Marguerite Duras celebra o fim de um mundo

Palestras e filme examinam hoje, em São Paulo, atualidade de autora que enxergou colapso do Moderno – e se recusou a chorar por ele

Marguerite Duras

Margarite Duras. Para ela, o único gesto político é berrar, e o amor é a própria substância desse grito

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Por Maurício Ayer

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Palestras e bate-papo com Maria Cristina Vianna Kuntz e Maurício Ayer

Apresentação do filme India Song

18 de junho, sábado, das 15h às 20h

Inscrições: R$ 60,00

Estudantes, idosos e professores da rede pública: 30,00

Participantes de Outros Quinhentos: R$ 30,00, mas dois convites grátis. Increva-se aqui.

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Falar da atualidade da escritora e cineasta francesa Marguerite Duras significa, primeiro, reconhecer que estamos enovelados na mesma crise, no mesmo impasse civilizatório de meio século atrás. Mascarado em alguns aspectos, intensificado em outros, nosso mundo não superou o trágico e extremado contraste entre, de um lado, o luxo e a usura da casta branca e colonialista, isolada por cercas, muros, jardins e jagunços, e, de outro lado, a fome e as epidemias que se alastram nas vastas maiorias de uma população miserável. Este é o quadro que Duras desenha, com cores e traços arquetípicos, em O vice-cônsul, romance publicado em 1966: a classe colonial (ou diplomática…) vive em recepções, bailes e festas, enquanto do outro lado das grades há um mar de lepra e miséria, onde o humano perde o rosto, o nome e o sentido.

A autora certamente poderia ter descrito um mundo onde 70 famílias detêm metade da riqueza do planeta, enquanto crianças são encontradas mortas na praia da Europa por estarem em fuga de uma guerra gestada e nutrida por interesses que se confundem com os dessas 70 famílias. O quadro é o mesmo. O mesmo absurdo, os mesmos personagens da mesma narrativa.

No sábado, 18 de junho, a partir das 15h, no Espaço Cultural B_arco, em São Paulo, acontecerá o evento “Marguerite Duras: atualidade de O Vice-cônsul, 50 anos depois”, envolvendo palestras com Maurício Ayer e Maria Cristina Vianna Kuntz e a exibição do filme India Song (legendado), escrito e dirigido por Duras como uma recriação do romance. O evento homenageará também os 20 anos do falecimento de Marguerite Duras, no dia 3 de março de 1996, aos 81 anos.

A atualidade do romance produz ainda uma irônica analogia com o atual caos político brasileiro. O resumo da trama do Vice-cônsul é que um membro do Estado comete um crime hediondo e seu superior procura uma saída “diplomática” para abafar o caso e devolver tudo à “normalidade” (poderia dizer “estancar a sangria”). A atmosfera é de profunda deterioração moral em toda essa classe que Duras chama de “Índia Branca”. Mas o “criminoso” não suporta a acomodação e berra no baile e nas ruas de uma mítica Calcutá deserta (instaurando o desconforto de uma “delação premiada”).

Evidentemente, não são as pequenas infâmias de uma elite hipócrita que interessam à escritora. Duras afirmava há 50 anos: vivemos o fim do mundo. E a pergunta que preside sua escritura poderia ser: o amor é possível, na derrocada do mundo? No encontro, essa discussão será aprofundada, inclusive abordando as muitas e densas invenções de linguagens literária e cinematográfica da autora francesa. Mas é possível adiantar algumas ideias dessa discussão.

No enredo, o criminoso (aquele que “todos querem esquecer” e que se recusa a esquecer) é na realidade o único incapaz de naturalizar a degradação que se alastra. Seu crime é o de atirar contra mendigos leprosos da sacada de sua residência. Realiza pois aquilo que o surrealista André Breton descreveu como “o único gesto possível”, que é atirar em meio à multidão. A classe colonial – chamada de “Índia Branca” –, escandalizada pelo crime, mas não pela catástrofe cotidiana, procura escondê-lo. Mas o vice-cônsul, ciente do escândalo que é sua presença, vai a uma recepção na Embaixada para se aproximar do objeto de seu louco amor, a esposa do embaixador, Anne-Marie Stretter. Novo escândalo: ele grita o seu amor por Anne-Marie dentro da Embaixada e pelas ruas de Calcutá. Gritar o amor ou atirar contra a miséria são gestos da loucura que escancara o indizível de um estado de coisas que só pode ser descrito como o paroxismo do insustentável.

Marguerite Duras afirmará, anos depois, que o grito do vice-cônsul é “a única política possível”. Fazia eco à frase que marcou seu filme O Caminhão, “que o mundo caminhe a perder-se é a única política possível” (“que le monde aille à sa perte, c’est la seule politique”). Tudo parece intensamente alegórico: um mundo que não pode ignorar seu próprio estado, mas vive aferrado a uma aparência de normalidade, que só se sustenta num ambiente autofágico envelopado por muros. O único gesto político é berrar, e o amor é a própria substância desse grito. Grito que rompe a engrenagem corrosiva, autodestrutiva, consumidora de todos rumo ao fim. Ruptura precária, imperene, rapidamente anulada pela sobreposição do burburinho que se recompõe ao redor após a estupefação momentânea – mas a única possível.

Gritar ou amar ou escrever, palavras que se intercomunicam na poética de Duras, são pois os gestos políticos possíveis num mundo que ruma ao próprio fim. Ironicamente, ela propõe um termo que faz as vezes de “via política”, é “a via do desespero alegre” (“la voie du gai désespoire”). Não é o anúncio de esperança, não é a construção da solução. É um mergulho na densa experiência de quem – lutando, construindo, formulando, sofrendo e gozando – viverá apenas parte da queda do mundo e, no máximo, o esboçar do nascimento de algo novo.

 

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Um comentario para "Marguerite Duras celebra o fim de um mundo"

  1. Coringa disse:

    Espetacular matéria. Parabéns!

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