Ler primeiro: Rodrigo Viana, "Brotos de feijão"

“Vem a frase outra vez, agora repetida com uma certa aspereza: — O Senhor quer se vestir de papai-Noel e saltar?”

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Por Rodrigo Viana | Imagem: Portinari

Era de meia idade. Alguém que estava entre os trinta e os quarenta. Certa vez, assopraram-lhe que até os trinta a vida era uma festa. Depois é que o homem caía na real. Para um dia como aquele, véspera do dia de Natal, nada parecia diferente da realidade monótona a que se acostumara: Dona Yolanda na feira, balançando as ancas moles com aquele vestido longo e démodé e sem fazer gosto em ninguém. No bar da esquina, Jacintinho bebia durante a tarde quente, vangloriando-se dos tempos de futebol. Dizia que era pra estar rico ou ter virado pastor. Se fosse o caso primeiro, estaria cercado de loiras gostosas, dizia ele, entre um trago e outro. Carlão, o gerente engravatado do banco, continuava o faz de conta de pagar conta. E conta da gente, o que era pior. As filas no correio para comprar cartões de natal sempre foram imensas. Pelo menos na sua concepção de imensidão, que não era lá essas coisas. Tudo, enfim, era de uma mesmice de dar dó. Igual a todo ano. Nunca natal havia sido natal. E aquele também não era.

Então resolveu que seria. Aquele seria o dia. Chega daquela historinha de criança de Papai Noel chegar no trenó, vindo dos ares, com suas renas de nariz vermelho. Chega também de montar presépio com os meninos da igreja. Já era um adulto meu deus do céu e desde a infância, os mesmos amigos, o mesmo local do presépio, aquela mesma vaca com a cabeça quebrada em volta do menino Jesus, a mesma igreja e o mesmo padre com um olhar pederasta pra cima dos meninos novos. E ele ali, ajudando na igreja. Agora bastava. Não aguentava mais aquilo. Iria mesmo era fazer um Natal diferente. E foi-se.

Saiu cedo de casa, abanou mão, pendurou bolsa no ombro como sempre fazia. O céu andava cinza, mas isso não lhe parecia nenhum mau prenúncio porque era verão e o céu ficava cinza mesmo. Tinha largado mão dos conceitos místicos, abandonara tudo nos últimos tempos e, apesar de não admitir, sua vontade era abandonar-se a si mesmo também. Não via mais muita graça na estrada. A não ser por um desvio ou outro. Era desviado, sempre pensara nisso. Pequenos mistérios.

Mas naquele dia havia resolvido que seria diferente. Queria sentir a tal da emoção de Natal, que sempre lhe disseram existir. Todos falavam em paz, serenidade, boas festas e o escambau. E ele nunca sentira nada daquilo. Então faria por onde. E foi-se

No início andou devagar, passinho calmo, o corpo esguio e franzino, olhar desconfiado dos carros nas ruas, mas era sempre assim mesmo. Acendeu um cigarro de filtro branco – ultimamente vinha fumando os de filtro branco – dizia que era um cigarro puro, menos pecador, pois os de filtro amarelo tinham lá um ar de colonização americana, o faziam lembrar daquelas propagandas ridículas da tv, do Grande Irmão e, ele, que leu Marx durante todo o colegial não chegaria nem perto deste mundo. Nem no cigarro. Então a coisa da pureza era mais para disfarçar a luta dialética do velho comunismo embutido em si. Da raiva que tinha de capitalismo, neoliberalismo, ele nem sabia mais definir nada…Tinha era pena dos mendigos de rua. Mas nunca fazia nada para ajudar. A não ser ler, uma vez por ano, o Leonardo Boff. Achava que ler era boa ação. Então lia e estava absolvido. Criara sua própria religião. Tantos fizeram isso nos tempos últimos que não tinha dor alguma na consciência.

Mas eis que no caminho, e só podia ser no caminho, a resolução se deu: iria saltar de pára-quedas. Não sabe porque intuiu aquilo, mas sempre achara o máximo. Saltar, lá de cima, a sensação da morte eminente, o fato do pára-quedas poder não abrir, a liberdade, a glória se chegasse vivo, tudo! Aquilo, para ele, era emoção, era sentir. E foi-se, naquela véspera de Natal.

Subiu a pé até o aeroporto da cidade. Era uma cidade de médio porte. Chegou no campo de vôo, entrou, o olhar desconfiado agora com os bimotores de asas multicoloridas. Borboletas elétricas — pensou. Mas continuava desconfiado.

Então, lembrou-se que tudo foi tão desprogramado que não havia o dinheiro para pagar o salto. Mas que também se programasse não haveria a coisa da grana, porque nunca houve e sempre foi uma aparência tremenda de tudo e tal. Aí que volta a dialética na cabeça, o verde da grana, o vermelho, vermelho, vermelho…porque tanto vermelho, sangue, comunismo, nariz de palhaço, que saco.

– O Senhor quer se vestir de Papai-Noel e saltar? A frase, ríspida, instantânea causou-lhe um certo alívio, porque aqueles pensamentos compulsivos de revolta contra o sistema não cessavam – e ele sabia que não ia mudar nada. E vem a frase, outra vez, agora repetida com uma certa aspereza:

– O Senhor quer se vestir de papai-Noel e saltar? – Era um homem de barbas, lembrava-lhe, ainda que vagamente, o presidente da república. Explicou-lhe que, por ser véspera natalina, procuravam um candidato para se vestir de papai Noel e saltar de pára-quedas. As crianças que visitavam o aeroporto, um dos pequenos pontos turísticos, queriam ver papai Noel descer dos céus. Não havia candidato e quem topasse, ganharia, de presente, o salto.

O olhar do barbudo era inquisidor. Então que tinha que decidir. Pois se saiu de casa decidido a fazer sentido no Natal, era a grande chance. Pequenos mistérios, pensou novamente. Tinha caído do céu. E foi-se.

Mas, se vestir de papai Noel? Aquilo não era ridículo? Era, mas ele não tinha grana. E o medo? Papai Noel com medo. Bem:

– Eu topo. – Porque se tinha uma coisa que ele tinha era firmeza nas palavras. Mesmo que o pensamento lá dentro da cachola estivesse bambeando, as letrinhas saíam de sua boca firmemente. Herdança do pai, dizia, que nunca titubeava numa resposta. “Não importa se responde certo ou errado, responde firme que já ta certo”, dizia o pai. “O importante é o tom”. Ele, que nunca fora ligado em música , ficou com aquilo na cabeça. O importante era o tom. E, confirmou, perguntando em tom grave, a resposta:

– Onde pego a roupa?

Penduricalhos pra cá, barba postiça pra lá. E a coisa ridícula lá: Papai Noel. Ainda bem que nenhum conhecido havia perto. Se houvesse, encheu tanto o rosto com aqueles algodões amarelos que completavam a barba que não o descobririam. Queria mesmo era saltar.

– Chegando lá, aperta o botão de cima, o vermelho. Não há que falhar, mas se ‘falhá´’ e nunca falhou, aperta o de baixo. Aí é só esquecer da vida e cair. Do chão cê num passa, não! Era o barbudo, numa instrução primária de como abrir o pára-quedas em queda livre. E os dois botões eram vermelhos. De novo o vermelho.

Subiu no bimotor, que de borboleta agora zoava como bizorro. E foi-se.

Enquanto esperava o momento do salto, encheu-se de ar e via lá de cima a pequena cidade como mais pequena ainda. Teve um sentimento de glória interior: ah – a cidade é mesmo pequena! As mentes são pequenas…tudo é tão pequeno. Voou mais e mais. Agora era águia, colibri, coleirinho, papagaio, arara, maritaca, pica-pau, beija –flor, encheu-se de todos os pássaros numa revoada colorida de imaginações. Sentia-se com asas. Lembrou Santos Dumont – o cara se matou, pensou: gênio se mata mesmo. Não suporta a mesmice – novamente os pequenos mistérios chegavam-lhe à mente.

Era um pássaro surdo, pois há exatos 5 minutos o motorista — ele chamava o piloto de motorista porque motorista é motorista — estava dizendo que era chegada a hora. Já estavam a tantos e tantos pés e tal e coisa e a porta já tava aberta, que podia saltar. E foi-se.

Saltou sem medo. Não teve aquela sensação que a gente vê nos filmes. Nada de nó na garganta, aperto no peito, adrenalina descendo, nada disso. Saltou como passarinho que sai da gaiola. Em êxtase, nirvana absoluto. Neste momento entendia Buda, Krishna, Zoroastro, Akenaton, Cristo e todos os outros. Entendia tudo. A voz compulsiva parou de soar dentro de si. Era puro vazio. A única frase mental que conseguiu formular na queda foi: “A mente mente”. Tinha ouvido isso certa vez de um terapeuta quântico e aquilo, assim como ele fizera do avião, saltou em sua mente. Pequenos mistérios novamente.

Chegou bem, sim. Não morreu. Caiu num ponto distante do programado. Sem nenhuma criança por perto. Havia uma horta no chão, cheiro de mato verde, alguns pés de feijão nascendo. Então, que disse em tom firme, como agradecendo aos céus:

“Na verdade a gente não morre, a gente renasce, como os brotos de feijão jogados ao chão”

Rodrigo Viana

Rodrigo Viana é jornalista, mestre em estudos literários, lançou seu primeiro livro em outubro: “A Bola e o Verbo – o Futebol na Crônica Brasileira” (Summus Editorial).

Vale a pena ler primeiro é seção de Outras Palavras dedicada à literatura. Foi criada e é editada por Fabiano Alcântara. Jornalista especializado em cultura, repórter de Música do portal Virgula, e colaborador de diversas publicações – como Valor Econômico e os sites das revistas TRIP e TPM –, Fabiano é também músico, baixista das bandas Mercado de Peixe e Lavoura e curador de festivais.Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui.

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