Karl Marx no Quadrante Sudoeste

Ao refletir sobre geografia de S.Paulo, é inevitável lembrar ideias do barbudo sobre papel desumanizadora do trabalho, em sociedades segregadas

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Quatro horas por dia, em ônibus lotados. Considere se é possível viver criativamente, em tais condições. E pense na segregação social e étnica implicada

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Ao refletir sobre geografia de São Paulo, é inevitável lembrar ideias do velho barbudo sobre natureza desumanizadora do trabalho, em sociedades segregadas

Por Juliana M. Dias

Por que algumas pessoas têm direito de usufruir da cidade, enquanto outras apenas vivem para enfrentá-la, num esforço diário por sobrevivência? O Brasil tem a imagem de ser cordial e amante da igualdade, mas ainda permanece essencialmente escravocrata e segregacionista. Basta um olhar em qualquer metrópole para vermos que a questão vem de séculos. Isto não significa um desejo de viver em eterna contemplação improdutiva, uma volta à vida bucólica e menos ainda uma crítica às sociedades industriais ou ao capitalismo, mas uma tentativa de reflexão sobre a busca pela realização profissional, o que as pessoas fazem com seu tempo livre, a sobrevivência versus a vivência. Nada disso é igual para todos, nem nunca foi.

Moro em São Paulo, no bairro do Paraíso (adjacências do Centro) e trabalho em um escritório no Brooklin (Zona Sul). Levo o mesmíssimo tempo para percorrer os 6 quilômetros de distância estando a pé ou de ônibus, exatas 1h20 – a diferença é que a pé chego com 600 calorias a menos. Isso é um sintoma de se viver em uma cidade que sucateou o seu Centro, deixando-o entregue ao abandono, onde ninguém quer morar, nem passar. O desenho urbano hoje é definido por nova região de concentração de empregos, o chamado “quadrante sudoeste” que reúne os “melhores” bairros, menores índices de mortalidade e violência, melhores serviços, temperaturas mais baixas (porque é mais arborizado), melhor infraestrutura de transporte e um chão tão caro que chega a ser irreal. É a região rica da cidade, que no Rio corresponderia à Zona Oeste. Nela, de forma geral, “ricos” moram, trabalham e precisam percorrer trajetos mínimos para acessar  todas as suas atividades de lazer — academia, shopping, pet shop. Esse quadrante abrange bairros como Pinheiros, Vila Madalena, Brooklin, Jardins e Vila Olímpia, entre outros. Esses dados e o mapa são dos estudos do professor Flavio Villaça (USP) sobre segregação.

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Entre patrões e empregados, existem diferenças fundamentais com relação ao uso da cidade nesse “quadrante sudoeste”. Os empregadores, em geral, moram e trabalham na região; têm filhos que lá estudam; deslocam-se de carro. Já os empregados chegam de áreas distantes. Muitos moram na Zona Leste, região mais populosa da cidade, que conta com apenas uma linha de metrô (que alcança poucos de seus bairros) e uma de trem metropolitano (insuficiente e muito saturada). Uma viagens de ida ou vinda estende-se frequentemente por duas horas.

Mas as pessoas que vivem em um condomínio fechado de alto padrão, no quadrante sudoeste, não o fazem por terem “corações de pedra” ou serem “vilões contra a classe trabalhadora”. É uma questão cultural. A cidade é injusta porque a distribuição de renda o é, também. As oportunidades são desiguais. Há fraturas profundas entre as classes sociais, ainda que tenhamos passado por grandes modificações nos quadros da miséria nos últimos governos.

Imagine que você é filho ou neto de alguém que, por circunstâncias diversas, fez faculdade, teve carreira profissional bem-sucedida, pode comprar casa e pagar seus estudos em uma boa escola e uma universidade. Você morou por toda a vida em uma casa no Alto de Pinheiros (exemplo de bairro rico da Zona Oeste), que um dia será sua. Nunca viveu sem carro. Mas a cidade abriga, também, filhos de sertanejo, que veio para São Paulo tentar a sorte, empregaram-se na construção civil, construíram um cômodo em um lote invadido de Parelheiros (extremo sul) e casaram-se com empregadas domésticas. Seus filhos terão estudado, por toda a vida, em uma escola municipal. Começaram a trabalhar cedo. Nunca prestaram vestibular.

Entre os privilégios ou dificuldades que marcarão a vida desses dois personagens, quais estão ligados méritos; e quais são provenientes das oportunidades que tiveram por “herança”? Quais das conquistas do primeiro personagem fazem dele um merecedor da “melhor parte” de uma cidade, que deveria ser de todos? Bons estudos costumam desembocar em boas carreiras, mesmo que isso demande grande esforço e trabalho. Onde estarão vivendo essas duas famílias e seus descendentes, até que algum deles consiga quebrar um elo dessas correntes hereditárias? E por falar em correntes, é preciso tentar adivinhar as cores das peles desses dois personagens, que você provavelmente já imaginou? Qual deles é o descendente do imigrante europeu; qual é o bisneto do escravo? Isso está incrustado na nossa cultura, simplesmente. É uma herança da nossa miscigenação intensa, porém segregada.

Quem é mais pobre mora longe do trabalho e outros destinos. Perde no transporte tempo precioso que poderia ser usado para desenvolver uma atividade intelectual ou prazerosa. É devastador o que a falta de tempo e dinheiro estudo, leitura e outras atividades culturais pode fazer com uma pessoa; mas é ainda mais devastador não ter o direito de, simplesmente, não fazer nada: não ter tempo livre para criar, produzir autonomamente, divertir-se.

Um modelo de vida urbano baseado em sacrifícios traz, além de defasagem intelectual, diversos problemas de saúde. Algumas profissões a que estão obrigadas as pessoas obrigadas ao trabalho para mera sobrevivência são desgastantes, degradantes, aborrecidas ou humilhantes. Mas a grande maioria é exercida para enriquecer alguém. Por mais que o trabalho, qualquer um, seja “edificante” (existe mérito no esforço), é preciso ter estrutura familiar e/ou financeira para desempenhar sua vida profissional com prazer, o que geralmente determina o sucesso.

Não sou comunista, mas cito aqui o barbudo alemão, para reflexão: “O trabalho é externo ao trabalhador, não pertence ao seu ser, que ele não afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito… O trabalho não é a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele.”

É preciso ligar as peças do quebra cabeças que faz com que a cidade simplesmente só funcione para algumas pessoas. Em qual momento ela (ou elas, já que estamos falando de metrópoles brasileiras) fugiram do controle? Vivemos o paradoxo de ter que usar o carro para ir para o trabalho e ter que trabalhar para pagar o carro. Copiamos dos filmes hollyowoodianos dos anos 1950 a fascinação por automóveis, autoestradas, eletrodomésticos, consumo. Ele não é um mal em si, e é bom que muitos tenham saído da miséria e podido ter consumir, mas quando isso se faz de forma pouco consciente, baseado em desigualdade e substituindo investimentos em serviços públicos de qualidade, surge uma infelicidade quase palpável, algum tipo de angústia crônica.

Essa não é uma discussão apenas urbanística, mas profundamente íntima. Trata das relações que começaram a se desenvolver quando o Brasil incorporou as injustiças de mundo desigual num deságue doloroso e sangrento. O local onde vivemos reflete esse peso histórico, tornando o usufruto da cidade privilégio de poucos, enquanto a maioria apenas a usa como meio de subsistência.

Sim, as cidades precisam de mais metrôs, de catracas livres, do fim da cultura do automóvel, de energia limpa. Mas também precisam de periferias que sejam autônomas e estruturadas para que os destinos se invertam. E para isso as cabeças precisam deixar de ser apenas operantes para se tornarem pensantes.

Referências:

VILLAÇA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estudos Avançados,  São Paulo ,  v. 25, n. 71, Apr.  2011.

JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000

ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Global, s. d.

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7 comentários para "Karl Marx no Quadrante Sudoeste"

  1. Rafael Ka disse:

    Interessante seus apontamentos do texto.
    Parabens pela iniciativa e compartilhamento.
    Gostaria de abrir minha pessoal opiniao no ambito Urbano.
    Fujo um pouco do contexto do conflito de classes e distribuicao de rendas.
    Acredito que a raiz do problema e’ o Servico publico no partido.
    Sem poder negar influencia politica Governamental com pouco conhecimento obras.
    Resulta em poderes de distribuicao de verbas para obras com prioridades desordenadas.
    Tirando isto seria Plano Diretor,Obras,Dptos urbanos publicos responsaveis atrasados e obsoletos.
    Hj a Biologia e a Arquitetura Urbana deviriam andar juntas.
    Afinal estamos falando de vida e criamos ecosistema novo de ocupacao.
    E no atual 2 deptos fucionam separadamente.
    Como secretaria do meio ambiente brigando pra preservacao .Mas impossivel de conter populacao que cresce a galope.
    Como mudar isso ? E tornar favoravel o uso do meio ambiente sem matar a Biologia
    Planejamento Urbano trabalhasse bem.
    A implantacao saneamento basico com tratamento sem matar todos os rios e que seriam pelos corregos.E tbm a largura das ruas alterasse atenderia a demanda do fluxo futuro de uma super ocupacao.
    Deixaria de ser problema e tornaria uma solucao!!
    Nao entendo se tendo tantas terras ainda insistem em ter ruas tao estreitas!
    Projeto urbano secretaria de obras das prefeituras poderiam adotar nova metragem em plantas de vias publicas.
    Teriam 6 pistas carros. Assim favoreceria transito de ciclovias, lazer e espacos para se plantar areas verdes pra amenizar bx umidade.E isso deixaria de ser luxo ter qualidade de vida,
    Pq dpois de ocupado fica por ordens burocraticas extremamente limitado a mudancas e acertos demasiadamente onenorosos de correcao
    Acredito que paises moderno como USA.
    Ha um estudo do crescimento da cidade em densidade Fisica e Demografica regional trabalha junto com as obras publicas.
    Seria simplesmente aplicar tecnologia e inteligencia a favor Crescimento Urbano.
    Assim qdo povo comecasse a aglomerar existiria qualidade de se habitar sem ajustes e investimentos Faraononicos.
    Deixo minha participacao.

  2. Eduardo disse:

    Excelente Texto. Sempre tento alertar amigos em nossas conversas sobre essa realidade, busco sempre afastar do centro do debate o conflito de classes e trazer para o debate a questão da distribuição de renda, que a meu ver é algo mais urgente. Parabéns pelo artigo. Recomendarei.

  3. muito bom o texto….mas a ponderação foi o mais importante! (“…Mas as pessoas que vivem em um condomínio fechado de alto padrão, no quadrante sudoeste, não o fazem por terem “corações de pedra” ou serem “vilões contra a classe trabalhadora”…”)

  4. Lourival Almeida de Aguiar disse:

    Infelizmente não estou com tempo para escrever muito, mas o suficiente para dizer que a jovem autora Juliana expressou o que eu acho e vivo muito melhor do que eu o faria. O que ela descreveu é o retrato abstrato das metrópoles, que precisa ser superado na luta particular e específica do dia a dia articulada com a luta mais geral contra os sistemas e subsistemas sociais de exploração e opressão. A juventude sensibilizada está nas ruas protestando. É um alento de que ainda temos esperança num futuro próximo a construir. Parabéns, Juliana. Desejo que existam muitas mulheres como você.

  5. Artigo excelente, trata-se de uma realidade que a meu ver se propaga por quase toda parte, os ricos que detêm poder econômico, dinheiro e conhecimento do mundo tentam se isolar criando para si os melhores ambientes onde o patrimônio é supervalorizado, a qualidade de vida excelente e até ecologicamente aparentemente boa, enquanto aqueles que trabalham e não tem condições de transformar seus conhecimentos em beneficio de si e do meio ambiente penalizam, porém acredito que um mundo mais solidário e distributivo é mais sustentável e pode tornar o trabalho mais agradável e estimulante no que pese este ser externo ao ser humano e que pode ir além da sobrevivência.

  6. Ligia Barbosa disse:

    Belo artigo. Em Manaus não é muito diferente, já que nos anos houve um grande aumento da sua população que tem se espremido nas periferias da cidade, a onde o estado é não se encontra onipresente.

  7. Andressa Pellanda disse:

    Penso nisso todos os dias. Muito bom artigo.

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