Manifesto para a engenharia reversa das redes

“Urge outra transformação de nossas práticas, novas táticas midiáticas, para questionar sistemas que engolem nosso dia-a-dia, fazeres, sonhos de mudança”

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Por Bartolina Sisa

“É das paixões que brotam as opiniões; a inércia do espírito as faz enrijecerem na forma de convicções.

Mas quem sente o seu próprio espírito livre e infatigavelmente vivo pode evitar esse enrijecimento

mediante uma contínua mudança”

Friedrich Nietzsche – Humano, demasiado humano

“Digitalismo é uma forma de gnosis moderna, igualitária e barata, onde o fetiche do conhecimento foi

substituído pelo culto da rede digital”

Matteo Pasquinelli: A ideologia da cultura livre e a gramática da sabotagem

“Querer a autonomia supõe querer determinados tipos de instituição da sociedade e rejeitar outros. Mas

isso implica também querer um tipo de existência histórica, de relação com o passado e o futuro. Uma

como a outra, a relação com o passado e a relação com o futuro devem ser recriadas.”

Cornelius Castoriadis – As uncruzilhadas do labirinto volume VI

Esse texto visa percorrer alguns conceitos que despontaram no Brasil em nossa contemporaneidade acerca de novos e velhos intrumentos sócio-técnicos, chamados aqui de experiências de apropriações midiáticas brasileiras. Uso essa terminologia (que li pela primeira vez em LaymertGarcia, no livro Politizar as novas tecnologias) no sentido de articular uma via de mão dupla entre tecnologias e comunidades, impossibilitando qualquer interferência de um objetivo ou subjetivo determinismo tecnológico, abrindo portanto, e com mãos femininas, sua caixa preta.

Na década de 90, muito devido ao barateamento das ferramentas de produção de mídia e uma relativa liberdade política, surge na Holanda o conceito de mídia tática, cunhada por David Garcia e Geert Lovink, que ganhou notoriedade com a série de festivais Os Próximos Cinco Minutos (N5M – The Next Five Minutes [1]) que popularizou as experiências de rádios livres, blogs, publicações independentes, arte-ciência, ciberfeminismo e videoativismo de todo o mundo. É a pulverização de pequenas e médias iniciativas midiáticas baseadas na colaboração e descentralização. Finalmente as mídias ganhavam as ruas, reconectando-se aos movimentos sociais como verdadeiras armas de dissenso, e muitas vezes descoladas de seu suporte ciber ou digital.

Fora de um embate antagonista em relação a um suposto inimigo, mídias táticas surpreendem pela astúcia e distração do mais forte (Certeau), e essas eram justamente as práticas mais difundidas aqui na terra do low-tech e das gambiarras, em que a necessidade torna-se estética. Murais, stencils, pixações, fanzines, performances (corpo-mídia) e rádios livres ainda são as ferramentas mais utilizadas pelos ativistas de mídia latinos, de zapatistas mexicanos à feministas e ocupas urbanas. 1994 pode ser considerado um ano significativo para uma politização midiática continental, ano em que as forças em queda – o capitalismo cibernético – liberam energia – r-e-voluções. É o ano do levante do EZLN [2], Exército Zapatista de Libertação Nacional mexicano, que tratou de definitivamente entrincheirar as recém nascidas redes de comunicação internas de universidades, as primeiras a se conectarem a Internet. Lá estavam hacktivistas como (sir) Timothy John Berners-lee (www), Linus Torvald (kernel linux) e o pioneiro da turma Richard Atallman (gnu/ FSF) mas foram as agências de inteligência estadunidenses que criaram o termo social net war – guerra social da internet – para descrever o temor da era.

À mesma época no brasil era lançado o Manifesto dos Caranguejos com Cérebro [3] cuja imagem-símbolo é uma antena parabólica enfiada na lama. “Modernizar o passado é uma evolução musical (…) / o medo da origem é o mal / o homem coletivo sente a necessidade de lutar / o orgulho, a arrogância e a glória enchem a imaginação de domínio / são demônios os que destróem o poder bravio da humanidade / viva zapata, viva zumbi, viva sandino, viva zumbi, antônio conselheiro, todos os panteras negras, lampião sua imagem e semelhança” do disco de mesmo ano de Chico Science, que também canta em sua afrociberdelia “computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro”. Nascia no Brasil o ciberativismo, em meio à periferia des-computadorizada nordestina, e através da música.

É claro que nestas condições de exclusão social o movimento da cibercultura não se desenvolveu por aqui. Esse prefixo pós-moderno – o ciber – foi usado por pouquíssimos teóricos e artistas, quando – nesta ordem – se popularizou nos campos da arte, academia e governo. Não tivemos propriamente um movimento de cibercultura, ciberfeminismo, ciberativismo ou ciberpunk, embora muitos coletivos praticassem tais conceitos, sob outros nomes: Sabotagem (difusor anti-copyright de livros), Centro de Mídia Independente (difusor de informações contra-hegemônicas), Rizoma.net (difusor de conceitos táticos de alteridade), Rádio Livre.org (plataforma agregadora de rádios livres), ip:// interface pública (laboratório de mídias livres na cidade do rio de janeiro), g2g (grupo de estudos em gênero e tecnologia), Metareciclagem (apropriação tecnológica para a transformação social), Submidialogia (encontro nômade de arte, mídia e tecnologia), Mídia Sana (vjs de guerrilha midiática e intervenção urbana), Orquestra Organismo (hardware arte), Poro e ARTNST (mídia tática), Projeto Saravá (tecnopolítica), etc. Inúmeras redes independentes que se apropriaram de diversas mídias de forma original surgiram desde o ano 2000 no Brasil e no mundo, muitos sem dúvida inspiradas nos ativismos anticapitalistas globais como os que eclodiram em Gênova, Seattle e São Paulo, assim como experiências de convergência de movimentos como a do Fórum Social Mundial. Também surgido nos anos 90, o conceito de cibercultura é acompanhado de inúmeras utopias e distopias tecnológicas – pesadelo totalitário na ficção científica dos livros de William Gibson, ou sonhos de hipertextos, repositórios de conhecimento e conexões emergentes (muitos nunca concretizados) como os de Ted Nelson (Xanadu em Dream Machines, de 1974) ou seu anterior Vannevar Bush (Memex de 1945); no Brasil – cuja apropriação tecnológica se manifesta sempre primeiro através da arte – surge com o visionário Oswald de Andrade e sua utopia antropofágica que descreveu a assimiliação da tecnologia moderna com o espírito xamanista da selva (em A Crise da Filosofia Messiânica, de 1950).

O software livre rapidamente virou a plataforma preferida dos ativistas de mídia, politizando os debates tecnológicos: rádios piratas se misturaram às rádios livres, muitas reativadas ou criadas nesta década, mulheres administravam servidoras e participavam de encontros autônomos de tecnologia e gênero, notícias eram veiculadas por consenso e horizontalidade, vídeos mostravam as lutas das barricadas. “A tecnologia que liberta” (FISL 2008), virou seu mote por aqui, na alegre fusão com a comunidade da esquerda partidária sulista, que adentrou com força o governo Lula, mas por outro lado ignorando os nada inovadores e imateriais problemas de desequilíbrio de gêneros (1,5% de desenvolvedorxs de SL são mulheres [4]) ou dicotomias ideológicas.

 

Um ano após o Mídia Tática Brasil[5], versão brasileira do festival N5M que congregou muitos artistas e ativistas de mídia junto a um público de mais de 3.000 pessoas em 2003 – quando uma rádio livre foi instalada na Av. Paulista sob o nome Pega Eu, onde pôsteres de artistas globais pegaram fogo e um som pós-mídia enchia de ruídos os chiques jardins da Casa das Rosas na maior movimentação em toda sua história – um trabalho brasileiro realizou-se na ante-sala de entrada do quarto evento em Amsterdã – entre a farta fumaça do defumador, um camelódromo vendia camisetas do Brasil, pés-de-moleque, cds de música e é claro havaianas. A compra era efetuada através da moeda brasileira, o real. Ao lado do pano estendido no chão com a pirataria, um câmbio flutuante escrito a caneta em um balão subia e descia o preço da moeda a seu bel prazer. Finalmente o real veio a custar 3 euros, ou mais, dependendo do “humor do mercado”. Um produto brasileiro, a paçoquinha, foi levada para o Critical Art Ensemble – artistas da biotecnologia – testarem em seu laboratório de transgênicos. “Testada e aprovada como orgânica!” entoava a camelô.

Artivismo foi o termo criado pela esquerda cultural paulistana (e não pelos coletivos agrupados sobo mote do festival – mídia tática) para a disseminação desses trabalhos, que usavam as mídias e incluso a própria arte de forma resistente, politizada e sobretudo nômade, configurando-se diferentemente a cada aparição e formando amplas coalizões para muito além do campo artístico. Seguiu-se então uma verdadeira febre de coletivos artísticos politizados, que ecoou pouco além da capital paulistana. No entanto, a prática da arte como tática política sempre existiu por aqui e foi justamente o mote gerador do festival MTB que usou o termo mídia tática como uma experiência de disseminação memética.

Em 2004 três laboratórios de mídia tática surgiram na zona leste de São Paulo, os Autolabs[6], a primeira experiência de um laboratório de mídia reciclado todo em software livre produzindo rádio, notícias independentes, histórias de vida em formatos digitais, fanzines, etc. Outras experiências similares surgiram em ocupas no centro de São Paulo no mesmo ano. E assim, criaram-se os protótipos do que veio a ser transformado em política pública progressista, produção não da massa mas para a massa, via ongs, com o projeto governamental “pontos de cultura”. É quando populariza-se o conceito de cultura digital, na contra-mão da cultura altamente colaborativa e transgressora, portanto de fato política, que se desenhava à época de forma autônoma, ou pelo menos sob princípios de horizontalidade e descentralização.

Gilberto Gil, recém empossado no ministério da Cultura, participou do evento de abertura do festival indepentente Mídia Tática Brasil, definitivamente aproximando seu gabinete dos ativistas do software livre e das discussões sobre propriedade intelectual, mas infelizmente adotando o modelo reformista das licenças Creative Commons (diretos limitados) ao libertário Copyleft (domínio público) – mais ou menos como o free e open source software para a comunidade de software livre. Clamou-se ministro hacker [7] e abriu importantes frentes para a implantação de políticas públicas favoráveis ao software livre por todo Brasil, mas sem considerar contextos locais como rede elétrica instável, banda curta e a larga máfia das ongs culturais (que sairam em seu modelo liberal de imaginário social ainda mais fortalecidas).

Linux apoiado pelo governo brasileiro

Linux apoiado pelo governo brasileiro

O período de 2005-2008 representou um momento de sincretismo entre .gov, ongs e pseudo-artistas: com uma câmera na mão todos afinal poderiam ser artistas, resolvendo o acesso e a escassez, tudo mais fluiria, poderíamos pular do século XIX ao XXI… era o discurso que se ouvia à época, superando o ainda mais fraco termo inclusão digital. Ambos os termos – inclusão e cultura digital – surgiram em um contexto majoritariamente institucional, dentro de escritórios com financiamentos da ONU e PNUD, disseminados maciçamente, formando políticas públicas descontextualizadas, onde quem mais lucrou foram sem dúvida xs “articuladores” e a ItauTech (fornecedora de computadores). Meninos entusiastas do software livre que chegavam de avião às localidades mais remotas para armar o circo (zona estatal temporária) da inclusão digital, muitas vezes chamados de Encontros de Conhecimentos Livres[8], queimando máquinas, aumentando a banda de forma controlada e temporária para poder subir um vídeo produzido, dando oficina para mais de 100 professoras de escolas em 5 máquinas, levando o transmissor de rádio de volta depois da oficina, sendo quarterizado por corporações de tecnologia como Stefanini e Comsat. Não estava mais em questão a autonomia, gênero, as alternativas ao capitalismo massacrante, a colaboração para a produção, a práxis, a continuidade das ações. A lição que ficou para quem participou de alguns desses projetos é que mais vale uma apropriação lenta e efetiva do que uma massiva e altamente apropriável por qualquer grupelho, corporação ou instituição – que vai lucrar muito e causar efeitos muitas vezes opostos aos desejados, criando novas elites culturais e fetiches. É claro que por outro lado houve a disseminação maciça do software livre e de alguns princípios da cultura livre, no entanto completamente ausente de imaginação e prática política autônoma. Cultura Digital tornava-se a cultura produzida pelos mecanismos da indústria cultural, a economia criativa – incentivos governamentais, leis de incentivo, instituições legalizadas, licenças paradoxais para dizer que não precisamos de licenças, licitações de equipamentos – e lançada em grande escala principalmente através do ministério da Cultura do Brasil a partir de 2005. Em 2008 o termo cultura e mídia livre é totalmente desvirtuado de seu sentido original, livre de instituições, proprietários ou gestores – é seu oposto, recurso disputado por partidos de esquerda, blogueiros progressistas e membros de organizações do terceiro setor, criando termos descolados como “midialivristas”, com manifestos próprios e recursos estatais para fórums, no entanto sendo articulado por usuários de softwares proprietários e instituições de ensino federais [9]. E hoje inclusive, mais interessante ainda, têm como alvo verbas do próprio ministério das Comunicações, direitista onipresente e onipotente, no entanto senhor de um fundo bilionário oriundo das telecomunicações. Mídia independente, a luta originária ou mídia tática a estratégia de guerrilha midiática, é substituída por mídia livre, esvaziada de seu sentido libertário.

Stallman e Gilberto Gill

Stallman e Gilberto Gill

Digitofagia cremos que foi o conceito mais não-apropriável e portanto sub-utilizado que existiu para caracterizar uma das mais originais e recentes apropriações tecnológicas e midiáticas brasileiras, cunhado pelo teórico cearense Ricardo Rosas, um dos organizadores do MTB, contextualizando a prática midiática aqui gerada com o fenômeno tipicamente cultural brasileiro, o da antropofagia. Apesar de ter realizado um festival [10] de 11 dias totalmente colaborativo, organizado de forma aberta por lista de discussão e um sistema wiki (edição online) agregando propostas emergentes, em 2004 no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, e no Rio de Janeiro em um espaço independente, de ter gerado o excelente livro Net_cultura 1.0 (Radical livros, 2006, organizado por Rosas e Giseli Vasconcelos[11]), em sua tardomodernidade, a mídia tática e a digitofagia foram práticas disseminadas com muita naturalidade por aqui, principalmente entre as redes independentes e alguns teóricos (muito poucos), mas que não alçaram vôos maiores. Cremos que aterrorizava os senhores do universo. Os festivais de mídia arte brasileiros em sua maior parte patrocinados por bancos, empresas de telefonia ou petrolíferas preferiam temas como a pirataria ou mobilidade – técnicas que acabam por favorecer o sistema.

Assim, como o termo mídia tática foi disseminado pelas instituições da cultura e da mídia de massa (resenhas em jornais e revistas) como artivismo, o mesmo aconteceu com o conceito de cibercultura, ou ciberativismo, que transmutou-se em cultura digital.

No entanto, aconteceu no país algo muito curioso: a apropriação tecnológica das ferramentas livres sendo preconizada principalmente via movimentos libertários e paralelamente governo, com muitos momentos de convergência, numa retroalimentação sufocante, até quase o ponto de simbiose entre ativistas e governistas, o estado ditando manifestos de cultura digital e mídia livre e trabalhadores-ativistas super dedicados ao seu trabalho. Artistas por sua vez se burocratizaram abrindo ongs e firmas para trabalhar junto ao descolado governo. Em 2011, com a presidenta Dilma e a posse da nova Ministra da Cultura parecem estar em curso ainda mais retrocessos como a remoção mesma das licenças CC de sítios e trabalhos apoiados pelo antigo gabinete.

De volta ao básico

Desde muito cedo somos treinadxs nos jogos de guerra, em estações de jogos e televisores. Ali vemos meninas dançantes figurantes, fuzis e sangue, big brothers fantásticos, nas ruas nossas fantasias de princesa são fortalecidas pela dolinha de r$2, quando nos tornamos poderosas e criamos coragem de portar uma arma própria, em nome da justiça, liberdade, e o vício. Enquanto isso a burguesia vive nostálgica, também doente, em redes sociais, relações virtuais e avatares. É o ápice das megacorporações da tecnologia como microsoft (mais de 80% dos sistemas operacionais), google (maior quantidade de dados de vigilância do mundo), facebook e amazon em um contínuo expansionismo para segmentos diversos como telefonia celular, TV a cabo, internet móvel e sementes. Centralização e vigilância permeiam o imaginário social digital, em uma rede distribuída de bots muito mais potente do que Foucalt descreve em seus estudos sobre técnicas de vigilância em prisões, ubiquamente retroalimentada por nós, nossos dados e estilos de vida, em sua produção material e imaterial. É a era tecnotrônica de inspiração cibernética em que tudo vira sistema, autômato, colagem, em um esgotamento da imaginação e do imaginário político a favor de um  racionalismo tecnicista, o desejo de primazia da tecnologia sobre a política e a cultura como simulacro de si mesma.

E assim, aos poucos, a cultura do ciberespaço global vai sendo deglutida pelas novas/velhas instituições da esquerda cultural, jovens hackers empresários, yuppies, ex-hippies, moldada por novos nomes mais indicativos da “nova era” que desejam adentrar, cavalgando a nova onda, sob a mesma velha lógica desenvolvimentista e centralizadora onde é necessária uma sociedade futurista em que a tecnologia e não as pessoas mediassem os processos sociais (tecnocracia). Nada mais radical do que uma volta ao passado: das tribos aos ideais liberais. São as teorias neogovernamentais do novo paradigma cultural como descritas por Pierre Levy, Manuel Castells, Howard Reingold e Alvin Tofler, e mais tarde Lessing – o advogado que popularizou as licenças Creative Commons (CC), gerando novos termos como aldeia global, comunidades em rede, cultura colaborativa e cultura livre.

Falhos “mapeamentos”, distorcidos em recorte de gênero (25 homens e 4 mulheres) como em http://culturadigital.br/retalhos ou precisão das informações referentes aos trabalhos independentes como Mídia Tática Brasil e Digitofagia acabam por permitir que se apaguem as lutas e políticas existentes no interior destas apropriações.

No entanto, o que insistimos em esquecer (ou como em matrix o que apagam de nossa memória) é que todos os sistemas são afinal programados pelos grupos dominantes. E que cabe somente a nós escrevermos e refletirmos sobre nossa história. Compartilharmos o código, enfim.

A (des-)apropriação tecnológica brasileira como assinalou Décio Piganatri em 77 (no livro Informação. Linguagem. Comunicação.) em referência ao design mas que aplica-se às novas gerações de instrumentos sócio-técnicos “coloca-se como uma questão de necessidade, de linguagem e de consciência; o problema da quantidade se sobrepõe ao da qualidade (…) [em] que países como o Brasil não podem e não querem pretender atingir a qualidade dos países desenvolvidos pois suas necessidades repelem o alto custo de aperfeiçoamentos tecnológicos contínuos que acabam por beneficiar apenas uma pequena parcela do povo.” É neste sentido que achamos bem longe das iniciativas financiadas e governamentais a imaginação radical da apropriação tecnológica brasileira.

Para onde vamos? Obviamente estamos de volta ao seio do sistema de onde surgimos, filhxs bastardxs de táticas midiáticas bem sucedidas. Depois da utopia tecnológica que se deu no início dos anos 2000 no Brasil, encontramos hoje, praticamente, um mundo ao revés. Com toda situação propositalmente desorientadora é obviamente iminente novos radicalismos. De qual lado das barricadas nos encontraremos? Urge uma avaliação profunda e sincera da apropriação midiática brasileira deste século, para não incitarmo-nos de novo a erros humanos, demasiado humanos.

Cremos que um primeiro passo interessante seria responder algumas perguntas para podermos avançar: afinal, toda a febre do software livre contribuiu como para o desenvolvimento dos programas, plataformas e sistemas? Ainda recorremos aos oligopólios cibermidiáticos para usarmos um email, publicarmos um filme, uma imagem, uma música, um sítio web? Afinal, todas as práticas “midialivristas” contribuiram como para a autonomia da produção midiática? Ainda somos presos por usar um trecho de um filme, fotocopiar um livro, baixar uma música, compartilhar a internet, ligar um transmissor de rádio? Existe de fato uma cultura livre? Livre de quê? Afinal, todos os maquinários de pontos de cultura e festivais de mídia produziram quais trabalhos que contribuam para indicar caminhos evolutivos na linguagem artística ou nos processos sociais? Prá quem e com quem fazemos o que fazemos? Como nos solidarizamos com atos de censura que acontecem hoje com blogs independentes como o do Centro de Mídia Independente ou globalmente nos recentes protestos no Egito?

Radio livre na ocupa da funai em 2005

Radio livre na ocupa da funai em 2005

Urge mais uma transformação de nossas práticas, novas táticas midiáticas, para de fato voltarmos a questionar os sistemas que acabaram por engolir nosso dia-a-dia, nossos fazeres e sonhos de mudança. Radicalizemos! Escrevamos nossas próprias histórias. Façamos arte e política de nossos códigos (ela não chegará junto ao Bolsa Computador ou ao Vale Cultura) e assim, mutuamente, nós e nossa vizinhança nos impregnaremos de visões insurgentes. É necessário mais que nunca Paulo Freire em nossos trabalhos, ensinar tecnologia como se estivéssemos nas trincheiras (nunca saímos delas). É necessário que estabeleçamos novos parâmetros de colaboração em que a arte, a política, a autonomia e o anticapitalismo sejam princípios e não palavras soltas ao vento. Urge a volta da micro-política em rede, das pessoas sinceras e suas nervosas inquietações, espaços de convívio e trabalhos onde a liberdade não seja um conceito único mas uma proposta político-pedagógica-cultural a ser construída em nossas práticas, por nossas colaborações, nossas próprias mãos, nossos livres saberes, nossos manifestos, que sempre estarão à frente do sistema, que por sua vez, sempre virá atrás – seja para nos reprimir, copiar ou cooptar. Que se apropriem de processos e não de pessoas. De subjetividades e não de máquinas. Vamos dar a eles novos mitos, nossos macunaímas, nossas metasubcibertrans – belxs anti-heroínas. E finalmente, depois de um período “no estrangeiro”, que voltemos à nossa vizinhança, aquela lá dos tempos da pedreira…

“que as idéias voltem a ser perigosas” paulo lara, sub>mídia

PS: Este texto é uma singela homenagem aos ativistas de mídia brasileiros, e presta uma reverência internacionalista à Brad Will (Eua) e Lenin Nájera (Ecuador) e a tod@s que apanharam e foram assassinados nas barricadas.

Notas

[1] N5M – http://www.next5minutes.org

[2] EZLN – http://enlacezapatista.ezln.org.mx

[3] Manifesto dos caranguejos com cérebro – http://www.fafich.ufmg.br/manifestoa/pdf/caranguejos

[4] Mais dados, apresentações e estudos sobre a participação feminina no software livre podem ser enontrados aqui – http://www.linuxchix.org/women-open-source-free-software-bibliography.html Encontro feminista de mídias livres – Carnaval Eclético Tech ou /etc-br  http://ciberfeminismo.midiatatica.info/etc

[5] Mídia Tática Brasil – http://mtb.midiatatica.info

[6] Autolabs – http://autolabs.midiatatica.info

[7] “A melhor forma de promover essa livre troca de informações é ter um sistema aberto (…) A última coisa que você precisa é burocracia. Burocracias, sejam corporativas, governamentais ou universitárias são sistemas falhos, perigosos já que não acomodam o impulso exploratórios dos hackers verdadeiros. Burocratas se escondem por trás de regras arbitrárias (em oposição aos algoritmos lógicos com que máquinas e programas de computador operam): eles invocam essas regras para consolidar poder e percebem o impulso construtivista dos hackers como um perigo.” (A Ética Hacker, capítulo 2 do livro Hackers, de Steven Levy.)

[8] Encontros de Conhecimentos Livres foram articulações ora independentes ora governamentais. Como visto, articulações semelhantes existiam no circuito midiático independente brasileiro desde 2003. É interessante notar na linha do tempo do Fórum Social Mundial http://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%B3rum_Social_Mundial as mudanças desde o ano de 2002 (adoção do copyleft), 2004 (adoção do software livre) e em 2005 (do modelo de laboratório de mídia). Alguns sítios tentam construir uma história desde o ponto de vista governamental como em http://www.segueocortejo.org/2011/01/encontros-de-conhecimentos-livres-2005.html ou exclusivamente masculino e governista

http://linhadotempo.culturadigital.org.br/2010/11/09/i-encontro-de-conhecimentos-livres-do-

nordeste/ mas o fato é que os três primeiros Laboratórios de Mídias brasileiros em rede, utilizando software livre e hardware descartado foi concebido por uma mulher artista, Giseli Vasconcelos, em São Paulo no ano de 2003.

[9] Manifesto Midialivristas uni-vos : http://www.universidadenomade.org.br/userfiles/file/Lugar

%20Comum/25-26/08%20MIDIALIVRISTAS%20UNI-VOS.pdf

“É preciso investir em condições equânimes para o exercício do direito à comunicação, seja através de uma melhor distribuição das verbas publicitárias públicas ou da revisão das outorgas de concessões governamentais. Também é necessário pensar a criação de um mercado específico para

ações independentes (…). Igualmente importante é agir para instauração de políticas de comunicação com incidência ampla, indo além dos meios de comunicação. ” Neste cenário a disputa não é com os veículos comerciais de comunicação, publicidade ou a centralização estatal da infraestrutura técnica de difusão, o chamado é para uma colaboração com estes grupos (empresas e governo). Grifo desta autora.

[10] Digitofagia – http://digitofagia.midiatatica.info

[11] Livro para download http://publicacoes.midiatatica.info/netcultura_digitofagia.pdf

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