”, não tem dúvida: o mais feiticeiro dos mitos. No fundo, embora não consciente e desonrosa, era uma desonestidade como qualquer outra. E a maioria, sob o pretexto de escrever naturalmente (incongruência, pois a língua escrita, embora lógica, é sempre artificial) se chafurdou na mais antilógica e antinatural das escritas. São uma lástima. Nenhum deles deixará de falar “naturalmente” um “está se vendo” ou “me deixe”. Mas para escrever “com naturalidade”, até inventam os socorros angustiados das conjunções, para se saírem com um “E se está vendo” que salva a pátria da retoriquice. E é uma delícia constatar que se afirmam escrever brasileiro, não há uma só frase deles que qualquer luso não assinaria com integridade nacional… lusa.

Identificam-se àquele deputado mandando (apenas) fazer uma lei que chamava de língua brasileira à língua nacional. Mas como incontestavelmente sentem e pensam com nacionalidade, isto é, numa entidade ameríndio-afro-luso-latino-americano-franco-anglo-etc., o resultado é esse estilo “ersatz” em que se desamparam, triste moxinifada moluscóide, sem vigor nem caráter.

Não me refiro a ninguém, me refiro a centenas. Estou me referindo justamente aos honestos, aos que sabem escrever e possuem técnica. São eles que provam a inexistência de uma “língua brasileira” e que a colocação do mito, no campo das nossas pesquisas, foi tão prematura como no tempo de José de Alencar. E se os chamei de inconscientemente desonestos é porque a arte, como a ciência ou o proletariado, não trata apenas de adquirir o bom instrumento de trabalho, mas impõe a sua constante reverificação. O operário não compra a foice apenas, tem de afiá-la dia por dia. O médico não fica no diploma, o renova dia por dia no estudo. Será que a arte nos exime deste diarismo profissional? Não basta “sinceridade” e ressonar à sombra do Deus novo. Saber escrever está muito bem. Mas o problema verdadeiro do artista não é esse, é escrever melhor. Toda a história do profissionalismo humano o prova. Ficar-se no aprendido não é ser natural: é ser acadêmico; não é despreocupação: é passadismo.

O problema era ingente por demais. Cabia aos filólogos brasileiros, que já são criminosos de tão vexatórias reformas ortográficas patrioteiras, o trabalho glorioso de fornecer aos artistas uma codificação das tendências e constâncias da expressão linguística nacional. Mas eles recuam diante do trabalho útil, é tão mais fácil ler os clássicos! Preferem a cienciazinha de explicar um erro de copista, imaginando uma palavra inexistente no latim vulgar. Os mais “avançados” vão até aceitar timidamente que iniciar a frase com pronome oblíquo não é “mais” erro no Brasil. Mas confessam não escrever… isso, pois não seriam “sinceros” com o que beberam no leite materno. Beberam des-hormônios… Bolas para os filólogos!

Caberia aqui também o repúdio dos que pesquisaram sobre a língua escrita brasileira. Preocupados pragmaticamente em ostentar o problema, fizeram tais exageros de tornar para sempre odiosa a língua nacional. Eu sei: talvez neste caso ninguém vença o autor destas linhas. Em primeiro lugar, o autor destas linhas, com alguma faringite, vai passando bem, muito obrigado. Mas é certo que jamais exigiu lhe seguissem os brasileirismos loquazes. Se os praticou (um tempo) foi na intenção de pôr em angústia aguda um problema que julgava fundamental. Mas o problema verdadeiro não é vocabular, é sintáxico. E afirmo que o Brasil hoje possui, não apenas regionais, mas generalizadas no País, numerosas tendências e constâncias que lhe dão natureza característica à linguagem. Mas isso ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão. Nós fracassamos.

Capítulo 4

Mas eu creio que não foi um desastre insanável o fracasso das pesquisas sobre língua, que apontei no meu artigo anterior [Nota do editor: capítulo anterior]. Sob o ponto de vista da radicação da nossa cultura à entidade brasileira, as compensações foram muito numerosas para que o boato falso da língua nacional se tornasse falha grave. Só o que avançamos em sociologia, só a reorganização dos estudos folclóricos e crítico-históricos sob princípios mais científicos, só o repúdio do amadorismo nacionalista e do segmentarismo regional e finalmente só o processo do Homo brasileiro, realizado pelos romancistas e ensaístas, são herança fecundíssima e já esplêndida, que não nos permite sequer melancolia na verificação da bancarrota linguista.

E ainda há que considerar a descentralização intelectual, hoje em contraste aberrante com outras manifestações sociais do país. Hoje a Corte, o fulgor das duas cidades brasileiras de mais de um milhão, não tem nenhum sentido nacional que não seja meramente estatístico. Pelo menos quanto à literatura, única das artes que já alcançou estabilidade normal no Brasil. As outras são demasiado dispendiosas para se normalizarem numa nação de tão interrogativa riqueza pública como a nossa. O movimento modernista, pondo em evidência e sistematizando uma “cultura” nacional, exigiu da Inteligência estar ao par do que se passava nas numerosas Cataguazes. E se as cidades de primeira grandeza fornecem facilitações publicitárias sempre de natureza especialmente estatística, é impossível ao brasileiro, “culto” nacionalmente, ignorar um Érico Veríssimo, uma Raquel de Queiroz, um Camargo Guarnieri, nacionalmente gloriosos do canto das suas províncias. Basta comparar tais criadores com fenômenos já históricos mas idênticos, um Alphonsus de Guimarães, um Amadeu Amaral e os regionalistas imediatamente anteriores a nós, para verificar a convulsão fundamental do problema. Conhecer um Alcides Maia, um Carvalho Ramos, um Teles Junior era, nos brasileiros, um fato individualista de maior ou menor “civilização”. Conhecer um Ciro dos Anjos, um Gilberto Freyre, um Guilherme Cesar, hoje, é uma exigência de “cultura”. Dantes esta exigência estava relegada aos… historiadores.

A prática principal desta descentralização da Inteligência se fixou no movimento nacional das editoras provincianas. E se ainda vemos o caso de uma grande editora, como a Livraria José Olímpio, obedecer à atração da mariposa pela chama, indo se apadrinhar com o prestígio na Corte, por isto mesmo ele se torna mais comprovatório. Porque o fato da Livraria José Olímpio ter cultamente publicado escritores de todo o País, não a caracteriza. Nisto ela apenas se iguala às outras editoras da província, uma Globo, a Nacional, a Martins, a Guaíra. O que exatamente caracteriza a editora da rua do Ouvidor – umbigo do Brasil, como diria Paulo Prado – é ter se tornado, por assim dizer, o órgão oficial das oscilações ideológicas do País, publicando tanto as dialéticas integralistas como a política do sr. Francisco Campos.

Quanto à conquista do direito permanente de pesquisa estética, creio não ser possível qualquer contradição: é a vitória grande do movimento no campo da arte. E o mais característico é que o antiacademismo das gerações posteriores a da Semana de Arte Moderna se fixou exatamente naquela lei estético-técnica do fazer melhor, e não como um abusivo instinto de revolta, destruidor em princípio, como foi o do movimento modernista. Talvez seja este, realmente, o primeiro movimento de independência da inteligência brasileira, que se posta ter como legítimo e indiscutível. Já agora com todas as probabilidades de permanência. Até o Parnasianismo, até o Simbolismo, até o Impressionismo inicial de um Vila Lobos, o Brasil jamais pesquisou (como consciência coletiva, está claro) nos campos da criação artística. Não só importávamos técnicas e estéticas, como só as importávamos depois de certa estabilização e, a maioria das vezes, já academizadas. Era ainda um completo fenômeno de colônia, imposto pela nossa escravização econômico-social. Pior que isso: esse espírito acadêmico não tendia para nenhuma libertação e para uma expressão própria. E se um Bilac da Via Láctea é maior que todo o Lecomte, a “culpa” não é de Bilac… Pois o que ele almejava era mesmo ser parnasiano, senhora Serena Forma.

Essa normalização de um espírito de pesquisa estética, anti-acadêmica porém não mais revoltado e destruidor, é a maior manifestação de independência e de estabilidade nacional que já conquistou a Inteligência brasileira. E como os movimentos espirituais precedem as manifestações das outras formas da sociedade, é fácil de perceber a mesma tendência de liberdade e conquista de expressão própria tanto na imposição do verso-livre antes de 30, como na “marcha para o Oeste” posterior a 30, tanto na “Bagaceira”, no “Estrangeiro”, na “Evocação do Recife” anteriores a 30, como no caso da Itabira e a nacionalização das indústrias pesadas, posteriores a 30.

Eu sei que ainda existem espíritos coloniais (é tão fácil a erudição) só preocupados em demonstrar que sabem Europa a fundo, que nos murais de Portinari só enxergam as paredes de Rivera, no atonalismo de Francisco Mignone só percebem Schoemberg, ou no “Ciclo da Cana de Açúcar” o “roman-fleuve” dos franceses… Tristão de Ataíde, como crítico literário do Modernismo, foi o protótipo desse colonialismo escandalizado; e não podíamos gostar de Piolin??? ou sequer respirar que ele não fosse descobrir nisso consequências imitadas da condecoração dos Fratellini ou de algum modernista da Cochinchina…

O problema não é complexo, mas seria longo discuti-lo aqui. Limito-me a propor o dado principal. Em primeiro lugar carece não esquecer que as mesmas causas produzem geralmente os mesmos efeitos, e que em etnografia existe a lei da “Elementar gedanken”, os pensamentos elementares que tanto podem nascer num como noutro lugar, sem que haja necessariamente migração.

Nós tivemos no Brasil um movimento espiritual (não falo apenas escola de arte) que foi absolutamente “necessário”, o Romantismo. Insisto: não me refiro apenas ao romantismo literário, tão acadêmico como a importação inicial do Modernismo artístico, e que se poderá comodamente datar de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Estou me referindo ao “espírito” romântico, que está na Inconfidência, no Basílio da Gama do “Uraguai”, nas liras de Gonzaga como nas “Cartas Chilenas” de quem os senhores quiserem. Este espírito preparou o estado revolucionário de que resultou a Independência política, e teve como padrão briguento a primeira tentativa de língua brasileira. O espírito revolucionário modernista, tão necessário como o romântico, preparou o estado revolucionário político de 30 em diante, e também teve como padrão barulhento a segunda tentativa de nacionalização da linguagem. A similaridade é muito forte.

Esta “necessidade” espiritual, que ultrapassa a literatura estética, é que diferença fundamentalmente Romantismo e Modernismo, das outras escolas de arte brasileiras. Essas, mesmo a feição mais independente que tomou o Barroco em Minas na segunda metade do século 18, foram todas essencialmente acadêmicas, obediências culturalistas que denunciam muito bem o colonialismo da Inteligência brasileira. Nada mais absurdamente imitativo (pois se nem era imitação: era escravidão!) que a cópia, no Brasil, de movimentos estéticos particulares, que de forma alguma eram universais, como o culteranismo italo-ibérico setecentista, como o Parnasianismo, como o Simbolismo, como o Impressionismo, como o wagnerismo de um Leopoldo Miguez. São puras superfectações culturalistas, impostas de cima para baixo, de proprietário à propriedade, sem o menor fundamento nas forças populares. Daí uma base desumana, prepotente e, meu Deus! arianizante que, se prova o imperialismo dos que com ela dominavam, prova a sujeição dos que com ela foram dominados. Ora aquela base humana e popular das pesquisas estéticas é facílimo encontrá-la no Romantismo, que chegou mesmo a retornar coletivamente às fontes do povo e, a bem dizer, criou a ciência do Folclore. E no verso-livre, no Cubismo, no atonalismo, no predomínio da rítmica, no Super-realismo místico, no Expressionismo, iremos encontrar essas mesmas bases populares. E até primitivas, como a arte negra. Assim como o cultíssimo “roman-fleuve” e os ciclos com que um Lins do Rego processa a civilização nordestina, ou Otávio de Faria a decrepitude da burguesia, ainda são instintos e formas funcionalmente populares que encontramos nas mitologias cíclicas, nas sagas e nos Kalevalas e Nibelungos de todos os povos. Já escreveu um autor, como conclusão condenatória, que “a estética do Modernismo ficou indefinível”… Pois essa é a melhor razão de ser do Modernismo! Ele não era uma estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de espírito revoltado e revolucionário que, se a nós nos atualizou, sistematizando como constância da Inteligência nacional o direito anti-acadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolucionário das outras manifestações sociais do país, também fez isto mesmo no resto do mundo, profetizando esta contemporânea Guerra dos Cem Anos de que uma civilização nova nascerá.

E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma liberdade (infelizmente só estética) uma independência, um direito às suas inquietações e pesquisas que, não tendo passado pelo que passaram os modernistas da semana, ele não pode imaginar que conquista enorme representa. Quem se revolta mais, quem briga mais contra o politonalismo de um Lourenço Fernandez, contra a arquitetura do Ministério da Educação, contra os versos “incompreensíveis” de um Murilo Mendes, contra o expressionismo de um Guignard?…Tudo isto são manifestações normais, discutíveis sempre, mas que não causam o menor escândalo público. Pelo contrário, são as próprias forças governamentais que aceitam a realidade de um Portinari, de um Vila Lobos, de um Lins do Rego, de um Almir de Andrade, pondo-os em cheque e no perigo constante das predestinações. Mas um Flavio de Carvalho, mesmo com as suas experiências numeradas, e muito menos um Clovis Graciano, mas um Camargo Guarnieri mesmo com as incompreensões que o perseguem, um Otávio de Faria com a crueza dos casos que expõe, um Santa Rosa, jamais não poderão suspeitar o a que nos sujeitamos, para que eles pudessem hoje viver abertamente o drama que os persegue. A vaia acesa, a carta anônima, o insulto público, a perseguição financeira… Mas recordar é quase exigir simpatia e estou a mil léguas disto.

Ainda caberia falar sobre o que chamei de “atualização da inteligência artística brasileira”. Com efeito, não se pode confundir isso com a liberdade da pesquisa estética, pois esta lida com formas, com a técnica e as representações da beleza, ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que isso e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão e uma força interessada na vida.

A prova mais evidente desta distinção é o famoso problema do assunto em arte, no qual tantos escritores se emaranham. Ora não há dúvida nenhuma que o assunto não tem a menor importância para a inteligência estética. Chega mesmo a não existir para ela. Mas a inteligência estética se manifesta por intermédio de uma expressão interessada da sociedade, que é a arte. Esta é que tem uma função humana, maior que a criação hedonística da beleza. E dentro desta funcionalidade humana da arte é que o assunto adquire um valor primordial e representa uma mensagem imprescindível. Ora, como atualização da inteligência artística, é que o movimento modernista representou um papel contraditório e muitas vezes precário. Mas me reservo para demonstrar isso numa conferência que farei na Casa do Estudante do Brasil.

Vou terminar estas memórias gratas. Manifestando-se especialmente pela arte o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação social do mundo com a quebra gradativa dos grandes impérios, a prática europeia de novas ideologias políticas, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e nacional, os progressos internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da inteligência brasileira. Isto foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte Moderna ficou sendo o brado coletivo principal. Há um mérito inegável nisso, embora aqueles primeiros modernistas… das cavernas, que nos reunimos em torno de Anita Malfatti e Vitor Brecheret, tenhamos como que apenas servido de altifalantes de uma força universal e nacional muito maior que nós. Força fatal, que viria mesmo. Creio que foi um crítico paraibano, Ascendino Leite, quem falou uma vez que tudo quanto fez o movimento niderbustam far-se-ia da mesma forma sem o movimento. Não conheço lapalissada mais graciosa. Porque tudo isso que se faria, mesmo sem o Movimento Modernista, seria pura e simplesmente… o movimento modernista.

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