Dois Irmãos, novo passo da HQ brasileira

Ao adaptar obra de Milton Hatoum, Fábio Moon e Gabriel Bá mostram-se à altura da importância do romance — mas também capazes de ousadias formais não desprezíveis

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Ao adaptarem obra de Milton Hatoum, Fábio Moon e Gabriel Bá mostram-se à altura da importância do romance — mas também capazes de ousadias formais não desprezíveis 

Por Vera Ceccarello

Pelo selo Quadrinhos na Cia, a editora Companhia das Letras publicou recentemente a adaptação do livro Dois irmãos. Baseado no homônimo romance de Milton Hatoum, a HQ teve a assinatura dos quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Bá. Com lançamento nacional amplo no Brasil e na França, a graphic novel sairá, segundo se prevê, também nos Estados Unidos, em outubro.

Afora as coincidências evidentes – algo como os gêmeos pelos gêmeos, a HQ foi lançada com grandes chances de já ser um sucesso, pois conta com o nome de peso de Milton Hatoum, um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, bem como de Fábio Moon e Gabriel Bá, considerados nomes de grande expressão dos quadrinhos brasileiros aqui e no exterior.

É fato que a cena de HQs no Brasil tem ganhado cada vez mais espaço, atenção das editoras, aceitação do público e até incentivos governamentais. Diversas são as linhas adotadas, tanto com relação à escolha do roteiro quanto ao traço ou à escolha das obras e autores. No caso das adaptações de literatura para quadrinhos, o principal problema parece ser o de encarar o projeto como uma maneira de facilitar a leitura, enaltecendo o aspecto conteudístico das obras e relegando a segundo plano a forma trabalhada e como se opera a relação entre elas. Não parece ser o caso aqui, já que a adaptação é bastante fiel ao romance de Hatoum, mantendo aspectos essenciais e trechos marcantes de um escritor afinado ao lírico e ao espírito crítico.

Dois irmãos narra a turbulenta trajetória dos gêmeos Yakub e Omar, nascidos em Manaus. Descendentes de uma família libanesa, os irmãos sempre tiveram temperamentos contrastantes e suas diferenças só cresceram ao longo dos anos, apesar do esforço dos pais, Halim e Zana, para que os dois se reconciliassem. Em dado momento da narrativa, Yakub muda-se para São Paulo e torna-se um engenheiro em meados dos anos 1950 para, literalmente, construir a ideia de um novo país que se esboçava à época. Omar fica em Manaus convivendo com a vida boêmia e contrabandos em uma cidade absolutamente distante do progresso que ecoava daqueles cantos do país. Além disso, a história apresenta uma peculiaridade que dá contornos relevantes para o enredo: o livro é narrado por Nael, filho de Domingas, empregada da casa, com um dos gêmeos. Não sabendo nada acerca de sua paternidade, ele mergulha em suas memórias para reconstruir a sua própria história, que é também a história daquela família, da casa e de uma cidade decadente no coração da floresta amazônica. Trata-se de uma narrativa intensa, que ganhou outras nuances no traço inovador, dessa vez assinado por Gabriel Bá.

Apesar de algumas relações terem sido atenuadas na HQ, como a relação entre Omar e Nael, Moon e Bá parecem ter captado a essência psicológica de alguns personagens. É o caso da caracterização de Halim, um dos personagens mais cativantes do romance. No quadrinho, ele também é um homem errante perdido na Manaus entrecortada por rios, como se perde também na incessante busca por harmonia ao lado da esposa. Com uma aura adorável e apaixonada, essa é a única ambição de sua vida, diferentemente da dos filhos. Além disso, antes de Nael, Halim é o narrador tradicional, aos moldes benjaminianos. É através de seu avô que Nael conhece detalhes de uma história que é sua, mas que por conjunturas diversas lhe foi relegado. Recordar, para Halim, é como viver um pouco mais, ainda que por vezes, isso signifique mudar a sua estratégia de jogo, como quando se tira maus dados no gamão. Esse aprendizado Nael parece levar para si ao tentar reconstruir a sua própria história.

As primeiras páginas da adaptação de Dois irmãos são de tirar o fôlego. No prólogo, os planos gerais de Manaus vão se delineando aos poucos. O céu, as ruas, a igreja, a casa, o quintal. Essa caracterização dos aspectos externos da cidade são um dos pontos mais altos do quadrinho: a precisão e a qualidade na descrição dos espaços. Com isso, Manaus, essa cidade-personagem do romance, ganha força e expressão merecida.

O traço do quadrinho apresenta uma inovação. Se compararmos com as obras anteriores de Moon e Bá, o desenho está mais solto e, ao que parece, propositalmente com menos precisão. Na adaptação de O Alienista, a sobriedade se dá com um sépia aquarelado ao tratar dos desvarios de Simão Bacamarte e seus desvairados, cuidadosamente delineados num traçado fino. Em Daytripper, o traço detalhado se mantém, só que agora em cores prosaicas. Neste último livro, há uma tentativa de resolver o traço de forma mais despojada, sem tanta atenção às minúcias, ao menos com relação aos personagens. Estabelece-se uma mistura de traço cartoon retrô à la Shane Glines, com toques de Bryan Lee O’Malley e pinceladas estilizadas de Warwick Johnson Cadwell.

O fato é que essa soltura do traço deu ao quadrinho uma leveza, por vezes uma carga humor nas linhas. Isso resolve a questão em alguns pontos. O romance apresenta certo despojamento, seja por parte da figura de Omar ou ainda da sensualidade envolvendo Halim e Zana. Mas a não precisão do traço pode inferir que tais aspectos não bem delineados são assim colocados por se tratar de um texto memorialístico, em que as lembranças podem não ser tão exatas assim. Porém, na essência, trata-se de uma história de decadência familiar, desagregação da casa, mudança radical da cidade, além de vingança, ódio, raiva, estupro, exclusão, luta por pertencimento e por tentar dar voz aos que são alijados de seus direitos mais profundos. A tentativa de inovação do traço é válida e tem pontos altos. Mas o livro, em linhas gerais, é sóbrio, muito mais do que garante o quadrinho. O jogo de luz e sombra nos momentos mais tensos da narrativa acaba por suprir a dramaticidade necessária às cenas. Os balões de diálogos parecem ter encontrado um equilíbrio interessante com a narrativa de Hatoum. Como se trata de um peculiar livro de memórias, em que o narrador é praticamente ausente, já que só sabemos quem ele é no terceiro capítulo e seu nome só é revelado perto do fim da história, os silêncios passam a ocupar um espaço considerável junto à narrativa, misturados às vozes de Halim, Domingas e do próprio Nael.

Algumas cenas da adaptação são memoráveis, como quando Omar destrói o espelho preferido da mãe com raiva por ela ter acabado com seu último romance. No chão, todos os pedaços do espelho partido refletem o rosto de Zana, a única mulher que Omar nunca conseguiu se desvencilhar. Outra cena marcante se dá no final do terceiro capítulo, quando Nael aparece com apenas metade do rosto sombreado. Uma referência direta à capa do livro, em que os gêmeos Yakub e Omar aparecem como sendo esses opostos complementares. Nael, no fundo, é fruto desse processo e os quadrinistas souberam captar esse espírito.

Assim, há três méritos nessa adaptação que merecem ser enfatizados. O primeiro consiste em valorizar um escritor ainda vivo e atuante, cuja literatura produzida é fundamental para compreender esteticamente fatos recentes de desenvolvimento da sociedade brasileira, como a ditadura militar e os processos migratórios, além da própria construção da literatura nacional. O segundo ponto que merece destaque é com relação ao roteiro, absolutamente fiel à estrutura em flashbacks proposta por Hatoum. As idas e vindas da memória de Nael são preservadas com grande êxito e isso ajuda a evidenciar a grandeza narrativa da história. O terceiro ponto alto do quadrinho foi a opção pelo uso estético do branco e preto. Tal escolha foi interessante por duas razões. Em primeiro lugar, devido ao caráter memorialístico da história, que remonta a um passado relativamente distante, mas que dá consistência ao relato. Os personagens são tão marcantes que bem poderiam estar em retratos em branco e preto sob o aparador do sobrado de Zana. Além disso, o preto e branco foi uma opção formalmente acertada porque Dois irmãos é um livro recheado de referências a dualidades, sejam elas bíblicas, com Esaú e Jacó, Caim e Abel; ou machadianas com Pedro e Paulo; ou ainda as dualidades mitológicas de Apolo e Dionísio. O uso das duas cores só veio a colorir ainda mais essa estruturação dos personagens: Yakub, uma espécie de Fausto tupiniquim e Omar, um Macunaíma manauara.

Os contrastes da história desta família, no entanto, podem ser desenrolados em tantos outros dualismos, tão conflituosos como a própria formação nacional do Brasil. Manaus é uma cidade partida, situada na periferia da periferia do capital, alojada no interior da floresta, e que sente os efeitos da modernidade que chegam do sul de forma amornada. Ela abriga em si essas contradições entre brancos e índios, imigrantes e brasileiros, locais e estrangeiros, patrões e empregados, classe trabalhadora e classe dominante, moderno e atrasado – e, principalmente, os direitos de uns alijados em prol do progresso e desenvolvimento de outros. Daí a importância do narrador Nael na história. Seu nome, um anagrama de Anel, reúne em si essas contradições. Ele é o bastardo, o agregado, o mestiço, o que vive na fronteira entre o pertencimento que não se completa. Por ter sido privado dos seus direitos enquanto filho dos gêmeos, a única coisa que sobra a Nael é sua memória. Contar sua própria história é, para ele, uma espécie de libertação. Desta forma, se pensarmos Yakub e Omar em analogia às regiões brasileiras, ditas modernas e atrasadas, Nael pode ser também, de certa forma, uma alegoria do próprio Brasil, em que o dualismo, essa característica da experiência intelectual brasileira, coloca o debate entre as regiões mais como defesas ideológicas do que como uma formação sui generis. Não há antagonismo dual. Há sempre, na história brasileira, uma contradição intrínseca e quase sempre perversa. O saldo geral da adaptação, portanto, é positivo. O quadrinho é fiel ao romance e busca, ao seu estilo, perpassar os descaminhos de uma família em uma cidade perdida às margens de um país em eterna construção.

As HQs estão cada vez mais em evidência no mercado editorial e as adaptações não substituem os originais. Disso, todos nós sabemos. Mas dizer que as adaptações de literatura para quadrinhos são atitudes válidas por ser uma porta de entrada para a leitura do texto original pode parecer óbvio demais e até se configurar como um argumento vago. O interessante a ser observado nesse processo é que os quadrinhos, atrelados à literatura, vêm ganhando um status elevado junto ao público leitor: não são mais vistos como produção marginal e de qualidade inferior. Porém, isso não pode ocorrer mediante o processo inverso de desvalorização da literatura e das suas potencialidades narrativas. As adaptações de literatura para quadrinhos devem ser encaradas como uma nova forma artística com uma linguagem própria e genuína, estabelecendo um novo olhar sobre uma mesma história. São obras distintas e devem ser tratadas como tal.

O grande mérito das adaptações bem feitas é justamente poder explorar novos meandros da linguagem, aproveitar o que de melhor se comunica em termos de desenho e cores para que aquela narrativa possa ser lida e relida como um documento importante de estética e de história. Moon e Bá parecem ter dado um passo importante nesse sentido, realizando um trabalho à altura da obra de Milton Hatoum.

Vera Ceccarello é doutoranda em Sociologia pela Unicamp e atualmente é estudante visitante na Universidade de Columbia, em Nova York.

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