Levante, pílulas finais

Quando você não ergue a voz, não se levanta, nem arqueia as sobrancelhas, permanecendo transcendente o cenho, senha é de desilusão profunda ou de profunda sabedoria. Uma é mãe da outra

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Por Aírton Paschoa | Imagem: Ernest Ludwig Kirchner, Marcella (1910)

LANÇAMENTO:

Levante, livro mais recente de Aírton Paschoa, será lançado em 23 de Junho (6ª-feira), em São Paulo, às 19h

No Ateliê do Gervásio, espaço que também abriga Outras Palavras

Rua Conselheiro Ramalho, 945 – Bixiga (mapa) – Metrô São Joaquim (600m) ou Brigadeiro (1km) – São Paulo

Leia as duas primeiras (1 2) séries de pílulas do livro

EXIT

Não existe rota de fuga. Há descaminhos, vários. O mais batido é o trabalho, e a larga maioria, se se não satisfaz, convenhamos, acostuma com a servidão. Sim, não há ocultar a servidão voluntária em que alucinamos todos, até na cobiçada constelação de astros e estrelas terrena, do cinema, da tv, do esporte, em que campo for. Mas presume certo talento e a incerta sorte, coisa enfim de eleitos… Terrorismo! Escusado acusar o óbvio: mesmo mandando pelos ares todos os metrôs da Terra, receio que não conduzem muito adiante os buracos descobertos. Claro, claro, resta sempre o suicídio, via volta e meia trilhada por poetas, loucos, amantes e demais fanáticos. Do ponto vista lógico, no entanto, ontológico, analógico ou digital, como identificar saída em saltar no escuro? Logo, se existe algo de eterno neste reino sombrio, ei-lo, o olho vermelho piscando zombeteiro EXIT. Isso eu sei, você sabe, nós sabemos. Com os musicais ao menos a gente cantava e dançava por dentro.

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Bom se mexer

Você se ergue então, caça novo mocó. Gelado igual, toca a aquecer o bicho. Pensa que se tem algo de eterno na face da terra são os fundilhos. Eles, sim, que esquentam o mundo. E os reflexos poéticos, esgarçando de graça, retos e rotos, por pouco o não consolam. Bom, até ter de se erguer mais uma vez e atacar a próxima toca. Hora há de haver, prece diária, de um dia de juízo, ser acatado por ela e acabar o mandamento, com a bênção do Senhor, tão intocado restaria. Você então pensa, e reprime rápido o esboço, como abrir o sorriso seria bom. Se mexer, entretanto, você sabe, arria tudo.

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Cortar a grama

Tem coisas que nos trazem sensações de paz tão, tão implacáveis, vá lá, que mal sufocamos a gana de errar a berrar. Por exemplo, cortar a grama. E não precisa ter árvore, parque por perto, não precisa nem mesmo ter gramado vasto ou vistoso. A faixa que cultivo, estreita, basta. Até acicata aliás a caprichar mais e mais, cortá-la rente, rentinha, a tripinha. Experimentem, é impagável a emoção. Equivalente à de aparar a guedelha de uma criatura morta, presumo. E se ainda assim continua a crescer… Cortem a grama! é o que posso humildemente rogar-lhes, quando um dia passarem a meu lado.

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Levante

Quando você não ergue a voz, não se levanta, nem arqueia as sobrancelhas, permanecendo transcendente o cenho, senha é de desilusão profunda ou de profunda sabedoria. Acreditando, como acreditam os clássicos, que uma é mãe da outra, você levanta a mão — sem fazer objeção. É gesto nobre e heroico. Impõe reflexão, e reflexão pausada, silenciosa. Passa por “basta”, mas basta que deixe passar… Prudente, é pré-moderno; irônico, é moderno; positivo, à moda de quem coordena o tráfego de ideias intenso, é pós-moderno. Em suma, atravessando de pé todas as eras, imortal como é, é perfeito.

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Figuração

A gente não viu o começo e nem vai ver o fim e ainda assim teima em querer ficar mais um pouco. Barulhenta, virulenta, a trama, podia dizer o idiota do Shakespeare, não se entende pataxó-hã-hã-hãe! E ainda assim… Os estetas apontam os figurinos, que não deixam de encantar os olhos. Os mais críticos perdem a paciência e caem fora, uns batendo as botas, outros pé ante pé. Ninguém há de lhes negar o fascínio, mas raros se arriscam no encalço da América profunda. Os menos exigentes, se não falam em deleite, sussurram subtramas, veredas obscuras ou brumosas vinhetas, à sua maneira divertidas. Tem também os que enchem a boca com o próprio papel e não saem senão à força, fatigantes figurantes. Mas a gente, a gente, cujo papelão não se discute, e ainda assim — só pode ser provocação, e da baita (nosso único crédito).

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Representação

Faz tempo que vinha me preparando pra ser o autor do nosso tempo. Mas, em tempo, convenhamos, assim, decidi não me comprometer, ser só ator.

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Filipetas

Um verdadeiro herói o Capitão. Naufragou com a fragata sem fraquejar. Não sem antes salvar a tripulação e a cidade tripudiada. Que o mar lhe seja lar! uivam todas as bocas, de lobo e homem, sem distinção.

(Mas não creiam em nada que conta. E as tais tirinhas que vêm que nem onda e nem vale a pena tirar das garrafas? Canções de alto-mar? Pois sim, canções de ressaca! Se bem manjo o marmanjo, é mais uma peta de Filipe.)

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Calados

As coisas não falam. Feito as rosas, que não são coisas mas também não falam. E quem não tira a cartola pra eles? Os grandes calados, sabem os médicos e marujos, sangram, singram o que topam pela frente, crostas, costas, minas, mares, sem um ai. Uma coisa! Só nos cabe cobiçá-los, a lonjura, olhar com os olhos e lamber com a testa, que nem diziam os calados antigos. Os pequenos, ai de nós! os caladinhos, com maré boa e tudo, quando muito dão pra cabotinagem…

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Sistema literário

Me doo aos amigos, que me doam sem dó pro sebo, onde dou por mim condoído, e me doo de novo aos amigos, que me doam sem dó pro sebo etc. etc., onde dou por mim, finalmente, sem me condoer, só meio doído, a lombada surrada, meio agastado, miolo meio mole, em estado de brochura avançado.

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Ovo em pelo

Poesia, poesia é achar pelo em ovo, ora, o óbvio em pé. E não adianta perguntar quem veio primeiro, se o ovo, se o pelo, xifópagos que são, siameses. Se há décadas, se há séculos… Ab ovo de novo? uma ova! Tire o pelo, e você perde o vício; tire o ovo, e você pede suicídio. Rima clara não é, é certo, mas serve de arrimo, não gema. Estamos todos fritos, cum ou sem grano salis, não tem jeito. Contente-se. Você já viu no que dá remexer-lhe as fundações, revolucioná-la, subvertê-la etc., ou depurá-la a mais não poder, varrendo-a com o sopro gelado da Criação… O pelinho tão só muda de lugar, plantando tufo inda maior, tufão que seja, atrás da poética orelha: elo em povo?

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