Em Paris, a “intelligentsia” do silêncio

Obnubilados pelo islamismo, incapazes de pensar uma democracia árabe, ou apenas ignorantes, os intelectuais fazem-se discretos sobre as revoltas em curso

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Por Thomas Wieder, Le Monde | Tradução Coletivo Vila Vudu*

Aplaudir, até aplaudem. Júbilo, até que há. Mas ninguém se mostra empolgado. A palavra de ordem é prudência. Face à contestação que agita o mundo árabe-muçulmano, os intelectuais franceses parecem dilacerados entre duas injunções contraditórias. Em geral lépidos para inflamarem-se quando um povo ergue-se contra a tirania, eis agora os intelectuais franceses, surpreendentemente discretos. “Esse silêncio ensurdecedor não é habitual”, reconhece o sociólogo Rémy Rieffel, autor de Intellectuels sous la Ve République [Os intelectuais na 5ª República] (Hachette, 1995). Mas explica-se, porque muitos de nossos intelectuais estão um pouco sem jeito.”

“Sem jeito”, que seja. Eis, de fato, o que estaria perturbando os intelectuais franceses da hora. Para o filósofo Régis Debray, a explicação é clara: “E o que queriam ouvir desse pessoal que passa as férias em Marrakech ou em palácios na Tunísia ou no Egito?” A esse argumento, o autor de Pouvoir intellectuel en France [Poder intelectual na França] (Ramsay, 1979) acrescenta um segundo: “Estão mentalmente catatônicos, porque padecem de medo pânico do islamismo e não sabem o que pensar de movimentos populares que, mais cedo ou mais tarde, podem virar-se contra Israel”.

Quase sempre em desacordo com Régis Debray, sobretudo na questão israelenses-palestinos, Alain Finkielkraut aproxima-se dele nesse ponto: “Digo ‘admiração’, mas digo também ‘vigilância’, porque o que se sabe hoje, especialmente, é que ninguém sabe o que surgirá disso tudo”. O filósofo, além do mais, distingue cuidadosamente os casos tunisiano e egípcio: “Na Tunísia, considerado o papel das mulheres e a compostura dos manifestantes, tudo faz crer que se trate de verdadeiro movimento democrático, que tirou Ben Ali do poder. No Egito é mais complicado: se se veem os ataques contra os coptas, se se sabe que o país vive há anos sob campanha anti-Israel e antissemita, se se lêem cartazes do tipo “Moubarak sionista” e se se sabe que o Irã se beneficia do que está acontecendo, não digo que se deva esperar o pior, mas que há motivo para estarmos preocupados, e que é preciso evitar avaliações definitivas.”

Banir todos os “slogans simples”, eis a tarefa à qual se dedica Bernard-Henri Lévy. Mas para o filósofo (membro do conselho de supervisão do Monde), essa “indispensável consideração à complexidade da situação” não deve impedir o engajamento. Ao contrário. “Temos dois deveres”, explica o diretor da revista La Règle du Jeu. O primeiro é ajudar os democratas a levar avante sua aposta política e, isso, encorajando-os para que se engajem com clareza: a favor da liberdade de expressão, por exemplo; a favor do respeito ao pluralismo; e também, porque isso também é democracia, a favor do respeito ao Tratado de Paz Israel-Egito de 1979. O segundo dever é desejar que os movimentos democráticos estendam-se ao conjunto do mundo árabe-muçulmano.”

Uma “timidez” legítima ligada, como resume o historiador Jean Lacouture, a uma modalidade de “incerteza quanto ao rumo dos acontecimentos” e ao “medo de ver triunfar os fundamentalismos”. É uma explicação positiva, a qual, pelo menos, honra, adornando-os com os trunfos da prudência, os intelectuais franceses contemporâneos. Mas há explicações menos honrosas, que também devem ser expostas.

Umas, consideram uma “cegueira” que acometeria alguns que se sentem culpados face aos regimes hoje contestados. É a tese de Olivier Mongin. Repetindo que “melhor Ben Ali que Ben Laden”, e “melhor Mubarak que a Fraternidade Muçulmana”, muitos deixaram-se prender numa contradição: os mesmos que defendiam o respeito aos direitos humanos na Europa do Leste, estariam apoiando ditadores do mundo árabe sob o pretexto de que seriam escudos contra o islamismo. “A dificuldade, para os intelectuais é conceber os valores democráticos em culturas diferentes da sua”, explica o diretor da revista Esprit.

Na base desse moralismo de geometria tão mutável, Daniel Lindenberg identifica o que não hesita em chamar de “preconceito racista”. Autor de ensaio consagrado à deriva “neoconservadora” de parte da intelligentsia (Le Rappel à l’ordre [Chamado à ordem], Seuil, 2002), esse especialista em história das ideias vai direto ao ponto. “É preciso, infelizmente, dizer o que é: muitos intelectuais creem, no fundo deles mesmos, sinceramente, que os povos árabes são geneticamente atrasados e que só respondem à política do chicote.”

Herdado do período colonial, esse preconceito foi reforçado depois do 11 de setembro. “Para muitos, é muito difícil sair da sequência iniciada em 2001 e marcada pelo credo neoconservador, para o qual o Islã seria sinônimo de terrorismo”, explica Daniel Lindenberg. Obcecados pelo medo da Xaria, foram apanhados ‘de calças curtas’, como se não tivessem sido programados para compreender que o que se passa, especialmente na Tunísia, é simplesmente uma “primavera dos povos”.

Esse estado de “confusão mental” é percebido também por André Glucksmann. Para o filósofo, “a surpresa pela qual passam, como ele, muitos intelectuais, não é consequência apenas do fato de que todas as revoluções, por sua natureza, sempre surpreendem”. Aquela surpresa explica-se, mais fundamentalmente, pela “ideia de que tal sopro de liberdade parecia impossível no que se convenciona chamar de ‘mundo árabe’”.

Para André Glucksmann, contudo, os eventos em curso devem conduzir-nos sobretudo a “separarmo-nos definitivamente de duas grandes teorias em voga logo depois da queda do muro de Berlim”. A primeira, chamada “do fim da história”, e divulgada em 1989 pelo politólogo norte-americano Francis Fukuyama, pretendia que “a modernização econômica implica a democratização”. A segunda, chamada “do choque das civilizações” e defendida em 1996 pelo politólogo norte-americano Samuel Huntington, tende a fazer do mundo islâmico um bloco monolítico hostil por natureza aos valores ocidentais. “O que hoje acontece no Egito lembra, por um lado, que um regime que se desenvolve economicamente (sic) não se democratiza necessariamente; e, por outro lado, que os árabes não são condenados pelo nascimento nem pela cultura ao despotismo”, explica André Glucksmann.

Intelectuais prisioneiros de esquemas de pensamento que os tornam pouco aptos a refletir sobre o novo? Para Henry Laurens, titular da cadeira de História Contemporânea do Mundo Árabe no Collège de France, o problema começa antes da queda do muro de Berlim. “Se os intelectuais midiáticos não têm grande coisa a dizer, é porque a maioria deles continua a raciocinar com categorias brotadas da Guerra Fria: analisam o totalitarismo islâmico como analisaram o totalitarismo soviético”.

Destacando que “muitos, como Raymond Aron, souberam pensar a democracia liberal mas foram incapazes de pensar o terceiro mundo”, o historiador observa que “a discrição dos intelectuais ditos generalistas” não nos deve fazer esquecer “a força que ganham os especialistas”, também chamados pesquisadores especializados. “O mundo árabe”, explica ele, “é setor muito bem investigado pelos pesquisadores franceses. Mas é verdade que os ‘academicos’, mesmo quando ultracompetentes em seus campos, tendem a ser reticentes quando se trata de tomar posição sobre áreas geográficas que não conhecem como a palma da mão. São os que se manifestam de modo quase sempre muito nuançado, e cujas vozes ouvem-se menos que as dos “grandes” intelectuais sempre prontos a deitar lições a torto e a direito.”  É um modo de dizer que as próprias mutações da própria cena intelectual, elas também, e não só alguma louvável circunspecção ou eventuais culpas ligadas a circunstâncias de momento, estariam levando os maîtres à penser franceses a se mostrarem tão discretos, dessa vez.

* Entreouvido, aqui na Vila Vudu: “Por aqui, artigo semelhante teria de levar o título de: “No Brasil, a burrítsia da falação da UDN-tucano-uspeana-sionista no Estadão, na Folha de S.Paulo, na Globo…[pano rápido].

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