Liberdade ainda que tardia

Relato da jornada em que STF decidiu: temos direito de propor mudança das leis – inclusive a que criminaliza drogas

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Narrativa e análise da jornada em que o STF decidiu: temos direito de propor mudança das leis – inclusive a que criminaliza drogas

Pelo Coletivo DAR – Desentorpecendo a Razão

A única vítima de nossa coragem foi a opressão (e talvez a carreira de certos juizinhos e homens da lei). Tantas vezes nos proibiram, tantas vezes marchamos. Pamonha, Liberdade de Expressão, presos por simplesmente pintar cartazes – tantos subterfúgios para o que a ministra Carmen Lúcia definiu magistralmente: “a liberdade é muito mais criativa que qualquer grilhão que queiram nos colocar”.

O que se passou no Supremo Tribunal Federal – enquanto Natal fervia numa mobilização contra sua a prefeita – é um tapa na cara do conservadorismo, que nos faz repetir e vibrar, ainda que com obviedades que eram convenientemente ignoradas, e comemorar a legalização de um debate.

Mas não é tão óbvio assim. O mundo está nas ruas e o Brasil engatinha. Poucas vezes o direito de ir à praça, de se manifestar, de unir o povo nas ruas, foi tão usado e ao mesmo tempo tão cerceado e reprimido. Parece que estamos finalmente exorcizando da esfera pública alguns fantasmas da ditadura – e o pedido que este Coletivo encampa, com orgulho, pela proibição do armamento policial em manifestações pacíficas, caminha neste sentido, por mais que sarneys, collores e outros monstros queiram manter o sigilo eterno dos documentos de Estado.

A sessão começou com o sensato e inquestionável posicionamento da vice-procuradora-geral Deborah Duprat, que mostrou, por A mais B, o que todos já estávamos cansados de saber, a começar pelos que proíbem nossas marchas na calada da noite. Ficou claro para todos, e de uma vez por todas, que discutir uma lei não é apologia e que proibir manifestações é censura prévia, é ditadura. “Não cabe ao Estado fazer qualquer juízo de valor sobre a opinião de quem quer que seja”, sentenciou.

Mauro Chaiben, nosso querido parceiro e tão importante nesse processo, representou a ABESUP. Bateu não só na proibição, bateu no proibicionismo. Falou do uso milenar e medicinal de diversas substâncias, da criminalização da pobreza, deixou claro quem ganha com a proibição, e como perdemos todos os outros, os de baixo, os que pensam, os que se importam, os que buscam um mundo diferente. “Essa corte deve fazer preponderar os direitos fundamentais”, clamou o advogado antiproibicionista mais firmeza que já pisou no STF.

Chaiben começou com a alegoria da caverna. Somos os Fugitivos da Caverna que ao sair da ignorância nos deparamos com um imenso muro. O muro da censura, construído pelo moralismo e por fundamentações jurídicas que beiram o absurdo. Mauro Chaiben e o seu pedido para que o plenário do STF também analisasse outras questões quase tomou uma bronca. Amicus curiae não pode fazer isso! – lembrou Celso de Mello. Mas o pedido foi inteligente, para não dizer estratégico. A consulta fez com que alguns posicionamentos emergissem de maneira a podermos mapear as possibilidades futuras. Para podermos ouvir sobre um assunto tão polêmico que poucas vezes chegou ao STF. Parabéns Mauro, agora sabemos melhor onde estamos pisando.

Veio então o representante do IBCCRIM, Luciano Feldens. Sua fala conseguiu fazer de um julgamento cheio de termos legais e burocráticos um momento lindo. Uma aula de direito, de cidadania, de democracia, de razão desentorpecida. “O dia 21 de maio ficará marcado como o dia nacional da intolerância”, falou, lembrando-se de tudo o que foi agredido junto com os manifestantes naquela triste tarde na Av.Paulista. Não passarão, gritamos naquele dia – levamos a Marcha pra porta da 78DP, fizemos outra maior na semana seguinte. Mas ainda assim, esperávamos o STF. Está faltando é tolerância à tolerância, lembrou Feldens.

E a espera de quatro anos de injustiça, mordaça, estigmas, processos e prisões viu os primeiros raios da alvorada quando o relator Celso de Mello começou seu enorme -quase infinito – voto. Mas poderia durar pra sempre, tudo bem, era nosso. E foi só o primeiro. O 1 a 0 logo virou goleada. Foram 2, 3, 4, 8 a 0! Uma verdadeira surra! Se jogando truco estivéssemos, certo desembargadorzinho fascista teria de passar por debaixo da mesa, pegar sua toguinha e sair de mansinho.

“Fernando Henrique faz apologia quando defende mudanças na lei? O fazem políticos com plataformas pró-legalização? Livros?” questionou Mello, esfregando a verdade na cara dos proibicionistas. Proibicionistas da democracia, não passaram! Não poderiam passar! Celso de Mello chamou a repressão de lamentável, e foi a cereja no bolo de tantas e tantas reprimendas a ao completo, extremo e vergonhoso absurdo cometido naquele dia. Do lado de fora da sessão, cornetas, rojões, aplausos. Era o povo, tomando de volta os direitos que lhe foram usurpados.

E os votos dos ministros se sucediam, um a um, todos acompanhando o relator. Quem não pagaria para ver a cara de uns e outros nessa hora, sendo desautorizados com pompa e circunstância para todo o Brasil? Mostrando que – finalmente (!) – manobras retóricas e o uso da constituição para atacar a própria lei não mais funcionarão. Nenhum argumento torto evacuado faltando apenas cinco minutos pra o final do expediente judiciário funcionará mais!  Acabou o império dos ditadores de primeira e segunda instância, acabou a mordaça. Se quiserem nos vencer, vão ter que aprender a debater em vez de pedirem pra bater. Vai ser mais difícil, não vai, desembargador?

Se era final de Copa, jogo esperado há quatro anos, já viramos o primeiro tempo goleando. E depois foi só tocar de lado, dar olé e correr para o abraço. A sessão foi suspensa, com a promessa de voltar às quatro e vinte. Parecia piada pronta. Assim como nos livros de História vai parecer piada tudo o que passamos para conseguir nos expressar. Mas ninguém disse que seria fácil. Agora sim falemos de liberdade, de democracia, pois isso também ainda não temos, e ninguém esqueceu.

“Ideias podem ser transformadoras, libertárias, subversivas”, disse Celso de Mello. É disso que eles têm medo, e é contra isso que seguirão se armando. O Estado insulta seus cidadãos quando diz a eles que não podem decidir sobre o que querem dizer e escutar, sobre o que podem ou não ouvir em público, resumiu Mello.

“A praça é do povo assim como o céu é do condor” – poeta Castro Alves

Fux com suas ressalvas um pouco tediosas teve logo que retirar o que havia ressalvado. Para expressar um direito não precisa ter 18 anos. Nascemos com ele. Carmen Lúcia e sua defesa da tomada das ruas lembrou da ditadura, e não poderia ter sido mais precisa. São esses fantasmas que precisamos expurgar, não é Dilma? Se eles pararam entre 64 e 85, nós sabemos que 68 também vive – e que pra nós, rima com 2011. O ano em que fomos para a rua; e passamos por cima.

Lewandowski chamou o voto de Mello de antológico. Questionou até o conceito daquilo que o senso comum entende por “droga”, lembrando que essa definição é cultural, circunstancial. Era mais do que pedíamos, as vuvuzelas vibravam lá fora do Tribunal. Como disseram no Twitter, agora as feridas do dia 21 começavam a cicatrizar, e lágrimas que haviam não eram mais por bombas de gás.

Marco Aurélio de Mello lembrou que “Liberdade de expressão não pode ser o direito de apenas falar aquilo que as pessoas querem ouvir”. Marco Aurélio fez até piada com baseado, vejam só se foi punido por apologia ou se foi o plenário quem riu. Veio Ayres Brito, veio Ellen Gracie, todos votando com o relator. Cézar Peluso, presidente desta memorável sessão fechou a conta. Decisão unânime. Finalmente a liberdade chegou à Brasília, finalmente o STF concordou com a Constituição de 1988.

A vitória está longe, mas foi um grito de liberdade contra a criminalização dos movimentos sociais, que não param de ir às ruas. Vencemos essa batalha, venceremos a guerra às drogas.

Dia 18 de junho voltaremos às ruas em mais uma Marcha da Liberdade, dessa vez nacional, que juntará sob todos os guarda-chuvas coloridos a dimensão de nossos sonhos.

E dia 2 de julho, ADIVINHA DOUTOR QUEM ESTÁ DE VOLTA NA PRAÇA?

MARCHA DA MACONHA!

Em São Paulo, marcharemos na Avenida Paulista, ás 14h no MASP – o palco por excelência.

O mundo não vai acabar em 2012: ele está apenas começando.

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Um comentario para "Liberdade ainda que tardia"

  1. Larissa disse:

    Muito boa a narrativa, emocionante até. Confesso que me arrepiei, mesmo sem ser a mais empolgada em lutar pela legalização do uso da maconha. Não que seja contra, muito pelo contrário, mas não sei ainda se estaria presente em uma marcha da maconha.
    Mas eu sei que não é isso que foi posto. Foi posto o nosso direito de questionar as leis e discutir. Direito que não deveria precisar reclamado!
    A propósito, a foto que ilustra o artigo é linda, o crédito é do autor?

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