Etiópia: celeiro de culturas, latrina do mundo branco

Uma brasileira visita país africano onde religiões e mitos ocidentais se encontram, marcados pela negritude e sob crescente influência chinesa…

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Dois brasileiros visitam país africano onde religiões e mitos ocidentais se encontram, marcados pela negritude e sob crescente influência chinesa…  

Por Fabiane Borges e Hilan Bensusan | Fotos: Fabiane Borges

[Veja aqui mais fotos feitas pela autora]

Salomão e a rainha de Sabá que história bonita. A rainha preta, atrevida, de gestos exuberantes. Ele profético, galinha, exotérico, prenhe de duas ou três civilizações epidêmicas. A promessa na cama: honra esse acasalamento Salomão, ou essa foda será em vão? Esse não foi o princípio, mas a rainha voltou grávida de Jerusalém, e isso sim foi um escândalo inaugural, que desviou o fluxo do que hoje chamamos Etiópia para lados não previstos. Ou teria coincidido a fertilidade da rainha com um plano bem armado? Seja como for Etiópia fundou nessa gravidez o pilar da sua história. Nao é assim que começam as histórias bastardas?

A Etiópia é a latrina da história branca. O resto da África é outra historia: pagã, primitiva, venenosa – o lugar de onde as bruxas nunca deveriam ter saido. A da Etiópia é a historia monoteísta, cristã, devota, vestida, cheia de igrejas, santos, anjos, altares, reis, conquistas, cruzadas, luta contra os mouros, orgulho étnico, obediência e apego as tábuas da lei, montanhas sagradas, peregrinações à terra santa, páscoas, natais, epifanias. Mas é história negra. E no escuro, todas as datas são pardas – não da pra ver mais do que lendas, versões, boatos. Salomão negro? Davi mulato? Abraão retinto? A Etiópia pega a Bíblia, que parecia santa, branquíssima, e a cobre com as imagens da virgem negra, do cristo de lábios grossos, da crucificação em uma paisagem africana. Rezam missas em igrejas, mas ao lado da mirra e do incenso queimam a erva de Salomão, um punhado de canabis que deixa todos mais próximos do céu. Para a história branca, um céu inventado, inmoderno, incivilizado, longe dos fatos, perto das brumas.

Era pra jogar estas brumas todas privada abaixo e puxar a descarga. (O que é a descarga? Os batalhões de turistas que chegam lá todos os dias para tornar o país em terra exótica, e depois em curiosidade e depois os etíopes em garcons, hoteleiros, guias turísticos e nativos exibicionistas que passam a ser contrapartida do preço da excursão.) Mas a descarga vaza – na África as tecnologias emperram, as instituições desandam, as certezas murcham – e vaza por todos os lados. Aparecem na Jamaica uns devotos do último rei da Etiópia, um homem que se chamava Ras Tafari. Eles espalham a erva de Salomão, os dreadlocks no cabelo negro, os livros sagrados dos etíopes escuros e temperam isso com reggae. E negro, é lenda – mas as lendas resistem aos regimes da história oficial.

Maria e Cristo negros, na coluna de uma igreja

Quando o jovem Menelik foi visitar o pai Salomão, este pediu para que ficasse em Jerusalém, mas ele já sabia que não abriria mão do seu reinado, assim como sua mãe sempre fincou o pé na África. Com o altar, carregou consigo as tábuas da Lei de Moisés, a arca sagrada, que até hoje é motivo de orgulho e culto da igreja, e um dos segredos da aura sagrada de todo o país. Junto com a arca vieram mais 1000 pessoas, que instauraram seus princípios judaicos por onde chegavam. Essa pode ter sido a principal ligação da Etiópia com o monoteísmo. Mas não só isso. Não se sabe ao certo o que aconteceu com todos os templos pagãos. Alguns sobreviveram, com seus locais de sacrifício, deuses e o sol e a lua desenhados por toda parte. Sendo filho de Salomão não se esperaria que tolhesse qualquer misticismo. Gostava das brumas. Ele viu em Jerusalém como se fabrica sagrados.

Sacrogênese salomônica. Começou a fazer de Axum sua Jerusalém: obeliscos, arca sagrada, um caminho de pedras pela montanha até o palácio da matriarca. Menelik fez da Etiópia um celeiro de religiões – trouxe isso com o pó de Jerusalém. Seus herdeiros foram peregrinos, teocratas, guardiões das tribos de Israel. De onde mais vieram esstas tribos? Dos filhos de Jacó que foram para a África. Ou então como? Do rio Nilo, alguns do Cairo, outros de Gize, alguns do Sudão, outros de Gondar, da beira do lago Tana onde nasce o Nilo azul. Quando as versões heterodoxas levantam o peito e não aceitam serem corrigidas, a história fica caudalosa – cheia de lendas verdadeiras demais para não serem ficção. Canaã era um posto avançado dos povos de Israel no Nilo. Foi ali que eles encontraram o babilônico Abraão inconformado com os deuses serem inanimados. Foi ali que eles o acolheram monoteus, pastores, devotos da palavra escrita. E quiseram fazer uma Jerusalém por lá – como Axum, como Lalibela, como Shashamane, a terra sagrada siônica dos rastafáris, concedida pelo rei messias dos etíopes, o Ras Tafari ele mesmo, que adotou o nome de Haile Selassie.

Igreja de São Jorge: altíssima, e toda esculpida na rocha

É que os etíopes compartilham o segredo da sacrogênese. Como Haile Selassie se tornou Jesus Cristo é difícil de dizer exatamente. Mas o negro baixinho e galante tinha idéias brihantes e se comportava como um verdadeiro Messias, fazendo coisas que pareciam milagres, como abolir a escravidão (oficial), reconhecer a nacionalidade dos descendentes de escravos etíopes mandados para o Caribe ou, ainda, fazer sucesso nos EUA. Heile Selassie era o Leão da tribo de Judá, a reencarnação de Jesus, e Shashamane entre uma baforada e outra de canabis sativa, cultua sua imagem de filho do Divino.

Nas épocas de Timkat (epifania) toda esses reis, monges, rainhas e profanos, Do norte ao sul do país fazem procissão com a Arca Sagrada (uma cópia), entre batidas de tambores e toque de trombetas comemoram o batismo de Jesus, batizando os novos fiéis e fazendo vigílias de uma semana, onde a comunidade local muda seu cotidiano e vai fazer orações cerca dos tanques de batismo, nos espaços públicos das cidades. As ruas viram rios de gente, nas cidades secas, como Lalibela durante as epifanias de janeiro, não há outro rio. Ninguém reza em uníssono, ninguém canta em monocórdio, o espírito carnavalesco entra na procissão, mesmo que dissimulado, esta maneira africana de tornar quem passa, parte. Cada um traz sua melhor roupa, seu melhor penteado, suas melhores tranças, suas melhores amarras, suas melhores mandingas, suas melhores antenas.

Os etíopes são fios soltos na conexão com os aléns – e com os outroras. O deserto dá sede, mas tambem dá frio e uma certa obcessão. Com panos brancos feitos de algodão e poeira eles atravessam montanhas, estradas, rios, carregando nas costas, nas mulas, nos camelos suas necessidades. Como no tempo da rainha de Sabá. Tal qual. Nas ocas de barro e bambu comem suas injeras, esvaziam os úberes das cabras e depois tomam a estrada carregando milho seco, tef, barris de água, algodão. Estão sempre carregados. Nasceram para carregar. Isso dá um ar cansado, mas também forte e alongado. Transmitem carga.

Feira num rio seco, perto de Omo Sul

As mulheres vão ao chão para colher ervas daninhas do meio da plantação, sem sequer dobrar o joelho, e ainda com o filho pequeno atado às costas. E tomam as estradas, as estradas mesmo pavimentadas são trilhas dos andarilhos, já que os carros pedem licença buzinando e já que a maioria deles está longe de ter um carro, ou computador, só celular quase todo mundo tem, a única revolução industrial óbvia, e radinhos a pilha. Não se vê facilmente os trabalhadores vindo da fábrica, nem muito lixo eletronico. Etiópia vai passar diretamente para o século XXI sem esteira nem uniforme?

A estrada serpenteia montanha abaixo, de um vilarejo até o rio que na seca seca. A cada hora do dia, centenas de pessoas percorrem o asfalto ou atalham pelos desfiladeiros. São umas cenas tão modernas quanto as dos homens de terno circulando pelas bolsas de valores mas parecem bíblicas, arcaicas, pre-evangélicas. Antes de Menelik, depois de Menelik, as pontas se amarram, afinal os fios estão soltos. Os etíopes, ao contrário de tantos brancos, não consideram que eles sejam mais modernos. Percorrem suas estradas, correm para cima e para baixo. São maratonistas. Ou então não é no terreno que eles aprenderam a correr, é no sangue bastardo, eclético, devoto e desviado: não são os Jamaicanos os que correm melhor as pequenas distâncias?

Os Jamaicanos descendentes dos escravos, olham para a Etiópia como quem olha para sua história. Eles vieram de lá. História saqueada, história escravizada. Qual é a história dos escravos no Brasil? São as brumas, as correntes caudalosas de versões entrelaçadas, sem pé nem cabeça, já que o pé e a cabeça são brancos e modernos. Não são como os imigrantes europeus, cheios de genealogias, de paisagens, de expressões – pensem nos imigrantes europeus que nem soubessem a diferença entre as tribos holandesas e as tribos polonesas, nem soubessem que língua falam, nem soubessem que ares trazem nas entranhas, que miasmas habitam suas juntas, que gosto ardia na boca de suas mães quando elas os pariram.

Arrancados os miasmas dos africanos, escravizados seus músculos, eles deveriam ficar apenas pretos, sem cor – mas não ficam, ficam lenda. Há mais verdades de carne e osso do que pensa o vão ordenamento genealógico. Eles dançam, eles cultivam lendas com baobás, com flamboiants, com savanas e longas estepes. Desistórias, breves, abruptas, repetidas. Não desistem. Contam as favas a contrapelo. Brumas, névoas, uma falha geologica. E, no mesmo continente destas alucinações, a Etiópia.

As estradas que levam ao sul vão ao encontro dos povos tradicionais. Com suas Kalashnikovs, seus ares tribais, suas ocas de barro e bambu. Assim que vivem. Pintam rosto e corpo para os turistas pagarem para as fotos. Não pagam impostos e não sabem do que se trata quando lhes perguntam sobre a Etiópia. Não se sentem etíopes, sentem-se outra coisa, fronteira não foi ideia deles, apesar de saberem que atravessar a fronteira pode lhes causar danos. Suportam a quantidade de turistas que lhes vão ver todos os dias, mas não por muito tempo. Logo fecham a cara e produzem alguma cena agressiva, que afasta as visitas.

Mulheres operárias na construção de estrada, próximo a Adis Abbeba

Preveem que o barulho dos motores não representa somente uma fase, mas uma permanência e que o barulho veio para ficar. Se ouriçam. Como concatenar uma forma de vida gregária na savana quando sabes que és tu o objeto visado? Tu a girafa, o elefante, a fera? Tu, o sobrevivente que por tanto tempo conseguiu fugir das armadilhas brancas, do tráfico de escravos, das durezas da seca, das ameaças da floresta, das enchentes do rio, das tribos inimigas, das seduções da cidade, de repente tornado fera enjaulada? Tua aldeia cercada, tua casa entretenimento? Que vingança se perpetraria ai? Qual reação possível quando o objeto da tua hostilidade já se tornou teu vício, tua sobrevivência e teu cotidiano? Cobrar pelas fotos? Ser hostil? Acatar a transformação impassivelmente?

Não há nada de passível naquelas tribos. Apesar da simpatia e da espontaneidade, vê-se também homens e mulheres acuados, que sabem mais que todos aventureiros, que chegaram num limite. Escuta, puxaram a descarga – para onde vazar? Como resistir à fúria branca que transforma tribos com céu, terra e tudo em museu, em parque temático, em jardim de curiosidades? Os hamers pulam em cima dos touros para transitarem através de seu ritual de maturidade: seguem pulando do mesmo jeito há algumas gerações talvez, mas agora convocam menos espíritos animais, convocam turistas. Já não serve mais mover as montanhas, os turistas atravessam todas elas para tirar uma fotografia, para seguir uma recomendação do seu Lonely Planet.

A terra empoeirada de brumas é destino turístico. O mundo por fim descobre a história da Etiópia. Esse reconhecimento é muito importante, é o desbloqueio de um conhecimento humano há séculos ignorado pelos historiadores, pelos brancos, pelos oficiais. Mas esse reconhecimento tem um alto preco. O que sobra pra Etiópia?

Imagem na igreja, com reis magos e rastafaris

Sobram os chineses. Projetaram, financiaram e puseram tijolo sobre tijolo de um colosso arquitetônico no centro de Addis Abeba dedicado à União Africana. Depois de tantos anos de negociação de Heile Selassie com o império americano, são os chineses que vão reconhecer e apostar na capital da Etiópia como capital diplomática da África. Há controvérsias, mas o investimento foi feito, grandiosamente. Também o novo parceiro se encarregou das estradas e de outras construções, trazendo para os limites territoriais da antiga Abissínia milhares de trabalhadores amarelos, já bem acostumados com os resultados da revolução industrial. São os novos colonos. Ao contrário dos colonos brancos, que gostavam de tracar mapas na África e dividi-las entre si, os amarelos promovem a União Africana. Mesmo na África sem Khadafi. Pretos e amarelos – eles sabem que os brancos ainda pegam, matam e comem. Tiraram Khadafi da cena quando ele começou a incomodar demais a Europa em desfiladeiro com sua megalomania. A África tem recursos: água, petróleo, urânio, diamante, ouro. Só não cabe direito na história oficial. Seus recursos naturais são alvo de disputas dos velhos e dos novos impérios. Poderia a União Africana se fortalecer por si mesma, ou só vai ficar ensaiando?

Uma história bastarda, de latrina e de descarga da humanidade branca sobrevive, fermenta, se fortalece; atentemos nos seus próximos passos, no seu projeto de desenvolvimento industrial tardio. Vejamos se repete as mesmas idiossincrasias dos referentes brancos e amarelos ou se toma outro rumo devido sua inabilidade para cumprir com as normas de segurança dos corpos Ford. Tem dias que o refrigerador não funciona, a luz acaba, o telefone emudece e a descarga vaza. A África é bumerang lançado. A Etiópia lançou os primeiros exemplares da espécie, quem é o bastardo?

Fabiane Borges pesquisadora de arte, comunicação e tecnologia, faz doutorado em psicologia clinica no núcleo de subjetividade na Puc-SP. Ensaísta, lancou três livros em 2010 sobre arte, coletivos, redes sociais, movimento queer e midia ativismo. Faz parte do conselho deliberativo do Descentro – No emergente de acoes colaborativas, organiza festivais de arte e midia desde 2000. Edita o blog Catahistórias

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Um comentario para "Etiópia: celeiro de culturas, latrina do mundo branco"

  1. Fabiane, não conheço seu trabalho, sua área de pesquisa ou roteiros de viagem
    Desconheço a intervenção que busca fazer, nem quais são os incejos que movem seu trabalho e suas publicações.
    Em suma, análises como esta.
    Inclusive, procurarei saber assim que me desfazer desse pequeno comentário.
    Sua abordagem sobre o contexto Etíope, de início me soou como uma espécie de criticismo. Algo de origem materialista. Talvez até um pouco militantes quando transforma símbolos religiosos em categorias ou adjetivos, como o fez em “salomônica” ou “siônica”.
    Notei estar errado, pois adiante você elucida sobre o fato de que os Etíopes “Estão sempre carregados. Nasceram para carregar. Isso dá um ar cansado, mas também forte e alongado. Transmitem carga.” Talvez eu tenha me enganado, pois aqui me deparei com o olhar do ocidental “contemporâneo” diante do encantamento / estranhamento com a alteridade. Ainda mais sendo uma alteridade que realiza serviços com a força física e não com a ponta dos dedos e a ganância, como nós aqui fazemos.
    Pois bem, adiante me deparei com um sarcasmo (na melhor das hipóteses): “Não se vê facilmente os trabalhadores vindo da fábrica, nem muito lixo eletrônico.” Sim, isso seria um elogio, não. Uma exaltação.
    Creio que, se positivo, a questão textual exagerou nas alegorias.
    E tanto, que atingiu cúmulos racistas. Aqueles já tradicionais, no advento da ciência e do modo de pensar europeu, do século das Luzes. “Não são como os imigrantes europeus, cheios de genealogias, de paisagens, de expressões”
    A argumentação / exposição me deu esperanças de um desfecho que virasse o jogo. Que me fizessem crer que os exemplos usados eram meras ilustrações de uma proposta de “cutucar” a modo de ser desenvolvimentista e associação do controle social ao fato religioso. Sim, isso ocorre, mercendo inúmeras ressalvas.
    Um exemplo, você coloca na “negociação de Heile Selassie”, estabelecendo padrões capitalistas entre
    “Pretos e amarelos – eles sabem que os brancos ainda pegam, matam e comem. “
    “Uma história bastarda, de latrina e de descarga da humanidade branca sobrevive”
    FABIANE você poderia ter sido mais clara ao mencionar o potencial de geração de imundices proveniente da humanidade branca.
    Talvez, com isso, pudesse ser mais receptiva à estudos e modos de interpretação onde fenômenos culturais não são apontados como reflexos, apenas, da linearidade e dos imperativos sócio-econômicos.
    Os símbolos que levaram à tal emergência de uma religião ortodoxa fornecem, em seu bojo, uma riquíssima produção cultural, profundamente peculiar, inclusive.
    Talvez vocês pudessem ser melhor apresentados.
    A música, por exemplo. A linguagem de tambores, os vocais intensos. A mistura com tendências de jazz, blues e ritmos de raízes jamaicanas.
    A doutrina, que nem sempre se traduz nas práticas ortodoxas etíopes, que possuem interpretações e intervenções de PAZ, respeito às tradições e sabedoria.
    O que mais lhe faltou foi a subjetividade que assina esse texto.

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