Mad Max: épico notável, distopia possível

Provocador, com leve acento feminista e alguma ousadia estética, filme de George Miller imagina planeta devastado e cindido por violência permanente

 

150428-MadMax

.

Entretenimento provocador, com leve acento feminista e alguma ousadia estética, filme de George Miller imagina planeta devastado e cindido por violência permanente 

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Mad Max – a saga toda, iniciada em 1979 – é o lugar onde se encontram o épico e o pop. Inúmeros outros filmes das últimas décadas têm buscado esse encontro, mas talvez nenhum tenha conseguido uma síntese tão potente. Ao figurar seu mundo árido, pós-apocalíptico, George Miller tocou num nervo central de nossa época. Esse nervo segue exposto, vivo, como comprova Mad Max: Estrada da fúria, o quarto e extemporâneo exemplar da série.

Nesta retomada, não se trata, como alguns afoitos disseram, de requentar uma boa história, muito menos de diluí-la, mas de afirmar sua atualidade. Na verdade, em face dos rumos que o planeta tem tomado, o pesadelo compartilhado por Miller parece cada vez mais próximo, real, ameaçador – especialmente no que diz respeito à escassez de água, mas também no fracionamento da humanidade em tribos hostis e irreconciliáveis.

Mas vamos ao filme. Falou-se muito do papel protagonista conferido à mulher – no caso, a imperatriz guerreira Furiosa (Charlize Theron) – neste novo filme, em que ela divide o comando das ações com o próprio Max (Tom Hardy). Mas heroínas virilizadas, “machas”, não são propriamente uma novidade no cinema contemporâneo. Não é preciso fazer aqui uma lista. Da cosmonauta Ripley, de Alien, às ninjas de Kill Bill, passando por Sonja Lara Croft, as telas estão repletas delas.

Matriarcado redentor

A novidade, aqui, seria então a preponderância das mulheres, seu duplo papel de reprodutoras (as “parideiras” do tirano Immortan Joe) e de guerreiras que podem salvar o mundo. O esboço de um matriarcado como redenção de uma humanidade devastada.

Charlize Theron e o grupo de mulheres que protagonizam Max Max

Algumas feministas exultaram ao ver as mulheres conquistarem um poder antes reservado aos homens, outras incomodaram-se por essa conquista ter sido feita ao preço de um embrutecimento extremo. De fato é um tanto chocante, ao menos para um homem de formação antiquada como eu, ver moças angelicais e velhinhas encantadoras saírem disparando bazucas e cortando cabeças. Mas, de algum modo, as mulheres de Mad Max conseguem endurecer sem perder a ternura.

Houve quem relativizasse o protagonismo feminino no filme lembrando que, na hora H, é o herói que salva a mocinha, mas o que é belo, a meu ver, é justamente essa troca constante de papéis entre quem salva e quem é salvo, essa transfusão (literal, como sabe quem assistiu) de energia e afeto.

Tecnologia sob controle

No aspecto da construção visual, destacou-se a circunstância de que Estrada da fúria tem mais de 90% de filmagens reais (ou seja, com recursos estritamente fotográficos, de encenação e montagem) e o restante de CGI (imagens geradas por computador), invertendo a proporção mais frequente nos filmes de ação e fantasia atuais. Não domino esse assunto, mas de fato me incomodam a paisagem natural sintetizada digitalmente e os efeitos de videogame de tantas produções recentes.

No novo Mad Max, esses prodígios tecnológicos estão presentes, claro (afinal, Charlize Theron não amputou meio braço para fazer o filme), mas sob controle. O que impera é um sentido apurado do ritmo e da composição do quadro, em que a grandiosidade e a diversão equilibram-se no mais das vezes de forma admirável, numa orquestração de supercloses e planos extremamente abertos que tem a ver com a tradição do western, dos épicos bíblicos e das histórias em quadrinhos.

É cinema robusto e vigoroso, enfim, que só superficialmente tem a ver com a avalanche de produções ruidosas, descerebradas e descartáveis que infestam as telas do mundo. Para o meu gosto pessoal, poderiam ser abreviadas as sequências de perseguição e combate no deserto, com seu crescendo de explosões, labaredas e decibéis. A partir de um certo momento, essas coisas, em vez de empolgar e emocionar, têm um efeito entorpecente, para não dizer entediante.

Sucata e reciclagem

Mas talvez esse seja um tributo que George Miller tem de pagar à sensibilidade juvenil de nossa época. Nada que anule o vigor do todo e alguns méritos especiais, como a utilização dramática da geografia física (a imensidão plana do deserto, o penhasco que jorra água, os desfiladeiros que se fecham, as tempestades de areia e raios), o aperfeiçoamento da ideia de seres e objetos híbridos (homens-próteses, répteis mutantes, caminhões feitos de partes de automóveis, caminhonetes que lembram bigas romanas, carros que parecem ouriços), além de achados pontuais: a imensa engrenagem oculta na rocha para bombear água, a guitarra que lança chamas etc.

Um conceito-chave parece guiar o conjunto, o de um mundo pós-tudo, feito de sucata e reciclagem – não só de materiais, mas também de técnicas, culturas, crenças e fantasias humanas. O próprio filme é isso, para o bem e para o mal, incorporando sua proposta estética e política em sua própria forma e em seu modo de produção. Tudo isso sem se levar a sério demais, isto é, sem perder a ligeireza e o humor de uma obra de entretenimento.

Permanência: Recife em São Paulo

Mudando radicalmente de assunto, cabe chamar a atenção para Permanência, do pernambucano Leonardo Lacca, que entra em cartaz nesta quinta (28 de maio). Tomara que o título seja um prenúncio de sua presença no circuito, pois é um belíssimo filme, não por acaso vencedor do recente Cine PE.

Conta-se ali, na superfície, uma história simples: Ivo (Irandhir Santos, excelente como sempre), um fotógrafo de Recife, passa alguns dias em São Paulo para acompanhar a exposição de suas obras numa galeria. Hospeda-se no apartamento da ex-namorada (Rita Carelli, também premiada no Cine PE), hoje casada com um arquiteto (Silvio Restiffe).

Acompanhamos o tempo todo esse pernambucano tímido e deslocado, que dorme num home theatre improvisado em quarto, perambula pelas ruas, compra um casaco para enfrentar o frio paulistano, namorica uma moça que trabalha na galeria (Laila Paes, outra premiada em Recife), vai a festas em que não conhece ninguém – e toma cafés, muitos cafés. Um bom modo de ver o filme é atentar para os cafés: o modo como são feitos, os locais, os circunstantes, as conversas ao redor da xícara.

Nesses diálogos balbuciados e aparentemente banais, nas hesitações e silêncios dos personagens, esboça-se todo um mundo de relações afetivas, sociais, culturais. O eixo dramático, como o título sugere, é o que fica dos sentimentos e o que desaparece ou muda de natureza. Mas em torno dessa linha central há uma observação arguta dos descompassos geográficos e culturais. A todo momento Ivo é confrontado com a imagem que os paulistanos têm de sua cidade. Recife está presente pela ausência. Há até uma piada discreta e significativa. Quando alguém pergunta a Ivo “como vai aquela cidade maravilhosa”, ele responde com ironia: “O Rio de Janeiro?”

Mais que os diálogos, porém, importa a construção sutil do relato. Já começa bem: Ivo toca o interfone no prédio da ex-namorada, esta o manda subir e pergunta se ele não tem mais problemas com elevadores. Ele diz que não, mas manda a bagagem pelo elevador e sobe correndo pelas escadas, na esperança de chegar à casa da amiga sem que esta perceba sua pequena covardia. Não dá certo, claro, o que equivale a já começar o filme pegando o protagonista no contrapé, humanizando-o de forma indelével. O melhor é que tudo isso é mostrado de dentro do elevador vazio, onde ficou a câmera. Isso é cinema.

 

Leia Também:

2 comentários para "Mad Max: épico notável, distopia possível"

  1. José Carlos disse:

    Fui ver Mad Max por conta, exclusivamente, de sua crítica. foi uma das maiores bobagens que já fiz na vida. Não posso falar que o filme todo é ruim por que não aguentei ver aquela tranqueira até o fim. Até a metade, posso afirmar que é horroroso, uma porcaria!!!. A história original, que já não era das melhores mas se aguentava no vigor das interpretações, ficou completamente inverosímel. Pelo amor de Deus o que é aquele início com uma cascata de água para um bando de gente que está morrendo de sede? A água cai por todos os lados menos nas panelas dos imbecis que estão esperando o tal líquido. Olha, pra resumir, resolvi sai quando apareceram um bando me modelos magrelíssimas intituladas de “parideiras”. Essa foi prá matar. José Geraldo, quero meu dinheiro de volta!!!!!

  2. Adelvan disse:

    E isso é um texto – muito bom! Parabéns! Adorei a ideía de começar falando de um blockbuster – genial, aliás, pra mim, uma nova obra-prima do gênero – e terminar com cinema brasileiro …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *