Epitáfio para outro 11 de setembro

Ariel Dorfman relembra data que marcou EUA, Chile e Índia. E reflete sobre importância crescente da cultura de paz

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Por Ariel Dorfman, The Nation | Tradução Vila Vudu

Naquele 11 de setembro, daquela manhã letal de 3ª-feira, acordei apavorado, ao som de aviões que sobrevoavam minha casa. Quando, uma hora depois, vi fumaça subindo do centro da cidade, soube que a vida havia mudado para mim, para meu país, para sempre.

Era 11 de setembro de 1973, o país era o Chile, e as forças armadas haviam bombardeado o palácio presidencial em Santiago, no primeiro estágio de um golpe contra o governo democraticamente eleito de Salvador Allende. No fim do dia, Allende estava morto, e a terra na qual havíamos tentado uma revolução pacífica fora transformada em matadouro. Passar-se-iam duas décadas, a maior parte das quais vivi no exílio, antes de derrotarmos a ditadura e recuperar nossa liberdade.

Noutro 11 de setembro, também uma manhã de 3ª-feira, foi a vez de outra cidade também minha cidade ser atacada do alto, e choveu outro tipo de terror, mas, outra vez, o coração cheio de medo, confirmei que nada nunca mais seria como antes, nem para mim, nem para o mundo. Já não se tratava de uma pátria afetada, nem de um povo que sofreria as consequências da fúria e do ódio, mas o planeta inteiro.

Nos últimos dez anos, várias vezes me vi pensando, intrigado, sobre essa justaposição de datas; não consigo tirar da cabeça a ideia de que há alguma espécie de significado oculto por trás ou dentro da coincidência. É possível que minha obsessão seja resultado de viver nos dois países no exato instante dos dois massacres, de tal modo que essas duas cidades assaltadas constituem as pedras angulares da minha identidade híbrida. Porque cresci criança que aprendia inglês em New York e passei minha adolescência e o começo da idade adulta apaixonando-me em espanhol em Santiago, e porque sou tão norte quanto sul-americano, não posso deixar de tomar pessoalmente a destruição paralela de vidas de compatriotas inocentes, esperando que se aprenda o que haja para aprender da dor e da assustadora confusão.

Chile e EUA mostram, com efeito, modelos contrastantes de como reagir a um trauma coletivo.

Qualquer nação que tenha padecido sofrimento tão grande enfrenta séries fundamentais de perguntas que testam seus valores mais profundos. Como buscar justiça para os mortos e reparação para os vivos? Pode-se restaurar o equilíbrio de um mundo partido, cedendo à compreensível sede de vingança contra nossos inimigos? Não nos expomos ao risco de nos transformarmos neles, sob o perigo de nos convertermos em sombra perversa deles – não estamos ameaçados de ser governados pela nossa ira?

Se 9 de setembro puder ser visto como teste, parece-me, infelizmente, que os EUA fracassaram. O medo gerado por uma pequena gangue de terroristas levou a uma sequência tão devastadora de ações que excederam em muito o sofrimento pelo qual passamos no suplício original. Duas guerras desnecessárias que ainda prosseguem, um colossal desperdício de recursos que poderiam ter sido aplicados para salvar nosso meio ambiente e educar nossas crianças, centenas de milhares de mortos e mutilados, milhões de expatriados e deslocados, uma desgraçada erosão dos direitos civis nos EUA e o uso da tortura e da entrega de prisioneiros a torturadores estrangeiros, que acabaram por servir como carta branca para que outros regimes atacassem os direitos humanos. E por último, mas não menos importante, o crescimento de um já excessivo estado de segurança nacional que se alimenta numa uma cultura de mentiras, espionagem, incerteza e insegurança.

O Chile também poderia ter respondido à violência, com mais violência. Se algum dia houve justificativa para pegar em armas contra poder tirânico, a luta dos chilenos satisfazia todos os critérios. Mas o povo chileno e os líderes da resistência – com poucas tristes exceções – decidiram derrotar o general Pinochet pela não violência ativa, tomando de volta para nós o país que nos fora roubado, palmo a palmo, organização por organização, até derrotá-lo num plebiscito que ele poderia ter vencido, mas não venceu. O resultado não foi perfeito. A ditadura ainda contamina a sociedade chilena, mesmo muitas décadas depois de perder o poder. Mas, feitas todas as contas, como exemplo de como criar paz duradoura a partir de perdas e sofrimentos inenarráveis, o Chile comprovou-se decidido a não permitir que jamais voltasse a acontecer outro 11 de setembro de morte e destruição.

O que há de mágico nessa decisão de combater o mal por meios pacíficos é que os chilenos ecoaram, sem saber, mais um 11 de setembro, de 1906, em Johannesburg, quando Mohandas Gandhi persuadiu vários milhares de indianos como ele, num Teatro Império, a aprovar a resistência não violenta contra o governo daquele apartheid injusto e discriminatório. Aquela estratégia da Satyagraha, com o tempo, levaria à independência da Índia e a muitos outros momentos em que se conquistou paz e justiça pelo mundo; levou inclusive ao surgimento do movimento pelos direitos civis nos EUA.

105 anos depois do memorável convite de Mahatma, para que se imaginasse um meio para escapar da armadilha da ira, 38 anos depois daqueles aviões que me acordaram pela manhã, para ensinar-se que eu nunca mais conseguiria escapar do terror, dez anos depois de a New York dos meus sonhos de infância ser destruída pelo fogo, espero que o epitáfio perfeito para todos esses 11 de setembro sejam as palavras imortais de Gandhi: “A violência só derrotará a violência, quando alguém me demonstrar que alguma escuridão possa ser iluminada por mais escuridão.”

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2 comentários para "Epitáfio para outro 11 de setembro"

  1. Réquiem para todas as vítimas!
    Converso neste momento com os amparadores do mundo. Amanhã haverá réquiem para cerca de 3.000 vitimas do Centro de Negócios do Mundo. Inocentes que morreram sem nem mesmo saber o por quê! Nós sabemos! Foi a criatura voltando-se contra o criador ao não ter mais seu apoio!
    No desenrolar dos acontecimentos, duas guerras foram travadas: Afeganistão e Iraque. Resultado? Quase um milhão de mortos segundo uns e cento e poucos mil civis segundo outros. Uma Lei de Talião meio as avessas e já usadas pelo Nazismo: para cada soldado alemão morto, quatro civis executados. A matemática não é igual, a vingança é a mesma!
    Quem fará o réquiem para as outras vítimas?
    Peço que as ajudas que sempre os amparadores proporcionam aos dessomados, sejam mais abrangentes para todos os que são vitimados por essas guerrilhas oficiais ou não.
    Por que peço isso? Pelo simples fato da Reencarnação explicado pelo Espiritismo e a Ressoma explicado pela Conscienciologia, que pode em futuro breve colocar desencarnados/dessomados novamente frente a frente em novas ressomas/reencarnação.
    A interligação cármica está feita. Se não houver um trabalho hercúleo da rede assistencial extra-física esses novos conflitos continuarão por séculos e séculos indefinidamente. Vide o que acontece agora com israelitas, não estão fazendo a mesma coisa que os alemães fizeram com eles? Dirão não estamos matando no atacado como eles fizeram. Será que não? Cortando ajuda humanitária e bombardeando-os dia sim e outro também? Matar aos poucos constantemente atingirá o mesmo objetivo!
    Por que escrevo isso?
    Houve uma vez um escrito que faz parte de uma biblioteca de livro único que se convencionou chamar de Bíblia(biblioteca) que entre as leis maiores propunha:
    NÃO MATARÁS!
    Assim enxuto sem condicionamentos e nem parágrafos! Além de ser bíblico, é uma lei natural!
    Ao pedir por todos aos amparadores(= anjos, santos, espíritos superiores), humildemente movimento as forças do universo no sentido de uma futura promessa de paz. Essa certamente terá que vir do extra-físico pois que daqui (intra-físico) há pouca chance de sair alguma coisa!

  2. Francisco disse:

    Poderíamos também fazer algumas comparações, a guerra contra o Vietnam durou de 1961 a 1974, foram portanto 13 anos despejando bombas, napalm e o agente laranja que ao desfolhar florestas inteiras facilitava as ações militares das tropas norte-americanas, se dividirmos estes 13 anos pelo número de mortos que oscilam de 1 milhão a 2 milhões de pessoas teremos 76.923 mortas pelos EUA a cada ano que durou a invasão. No atentado de 11/09 morreram pouco mais de 3000 pessoas, merecidamente merecem que lhes respeitemos a memória mas como ficam os 76.923 mortos a cada ano da Guerra do Vietam?

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