Ler Primeiro: O Pai da Verdade

“Mentira é gentileza e promessa de vida pós-morte. Verdade é vida antes da morte e condomínio atrasado. Verdade é metástase”

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“Mentira é a gentileza e a promessa de vida após a morte. Verdade é a vida antes da morte e o condomínio atrasado. A verdade é metástase”

Por Marcelo Mirisola | Imagem: Francis Bacon, Two Figures in the Grass

A maior mentira de todas as mentiras é dizer que  “o diabo é o pai das mentiras”. Se tem alguém que é absolutamente refratário à mentira, esse alguém é o diabo.

Não tenho notícias de guerras em nome da mentira. Alguém pode pensar na invasão do Iraque pelos EUA. Aí eu digo que pretexto é uma coisa, no caso a ameaça de armas químicas: um pretexto falso. Mas a invasão de fato ocorreu  em nome de uma – ou pior – de várias supostas verdades. As mesmas de sempre, aliás. Ora, se o pretexto era falso e serviu de álibi para a imposição da “verdade”, temos aqui vários elementos que confirmam a preferência do capeta pela verdade. Maquiavel foi o primeiro a assumir a verdade como arma mortífera. Trabalhava para o príncipe.

Somente a verdade é capaz de semear as cizânias, as guerras e  intolerâncias.  A mentira, ao contrário, tem a lassidão como conselheira, o zigue-zague feito método, o dito pelo não dito como regra. O acordo por natureza, e o lusco-fusco como vocação. A mentira é conciliatória.

Daí que Deus é brasileiro.

As nações e os povos se digladiam para reparar a verdade e a justiça supostamente ultrajadas. Outra inquilina do diabo: a justiça. Pode parecer chocante dizer que a verdade destrói e desqualifica, enquanto a mentira compõe, faz acertos e afaga. Sim, é chocante, mas é verossímil. Vejam só. A mentira não tem jurisprudência nem quer ter razão, ao contrário da verdade, que condena, julga e mata …em nome de quem?

Ao diabo só interessa a verdade.

Uma verdade bem aplicada é capaz de causar estragos irrecuperáveis e gerar séculos de rancor, ressentimento e vingança. A verdade não admite tapinhas nas costas e não perde tempo. A verdade é incurável. A verdade é terrorista. Solidamente terrorista. A mentira se esvai. Um argumento mais um fato para substanciá-lo é o que basta para acabar com uma mentira. Mentira é vapor. Verdade é rocha. A verdade é hereditária. A verdade  está na gênese de todas as maldições. A verdade é imanente, sempiterna, ininterrupta e irrefutável.

A verdade é o diabo.

O pai da mentira é a verdade. Somente a verdade discrimina, separa, exclui  e isola. A verdade martiriza. A mentira é um arroto. A mentira, por exemplo, não tem a capacidade de engendrar doenças. O nome da multiplicação de boas e verdadeiras intenções é câncer. A verdade é câncer. Mentira é antídoto. Somente a mentira pode curar e interromper os fluxos vertiginosos, multiplicadores e suicidas da vida e da verdade. Mentira é a gentileza e a promessa de vida após a morte. Verdade é a vida antes da morte e o condomínio atrasado. A verdade é metástase.

A mentira é o inocente que comparece no hospital vestido de palhacinho pra distrair as crianças carecas. O câncer infantil é a expressão mais pura e bem acabada da verdade.

A mentira é o lado bom da verdade.

A verdade chafurda nas doenças e perpetua a raça. A verdade é a medicina, o avanço tecnológico. A mesma verdade que demorou 5 mil anos para inventar a penicilina agora prolonga o sofrimento do homem em nome de uma vida mais saudável, com mais qualidade. A qualidade de vida e os apartamentos de dois dormitórios com 40 m2 são invenções do diabo.

Quem, senão o diabo e os corretores de imóveis, teria interesse no aumento populacional? A verdade é o pai do método científico. A mentira joga truco.  A mentira apara as arestas, desconstrói e educa seus filhos para que eles não mergulhem na selvageria. A mentira dá a opção da subversão, enquanto a verdade é o jugo, o relho, a imposição e a piscina de hidroginástica da terceira idade.

As nutricionistas e as fisioterapeutas também são satanistas.

Somente ao diabo interessa propagar as virtudes da verdade para que a mentira seja marginalizada. A verdade usa a mentira como álibi (vide Iraque, Afeganistão, Alphaville IV). Ninguém abraça a verdade para confessar um assassinato. Mas na hora do crime, quem prevalece? Claro que é a verdade. Porque a verdade não engana, não manda recados, não dissimula.

A verdade é impiedosa, ela mata e condena em nome da mesma lógica que vende a paz e a segurança. A lógica é outra inquilina do diabo. A paz é a guerra em standy by. A mentira não tem autoridade, nem precisa se autojustificar como a verdade. A mentira não tem bandeiras, nem hinos, nem muros, nem porta-estandartes. Diferentemente da verdade, que se autoproclama o tempo todo e recorre a pingentes como a lógica, a razão e o juízo para se impor, a mentira não precisa de nada disso, não precisa provar nada a ninguém. Sabem por quê?

Porque o diabo não mente.

A mentira alarga prazos. A verdade despeja, desocupa e dá nomes de jardim pros cemitérios.

A verdade é um criadouro de hierarquias, lugares onde vicejam a ordem, a disciplina e a submissão. A verdade precisa ser construída e se alimenta de conflitos, intersecções, ponderações, arrazoados, escaninhos, despachos, protocolos, contratos, recursos, teses e antíteses, sintaxe, oratória, linguagem e o escambau. Ou seja, a verdade se alimenta da confusão,  embora use o disfarce do método e da disciplina para dar verossimilhança à  barafunda que enseja: a verdade é uma fuzarca, e o diabo é o rei da fuzarca, o príncipe da confusão. O diabo é o valete dos eufemismos. O pai da verdade.

A mentira, ao contrário, é simples. A mentira tem nome de meretriz, a mentira é arroz com feijão. A mentira é um alvo fácil para ser apontado e invadido. A primeira pedra não atirada é a verdadeira. O linchamento segue o mesmo padrão. O diabo se diverte.

Quando você é traído pelo seu melhor amigo, quem o traiu? Em primeiro lugar, sua verdade, e depois a verdade dele, ora bolas. Quem trai, não trai apenas num golpe, trai desde o início, desde sempre. Isso significa que a traição mais filhadaputa aconteceu quando o traidor dizia a verdade a você, e não quando você o flagrou na mentira. A causadora das decepções  e das dores é a verdade. As moscas que sobrevoam o lixo hospitalar são verdadeiras. A verdade é a alvorada e é o aborto que desperta a adúltera para mais um dia de traição. Sonhei com você.

– A mentira era o melhor de nós dois.

De nada adianta fulano se debater contra a verdade alheia, porque a verdade pertence ao outro da mesma forma que ela é sua, inalienavelmente sua (e vice-versa). Ou seja, para se alcançar a verdade, alguém sempre terá de abrir mão da verdade! A verdade é ouroboros.

Basta fazer uns cálculos. Nada muito sofisticado, uma regrinha de três é o suficiente para constatar que o diabo não pode ser o pai da mentira. Tampouco o filho. Nem parente distante. A  verdade apaga a luz e manda a fatura em nome da mentira. O diabo enxerga no escuro.

O único que falou a Verdade em nome da Verdade, que não precisou mentir pra dizer que era a luz, a Verdade, o caminho e a salvação, morreu como se fosse um mentiroso.

A partir desse dia, o diabo assumiu alegremente o epíteto de Pai da Mentira: nada mais falso, nada mais conveniente e nada mais diabólico . Nada mais humano. Nada mais verdadeiro.

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O obsceno senhor M.M.

Roberto Piva professava, não existe poesia experimental sem vida experimental. A frase é perfeitamente aplicável a Marcelo Mirisola. Todos sabemos que ser maldito não é brincadeira e nem sempre uma escolha, as coisas são o que são para quem escolhe a via mais torta, arriscada.

M.M. assume esse risco e sua escrita, que tem muito de poesia, é perigosa. Ele é perigoso, obsceno, niilista, e o maior veneno para quem não gosta dele, é que ele escreve como um russo com os olhos de um paulistano exilado no Rio.

Da mesma forma que M.M. não faz média e não se curva para nada, ele é extremamente talentoso e competente. Ele deveria ser aquilo que as crianças pensam quando imaginam um escritor e não esses panacas sem sal que ocupam esse lugar, tanto os da Mercearia, quanto os das padarias de Pinheiros. Mas as crianças, sob risco de desenvolver um “spleen”, antes do tempo, não deveriam ser expostas a este risco. Crianças, guardem esse nome para quando vocês crescerem que há de lhes ser útil, Marcelo Mirisola.   

Em sua décima edição, o Ler Primeiro, tem a honra de contar com um texto de M.M. “O Pai da Verdade”, originalmente publicado no Congresso em Foco, onde mantém uma seção.

O autor mandou o seguinte texto, a título de minibiografia: “Nasci em 9 de maio de 1966. Tenho doze ou treze livros publicados e mais três no forno. 1, 77, detesto a cia de nerds metidos a escritores e gosto de pizza de muçarela”.

Vale a pena ler primeiro é seção de Outras Palavras dedicada à literatura. Foi criada e é editada por Fabiano Alcântara. Jornalista especializado em cultura, repórter de Música do portal Virgula, e colaborador de diversas publicações – como Valor Econômico e os sites das revistas TRIP e TPM –, Fabiano é também músico, baixista das bandas Mercado de Peixe e Lavoura e curador de festivais.Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui.

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2 comentários para "Ler Primeiro: O Pai da Verdade"

  1. ana disse:

    Deveria terminar de ler, já li esse texto várias vezes e achei brilhante.
    O autor quer chocar para depois explicar, de forma que desperte o interesse do leitor, introduzindo assuntos polêmicos de forma diferente.
    Simplesmente genial.

  2. Assaz Atroz disse:

    Desculpem, mas não deu pra ler tudo.
    Já no primeiro parágrafo, a gente fica meio tonto.
    Vejamos: “A maior mentira de todas as mentiras é dizer que “o diabo é o pai das mentiras”. Se tem alguém que é absolutamente refratário à mentira, esse alguém é o diabo.”
    Aí eu leitor toquei de posição e passei a imaginar: “Esses pessoal deve estar querendo dizer que Bush realmente falava com Deus e, mais que isso, o representava na Terra, substituindo o Papa.”
    Pra não dizer que eu estava com mau vontade, continuei a leitura.
    Aí, haja sofisma barato e dos mais confusos que já vi e ouvi, continuemos voejando:
    “Não tenho notícias de guerras em nome da mentira. Alguém pode pensar na invasão do Iraque pelos EUA. Aí eu digo que pretexto é uma coisa, no caso a ameaça de armas químicas: um pretexto falso. Mas a invasão de fato ocorreu em nome de uma – ou pior – de várias supostas verdades. As mesmas de sempre, aliás. Ora, se o pretexto era falso e serviu de álibi para a imposição da “verdade”, temos aqui vários elementos que confirmam a preferência do capeta pela verdade. Maquiavel foi o primeiro a assumir a verdade como arma mortífera. Trabalhava para o príncipe.”
    Quase fui ao delírio: “Afinal, é verdade ou mentira que estou lendo isso?” – me perguntei.
    Acho que foi por isso que não consegui chegar ao final da leitura, pois tinha muita coisa a fazer.
    De qualquer forma, obrigado pela dica.
    Abraços
    Fernando

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