Fêmea: Mirra, Sri e o templo sem religião

“Lembrou dos sumiços do marido, de fazê-la desimportante. Amor nem é tão importante assim, e além disso me faz sentir dispensável”

sri e the mother

 

.

Por Fabiane Borges

Quando ela chegou na cidade ele mal acreditava, achava que era assombração ou aparição, não que era algo de mudar destino. Ela tinha um jeito de mulher malvada, toda mandona, coração apertado. Ela queria desaparecer e precisava de guiagem espiritual pra alcançar as fronteiras do eu, de preferência ultrapassá-las, porque já não podia com a falta de sentido, com a falta de poder pessoal, com a maquinaria da empresa do marido, com as manias do filho que achava que ela tinha pouco valor. Ela queria mais poder pra poder com tudo isso, ao mesmo tempo esquecer de si, de sua história, para ela pesava tanta educação que recebeu e tanta falta de assunto 1.

Conversas de gente séria interessavam bem pouco, gostava mais de inventar conversa, montar futuro e comer sorvete. Inventava ser diretora e logo tinha duas três quatrocentas crianças fazendo as peças. Dizia ser professora e as salas se enchiam, é que tinha empatia e poesia, a isso Sri não resistia. Empatia era poder pensava ele, só falta dosar pra ela crescer e não se afogar. Empatia afoga, muito líquido solto pra se sustentar quieto, muita responsabilidade, todo mundo quer pedaço, sangue-suga. Mas ele nem sabia de tudo isso ainda quando ela chegou na cidade, só intuía com visão alegre, ver mulher serelepe contando causo do outro lado do mundo, ali no quintal do ashran, pra todas servas quietas e com olhos grandes sonharem. 

Logo que se encontraram ela deu o seu recado, dizendo da alma partida, da vida vazia, de morrer de afasia, queria se curar de tanto mal pensamento e lamento, repetia muitos dados e invocava umas risadas tristes de quem não espera muito, mas tem vontade. Era muito peso. Ele se ajoelhou diante dela que nem servo comum, disse que ela era treino para a humildade dele e sim, aprendera finalmente se ajoelhar, em troca lhe ensinaria levitar.

Não é que ela tenha tirado os pés do chão, levitou doutro jeito, pelas mãos de Sri, que lhe apresentava tudo que tinha ali como sendo dela. Fazendo todo mundo entender o que entendera ele. Diante dela se ajoelhe! Transformou em quase rainha, a transtornada. E ela aceitou majestosa o oferecido. Mas nem era tão fácil assim ver centenas de gentes se agachando por onde fosse. Lhe prestando favores, lhe servindo chá e pedindo benção. Feria seu senso de educação, sua cidadania. Não gostava de se aproveitar de ninguém, tomar tempo de ninguém, tratar alguém com desdém.

Sentia vergonha de ser alvo de servidão, voluntária, mas servidão, os gestos eram de servidão, bunda pra cima cabeça no chão, tem gesto mais servo que esse? E pensou no seu marido longe, que a botava nessa mesma posição pra lhe lamber as nádegas. Por um momento fechou os olhos, sentiu a língua do marido e arrepiou até o fim da traqueia, pensou que perdia tempo em estar longe do seu homem… Logo lembrou dos seus sumiços, de estar sempre ocupado, de ter tanta coisa para fazer, de fazê-la desimportante, de querê-la radiante ao seu bel prazer. Amor nem é tão importante assim, e além disso me faz sentir dispensável!! Talvez, não se sabe, tenha decidido nesse momento aceitar a servidão dos outros, a sentir sozinha a convulsão na traqueia, a tocar suas cabeças e pronunciar benção. Não demorou muito para se acostumar com tudo isso. Aprendia levitar e Sri se ajoelhar. Nunca mais deixaria o sul da Índia.

Sri estava encantado com presença tão ilustre, tão profunda. Sabia da profundidade dela. Reconhecia sua superioridade. O que ele tinha pra oferecer era a hombridade sagrada dele. De dividir poder e respeito. De dizer seu nome com reverência pra que todo mundo entendesse. Isso podia oferecer e ofereceu, tudo que tenho agora é seu Mirra, e ela obedeceu, é meu! E aparecia cada vez mais, brilhava seus trabalhos, seus mandatários, tudo brilhava, e Mirra crescia. Se fazia arrojada, esqueceu a outra vida, mas nunca conseguiu ficar invisível. Sri concordava com todo esquecimento. Mas sempre lembrava, teu poder é do divino. Não te envaidece, senão enfraquece. Tua iluminação é pelo trabalho. Teus servos te obedecerão em nome da grande luz. Você é serva reencarnada, pode subir e descer a escada. Usa bem teu instrumento, teu templo bípede. Joelhos no chão, pedia benção e a deixava.

Mirra, que virou Mother, se acostumava com os ritos, com a concentração e aceitava tudo com graça. Devolvia a confiança transformando tudo. Abrindo escola. Plantando árvore. Fazendo sopa. Contando história até não mais poder, ensinando ler e escrever. Fazia horta, meditava, curava doente, pedia livro doado, jogava tênis, educava o povo, se doava, aceitava os corpos, as disponibilidades, e sobretudo mandava: aqui embaixo, lá em cima, limpa a escadaria, aperta os parafusos, cria a notícia, chama o jornalista, a enfermeira, traz pra baixo a prateleira, mexe até engrossar, hoje é festa e vamos dançar.

Sri escrevia sem parar. Nunca teve tanto impulso, era muita inspiração, não paravam de brotar as palavras, as poesias, estava mais perto da graça, sentia devoção, gratidão e via o ashran modificar. Quando ficavam sozinhos, Sri ajoelhava e beijava os pés da Mother. Por muitos anos essa beatitude foi seu grande laço. Beijar os pés de Mirra. Beijar os pés de Alfassa. Beijar os pés da Mother. Não havia dúvida de que era amor. Não havia dúvida que era destino. – Quero envelhecer contigo, dizia ele. – Quero construir um templo, dizia ela.

Ela queria um templo fora do tempo. Fora de toda arquitetura. Fora da sujeira habitual. Desde pequena sonhava com isso, porque tinha muito inimigo. Tanta gente que gostava e a família recusava, porque era judeu, porque era muçulmano, porque era católico. Imaginava todo mundo numa grande bola. Mas agora, essa bola que sonhara ia criando tato. Quase tocava. Sri tocava, dizia que entendia, e se programava: dia 18 às 19 o arquiteto estará na cidade, vamos marcar encontro. Mas logo ela descartava. Ele não tinha a cara boa, ele não era o cara certo. O sonho da Mother percorreu todas aldeias e cidades e até os barcos da praia, e vários se lançaram pra realizar o sonho dela. Uma grande bola, ela dizia. O povo anuía. E a bola foi crescendo. Gente do mundo todo correndo de um lado pra outro fazendo, da bola, um templo. Ela envelhecia e cada vez mais escrevia. Os diários da grande bola, das pradarias, da limpeza da água do mar, o reflorestamento, as sementes a brotar.

Às vezes tiravam fotos. Sri e Mother como dois fantasmas, sentados nas almofadas feitas por mãos servis. Ela se doava e imaginava, aqui nessa bola grande ia ter uma única luz que viria de cima, um ponto reto que se espalharia para os lados quando atingisse a pedra de cristal. Só não imaginava que a bola ia ser coberta de ouro, porque doação é sempre barata, mas não para bola sagrada. A bola foi sendo coberta de ouro, com grandes pratos voltados pro ar, para captar os sinais dos planetas e dos satélites, e outras coisas que não se sabe mas estão lá, enviando mensagens.

Mas o sonho era maior que a vida, e a vida se desmilinguía de tantos anos e tantos afazeres. Sri se foi primeiro, Mother entristeceu mas manteve forte a feitura da bola. E quando a bola estava quase pronta, ela própria morreu.

Mother construiu uma cidade e um templo sagrado, até agora sem religião, só pra pura meditação, e as pessoas do mundo continuam atravessando o mundo, para estar na bola sagrada. Sri e Mother enterrados no Ashran recebem fieis até hoje, que vão beijar seus caixões. Enterrados no mesmo saguão, perto um do outro, distribuindo bençãos. Talvez nunca tenha havido sexo, ou declarações de amor na cama, o que não impede de terem vivido uma das mais belas histórias de amor e uma vida plena em experimentação.

1Isso é um ensaio poético ficcional sobre a vida de Sri Aurobindo (1872-1950 – Índia), líder espiritual do Ashram Sri Aurobindo em Pondicherry no Sul da India, e Madame Mirra Alfassa – The Mother (1878-1973 – França), sua colaboradora espiritual que foi morar em Pondicherry em 1920. Com ajuda dele, ela construiu a comunidade Auroville onde fica o templo em formato de esfera banhada a ouro Matrimandir, que recebe peregrinos do mundo inteiro em Pondicherry até hoje. Mais informações aqui: http://www.sriaurobindoashram.org/ e http://www.auroville.org

Leia Também:

Um comentario para "Fêmea: Mirra, Sri e o templo sem religião"

  1. marcio ramos disse:

    … a India é um pais mistico por excelencia – como diz Eliade, “como diz” é para mostrar uma cultura que não tenho – e a herança dos gurus é isso ai…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *