Fêmea: Corra, Lola, Morra!

“Mas a outra, a viva, não se consumiu em nenhuma chama. Cantou todos os hinos de glória, mesmo que as vitórias nem tivessem tamanho de tão pequenas. Canta loca, ergue as mãos”

160213-Picasso

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Por Fabiane M. Borges | Imagem: Pablo Picasso

Não queria pai nem mãe, queria fratria. Sempre foi fratria e isso foi o impedimento. Nunca quis ser o motivo, o sentido, a direção, o grande gene que por fim vai eternizar a existência de alguém. Esse sentido imposto, depois a decepção. Estruturar um ego, aumentar o super ego, não ter tempo para o ócio, para a conivência. Somente o pacto genético que fundamenta o infinito? Nenhum rodeio.

Falar manso como quem quer dizer algo que é importante, o já sabido. Não há espaço para você no assento do ônibus. Mas tinha o assovio, o voo razante, a intolerância para a pequenez, para o bem pouco, para o que não vale a pena. Acham ainda que não valia a pena? Se pois se…

Corra Lola, morra, se bata no navio negreiro, leve a culpa da colonização nas costas. Segue tua escrita sem raiz. Levarás a culpa dos banidos, e dos autoritários agrupados em torno do gene que só fazem hierarquia no gene dos outros. APLAUSOS. Tudo raça, mas de outra etnia. No final existe o não falado, o absorto olhar perdido de quem esconde o fato. É uma correria. E nisso o que não importa, – não importa! E se se parece com o que importa, MATA!!

Elas se juntaram em bando e resolveram ser justiceiras. Exercer um pequeno fascínio ativista, delinquente. Treinamento. Só que estrábicas, despossuídas, pegam de bandida a desavisada, que está caminhando na praça e não tem motivo para assassinar, não naquela hora. Naquela hora está montando os corpos com órgãos aleatórios. Suas frankeistens. Os seios de uma, a língua da outra, o sonho do besouro escondido de traz das costas daquele totem, que parecia herói e ao mesmo tempo, inapto.

É que são inaptos os sonhadores. Eles medem consequências mas contabilizam tudo errado. Uma contabilidade tardia. Sem contenção. Ou tão convulsionada que se fragmenta. A antena ardendo, piscando, fumegando, cozinhando tudo nas suas entrepernas enquanto promove a sessão, discute a circunscisão e por fim distribui prêmios, plantas, incêndios. A antena de captação dos fluxos mirabolantes que estoura processos, projetos, pragas. Muitas pragas: vou comer todas tuas plantas orgânicas, magricela! Virar suco verde na tua cabeça de princesa. Essa também é planta genética de alguma família sem vontade ou delírio. Faz como deve fazer, amo-te como a mim mesmo, até a separação. E a separação estava ali espocada nos cabelos de uma leoa sem rugido, sem leão, sem zoológico, nem pantanal.

Dentro do seu coração há um amargor de coisa amarga. O que poderia ser mais amargo do que seu coração? Nenhuma dívida financeira, um bolso cheio de dinheiro, de isqueiro, de flores. Mas nada esconde o fedor da doença amarga que fica pregada no coração. Tem cura a doida, mas é preciso muitas agulhas, muitas incertezas, ser forjada no pé da cocaína. Uma carreira mais e o amargor vira taquilalia, fala de anarquia, de insetos, de doenças mentais, de discos voadores, de vibradores, da montagem do último curta da figura que conheceu no bar, a quem beijou, a quem fez promessas e depois não lembrou de desfazê-las. Ter que ouvir seu grito de menino na janela, vem almoçar comigo, vem almoçar comigo… Mais uma carreira perdida, por algum passo instável que afundou na pedra do rio, bateu a cabeça e morreu.

Não que os inúmeros acasos tenham feito estrago demasiado, mas uma dor nasceu, uma dor de NÃO. Uma dor de IMPEDIMENTO. Corra doida, Morra!!

Você sabe quantos anos tem o filho do presidente do Equador?

De qual filho você está falando?

Daquele filho índio que odeia o presidente!!

Ah, sim, estamos falando do índio morto. 34.

E então o pedófilo disfarçado falou do seu primeiro assédio, depois do segundo, e até do terceiro. Falou de uma compensação, algo de prazer que não cobra, que não sabe do que se trata, que não exige nem papéis, nem anéis, nem reprodução. Era sensato, fazia sentido, não fosse o fascismo, o poder sobre o fraco, a corrupção da carne alheia. Mas não estava ainda convencido que seu prazer que não cobra, existe. A memória e seus fantasmas. Às vezes surgiam às centenas, inumeráveis, delatando, esticando as redes, as fibras ópticas do fundo do mar, esticando a memória. Nada deteria a malemolência, a timidez, o vício, ou a acusação peremptória. Agora. Mil anos depois!! Somos filhas das bruxas mortas!!

Daquelas conversas de vampiros extraiu-se um grande tédio, poucos sorrisos, uma passividade estonteante. Muitos anos fazem mal, entedia. Mas não são todos vampiros quando se eternizam no filho?

Outro dia a mania de se fazer de cega veio como um aparato psicossomático. Nada lhe deixava ver, nem um palmo na frente da sobrancelha. Não via nada. O barulho dos insetos ficou tão grande que pensou se tratar do fim do mundo, e como uma desesperada gritou: Eles estão chegando, acabou tudo, acabou!! A espécie inferior que pica, contaminou o mundo!

Só horas depois quando passou a ressaca é que voltou a ver que a cama em que estava era do amor maior do mundo, o que sempre a apaziguou. Que entendia as correrias, os amores ao avesso. A abraçou e pediu perdão por não poder lhe dar seus próprios olhos. Não haveria perdão.

Nunca mais iria depender de uma carícia e disso dependeu toda sua degradação futura. Virou uma pedra de gelo, gelada e derretida, por fim poça d’agua, por fim tragada pelo sol. Preferia então virar pedra de pedreira, daquelas cinzas, simples, duras, rochosas. Nada haveria de desmanchar-lhe a estrutura, somente a britadeira. Mal percebeu que virara paralelepípedo, que de tão pisada e cuspida, agradeceu. Quando foi ser retirada chegou ao ponto de gritar como Prometeu, me devolvam para a águia. Por toda a eternidade, meu rim por uma pisada. Se acostumou.

Mas a outra, a viva, não se consumiu em nenhuma chama. Cantou todos os hinos de glória, mesmo que as vitórias nem tivessem tamanho de tão pequenas. Celebrou o sorriso na rua, o brilho da lua, os pingos da chuva, as mãos das crianças espalmadas nas paredes. Celebrou os parentes, a força dos próprios dentes, a bebida gelada, os amigos de calçada de rua, de bar, de manifestação. Cada hora um hino, cada um mais lindo que o outro. Canta loca, ergue as mãos.

Era tanta depravação das palavras que não tinha mais como exclamar nada. Os pontos de conexão com a expressão saíram em diáspora. Deram sumiço. Era preciso falar sem comunicar muito, para não perder o poder das palavras tortas que sobraram. Sumiu artigos definidos e por fim indefinidos. Sumiu interrogação, porque fazer pergunta é pretensão. A cega arrependida, a leoa sem leão, o fato sem concessão, todos eles pediram um tempo. Era um mundo com palavras tortas, mas elas comunicavam a confusão dadivosa. Que baixem os anjos de sodoma e gomorra, que nos deem tesão. E assim foi.

Não era insuportável ter tantos dados no bigdata, porque já ninguém se importava em ser estado de exceção. Todo mundo perdeu pra Deus, que voltou depois de morto, ressuscitado – uma singularidade. E todos por fim se transformaram em cabeça de Deus, em cérebro de Deus – o Deus sem cu. O mundo de palavras tortas que são números, que não tem gênero, era DEUS. Mas Deus não precisava de reprodução.

Depois do infinito, o recomeço. A grande graça. Era assim que se fazia o poder do mundo, que nunca foi fratria. E isso nunca deixou de ser conversa fiada.

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