Inside Job e as entranhas do capitalismo

Documentário vencedor do Oscar disseca ideologia que submeteu mundo às finanças e desnuda relações entre grande capital e poder

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Por Romualdo Pessoa, editor de Gramática do Mundo

Sensacional! Eu não poderia encontrar palavra que expressasse melhor a minha satisfação ao ver o documentário Inside Job, premiado com o Oscar 2011. Mal-traduzido para o português como Trabalho Interno1, o documentário é dirigido por Charles Ferguson, que não chega a ser um cineasta famoso. Empresário e formado em matemática, ele expõe com rara clareza as entranhas do processo que culminou com a crise econômica que teve seu ápice em 2008, e da qual o mundo ainda não se recuperou. Seu trabalho brilhante merece ser visto por todos os que procuram compreender o real funcionamento do sistema capitalista na atual etapa de financeirização.

Tudo começa e gira em torno da chamada desregulamentação. Em 2008, quando estourou a crise, disse a meus alunos que que certamente ouviriam muito essa palavra, dali em diante. Desde o final do ano anterior, (e mesmo bem antes, como mostra agora Inside Job) era perceptível aos analistas independentes, mais críticos do comportamento neoliberal, que se aproximava uma grave crise imobiliária nos EUA. Percebi que ela colocaria em xeque toda a política neoliberal, que procura retirar do Estado os mecanismos que permitiriam controlar a movimentação financeira mundo afora e os enormes lucros astronômicos do capital que se dedica a ela.

Desregulamentação, enfim, veio a ser todo o processo político e econômico que possibilitou uma enorme virada na economia mundial e deu início ao que passou a se chamar “Globalização”. Partia-se do princípio que era necessário livrar a economia de todas as amarras que eram impostas pelo Estado e garantir ampla liberdade para o comércio mundial. Não se percebeu no primeiro momento que essa liberdade reivindicada tinha como alvo principal a movimentação do capital financeiro pelo mundo. Claro, também para as mercadorias. Mas a mercadoria mais importante a ser “libertada” era o dinheiro, permitindo aos especuladores “inventar” múltiplas fórmulas capazes de multiplicar seus rendimentos.

As finanças globais foram, assim, transformadas num verdadeiro cassino. Analistas e acadêmicos das famosas escolas de administração, economia e finanças dos EUA tornaram-se consultores e assumiram cargos elevados da alta administração das finanças estadunidenses. Já nos anos 1980, François Chesnais(2) e Perry Anderson(3), críticos da forma como se dava a globalização financeira, acusavam: tanto o termo “globalização” quanto a idealização das políticas neoliberais haviam sido criados nas escolas de administração dos Estados Unidos.

A crise do socialismo havia aberto caminho para um discurso que demonizava as políticas públicas de cunho social. Sustentava-se, então, que o capitalismo sem freios era a única alternativa capaz de solucionar os problemas do mundo a assegurar a prosperidade para todos. A chave estava em garantir liberdade àqueles que visavam investir seus capitais em rentáveis negócios, de forma a espalhar desenvolvimento por toda a parte. O discurso foi eficiente: a maioria das pessoas comprou o argumento – inclusive os mais pobres. O que não se via é que o poder estatal não desaparecera: fora transferido para instituições como FMI, Banco Mundial e outras “governanças” globais que se tornaram mais fortes que os Estados nacionais.

Deslumbrada pelo papel que a propaganda e ou marketing passavam a ter, a “grande” mídia de mercado manipulava e escondia a verdadeira face do que estava se espalhando pelo mundo. Poucos, muitos poucos, ganhavam milhões em todo esse processo. É um detalhe a ser observado quando se assiste Inside Job: as cifras citadas são de valores grandiosos, a mostrar que a desregulamentação abriu as portas do “inferno” para todos os tipos de gananciosos e criminosos financeiros (ironicamente Fergusson começa o documentário dizendo que chegou a mais de 20 trilhões de dólares a soma gasta para cobrir as quebradeiras do sistema financeiro estadunidense e mundial).

O documentário, aliás, também ajuda a enxergar como o poder político determina os mecanismos que garantem a acumulação de riqueza nas mãos de uma ínfima minoria. As entrevistas, algumas delas feitas com personagens que estiveram no centro da crise, chegam a ser hilárias.  Ferguson derruba todos os argumentos que são apresentados pelos envolvidos a partir de uma competente pesquisa, com informações sobre a participação de cada – aberta ou dissimulada – na gestação do terremoto financeiro.

Tudo isso à custa do crescimento da pobreza no mundo, principalmente em países que abandonaram todos os tipos de investimentos produtivos, a partir da pressão para que o Estado se afastasse de determinados setores da economia. Em várias partes do mundo, esta retirada desmantelou, por exemplo, a produção agrícola, resultando hoje em crise da produção de alimentos e o encarecimento dos mesmos, afetando principalmente a população mais pobre. Seria cômico, se não fosse trágico.

A chegada da crise a todos os continentes (com menor impacto nas nações da periferia que se apoiaram em um mercado interno em expansão), evidenciou o estrago feito pelas políticas neoliberais. Mas isso não significa que os agentes responsáveis pela quebradeira, pela ação gananciosa que ampliou a pobreza inclusive em países como os Estados Unidos, tenham sido punidos. Ao contrário: o documentário mostra que muitos deles ocupam hoje cargos importantes na estrutura administrativa daquele país. Foram indicados por Barack Obama, ilusoriamente visto como a saída para o caos econômico que atingiu os EUA.

O que deduzimos de Inside Job é que a maioria dos seres humanos não vivem no sistema descrito pelo filme. Vivem sob ele. Quero dizer que a enorme maioria das pessoas vive no submundo do que se pode caracterizar como capitalismo. Algo já dito, de outra maneira, pelo historiador francês Fernand Braudel, para quem o capitalismo deveria ser dividido em uma economia superior, onde se faz o capital, e uma economia inferior, onde praticamente as pessoas trabalham e produzem para sobreviverem. Aí se encontram-se as grandes maiorias. O impressionante é a quantidade daqueles que, vivendo nesse submundo, são submetidos a uma verdadeira lavagem cerebral. Acreditam poder atingir a riqueza daqueles que controlam os meios pelos quais ela é conquistada. Talvez esta ganância obsessiva explique por que há tanta corrupção no mundo.

Mas é evidente que creio ser possível superar os abusos do capitalismo. Pode-se mesclar algumas coisas que são positivas, com a necessidade de se distribuir a riqueza de forma mais democrática. E o Estado é essencial para isso. Não sou pessimista. Jogo no time dos que acreditam que um outro mundo é possível!

PS: Sugiro aos interessados em Inside Job que assistam também outros dois documentários: Enron, os mais espertos da sala e Corporation. Se tiverem tempo, vejam também Capitalismo, uma história de amor, de Michael Moore. A partir daí será difícil entender porque tantos defendem que o capitalismo é o melhor sistema para a humanidade.

1Segundo Luis Gonzaga Beluzzo, Inside Job é uma expressão idiomática e não caberia uma tradução literal

 

Referências:

(1) Inside Job, documentário imperdível. Artigo de Luis Gonzaga Beluzzo, publicado originalmente no jornal Valor Econômico. (http://fmauriciograbois.org.br/portal/noticia.php?id_sessao=12&id_noticia=4957)

(2) CHESNAIS, François. “A emergência de um regime de acumulação financeira” in Praga, estudos marxistas, número 03. São Paulo: editora hucitec, 1997.

(3) ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo”, in SADER, Emir e GENTILI, Pablo (org.), Pós-neoliberalismo – as políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1995

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17 comentários para "Inside Job e as entranhas do capitalismo"

  1. Já viu o filme Inside Job e as entranhas do capitalismo, ganhador do Oscar 2011? No ponto em relação origem the crise: http://www.outraspalavras.net/2011/03/16/inside-job-e-as-entranhas-do-capitalismo/.

  2. Resumiu mt bem o documentario

  3. Tradutor Profissional disse:

    Apesar de admitir algumas traduções já citadas, eu escolheria o termo “Sabotagem” pois a expressão “inside job” remete à uma ação, em geral nefasta e que destrói ou danifica um sistema ou máquinas, cometida por um agente “de dentro”, “infiltrado”, um espião ou traidor.

  4. Matheus disse:

    Medo, muito medo de gente como o Misael. E olha que eu sou da “classe média-baixa”.
    Eu ainda não assisti ao filme, pretendo, mas, a julgar pela resenha, já tenho quanto a ele sérias ressalvas. Passagens como “… poucos, muitos poucos, ganhavam milhões em todo esse processo” e “…. acreditam poder atingir a riqueza daqueles que controlam os meios pelos quais ela é conquistada” são de um non sense delirante, com todo o respeito. A uma, porque eu posso ser feliz e viver bem sem ganhar milhões, e esse não é o projeto de vida da maior parte das pessoas que conheço. A duas, porque essas palavras soam de um jeito mesquinho, como de quem não está tão preocupado com “distribuir” quanto com “tomar”.
    A intenção não é ofender ninguém, e peço desculpas se o fiz. O fato é que o ideal comunista deixou um rastro de sangue por todos os lugares onde passou. É a emenda que sai pior do que o soneto. Sempre.

  5. Anna Luiza Rodrigues disse:

    O capitalismo É o melhor sistema para a humanidade. Inclua nas suas sugestões o ducumentário FREE TO CHOOSE, disponível na íntegra no youtube, do GÊNIO MILTON FRIEDMAN.Ele evidencia que a solução para os problemas do capitalismo não pode ser, como vc sugere, uma permissão maior para a entrada das PATAS ASQUEROSAS do governo em NOSSAS vidas.Devemos NÓS mesmos, através do mercado, encontrar soluções para os NOSSOS problemas e não entrgá-los ao governo.”A solução do governo para um problema é invariavelmente tão ruim quanto o problema.” Milton Friedman.

  6. knight disse:

    o melhor site de filme, vcs podem encontar esse documentario:
    http://www.acheidownload.biz/

  7. Hnrck disse:

    Inside Job = Trabalho nos Bastidores.
    Uma expressão que indica algo como “mostrar a verdade por trás das cortinas”, ou “mostrar aquilo que ocorre nos bastidores enquanto o show ocorre”.
    Claro que o show, nesse caso, são as nossas vidas… Como já diria o sábio político: “O Mundo Todo é um Palco”. =)
    Parabéns, ótimo texto.

  8. Silvia Barbosa disse:

    Parabens pelo texto! tambem Jogo no mesmo time dos que acreditam que um outro mundo é possível!:D Que deus esteja conosco!!

  9. moroni disse:

    Estão surgindo novos e melhores tempos onde a história não é somente escrita pelos vencedores.
    Pouco a pouco a turba dos ignorados e alijados pelo sistema, que em tempos não muito longínquos sussurravam nos megafones, vem tomando o seu lugar na consciência da sociedade transformando os panfletos virtuais em verdadeiros aríetes que arrombam os muros da hipocrisia.

  10. Misael disse:

    Prezado Romualdo, é a primeira vez que leio uma matéria de sua autoria. Gostei da segurança e do entusiasmo expressos no texto. Espero que você tenha consciência do alcance limite da posição que você assume. Digo isso porque sou revolucionário, portanto, para mim, riqueza é sinônimo de exploração do trabalho alheio e é diferente de bem-estar, então deve ser eliminada, e não distribuída, até mesmo porque se for distribuída dissolve-se como riqueza. Também para mim, o Estado não apenas não é necessário, mas deve ser substituído pelo povo em armas.
    Entendo sua posição, conheço-a e a respeito. Este comentário visa apenas provocar debates futuros, pois a esquerda só deve se enfrentar depois da revolução feita. O inimigo agora é o capitalismo.
    Abraço e parabéns pelo texto.

  11. Aécio disse:

    Alguém sabe onde aquirir o documentário? É possível fazer um download?

  12. Aécio disse:

    Embora não seja possível a tradução literal dessa expressão indiomática, “inside” transmite a ideia de âmago, interior, intestino, estômago, entranhas… Job, por se referir a trabalho, emprego, tarefa, ocupação, serviço, obra, pode ser assimilado a funcionamento, engrenagem, operação… Daí, pelo conteúdo do documentário, há um esforço (job) de penetrar nas entranhas (inside) do funcionamento do sistema do capital, expondo sua lógica progressiva, sem controle.
    Sugiro que a tradução seja “Nas entranhas do sistema”.

  13. Eleuterio Prado disse:

    Inside job – acho – seria melhor traduzido por “tramoia”

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