Educar para o trabalho ou para o convívio?

Criada há nove anos, comunidade em Porto Alegre repensa agora formação de suas crianças, para valorizar singularidades e superar concepções produtivistas

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Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Imagem: Cândido Portinari, Cambalhota (1958)

A Comunidade Osho Rachana comemora nove anos de existência este mês. Durante este tempo, experimentamos diferentes formas de conviver. Algumas pessoas que ajudaram a construir o projeto já não estão mais; outras, chegaram. Crianças nasceram. Novos sonhos foram despertados. Um deles vem sendo gestado há alguns anos: a possibilidade de uma outra educação para nossos filhos.

A primeira vez que a bailarina Ana Thomaz esteve conosco foi há três anos. Na época, a semente da ideia da desescolarização foi plantada. No início do mês, ela retornou com suas duas filhas e criou um turbilhão em nossas mentes e corações. Sua simplicidade, autenticidade e paixão nos tocaram profundamente. Foi uma semana de muito debate, descobertas e reavaliações.

Ana vem aplicando a desescolarização com seus filhos, sem a pretensão de criar um movimento ou convencer multidões da sua verdade. Mas ao observar a doçura, inteligência e solidariedade de suas meninas, comprova-se a veracidade da sua prática. Segundo ela, o princípio da desescolarização é a valorização das singularidades. “É na singularidade que aceitamos a diferença e nos unimos verdadeiramente, sem interesses, muletas, especulações. É na diferença que a vida acontece de modo potente”, explica.

Uma das principais críticas que Ana Thomaz faz à escola é a constituição de corpos impotentes. Crianças que vão perdendo a vitalidade e a alegria, sentadas em classes escolares que não despertam sua criatividade. “Um corpo desequilibrado, descoordenado, impotente, cria uma cultura desequilibrada, descoordenada e impotente. Enquanto não reorganizarmos nossa condição biológica, enquanto não colarmos nossa existência à sua força criadora, todas as mudanças em nossa cultura serão só a melhora do que está ruim, e continuaremos a nos destruir, a perder a grande possibilidade da vida plena e potente.”

Inspirada na teoria do biólogo chileno Humberto Maturana, Ana defende que o corpo é a potência. “Não esse corpo que estamos acostumados a pensar, mas um corpo que é o todo, e como sabemos, o todo é mais do que a soma de suas partes. As partes são muitas, pois não temos ideia do que pode um corpo.” Para exemplificar, ela cita: físico, emocional, cognitivo, energético, anímico, espiritual, instinto, intuição, mente, intelecto, consciente, inconsciente, subconsciente, percepção sensorial, percepção cinestésica, e muitas outras “partes” inseparáveis que formam o todo, o corpo.

Segundo ela, se não temos todas as partes ativas, vivas, acordadas, não somos o todo. “Os bebês, as crianças pequenas, mesmo sem saberem de nada, estão inteiras em seus corpos. Em nossa cultura, vamos desinvestindo partes do nosso todo, e assim crescemos pela metade. E se não temos o todo ativado, não temos corpo, só partes dele. Nos tornamos impotentes, e por isso buscamos o poder.”

Instigada pelas ideias apresentadas, fui pesquisar mais sobre a visão do biólogo. Encontrei um artigo de Adriano J.H. Vieira, “Humberto Maturana e o espaço relacional da construção do conhecimento”. O autor explica que, acreditando na perspectiva do humano como integrado com seus pares, biodiversificados, a concepção educacional de Maturana busca resgatar a vida como centro de todos os processos sistêmicos. Do ser humano enquanto sistema que se espraia na cultura, na convivência. Pensa e nos desafia a buscar uma educação que resgate a biocentralidade. O lugar da vida e da amorosidade nos relacionamentos e ações dos viventes.

Na visão de Maturana, um fio condutor que nos ajuda ir refletindo a educação e a prática educativa é a mudança na finalidade da educação, passando da busca mercadológica como objetivo educacional para a melhor qualidade do conviver humano, da qual o trabalho é decorrência, criação e não fim. “A educação sempre é para que. Os grupos humanos, por situações diversas, vão pontuando, consciente ou inconscientemente, seus objetivos do educar”. Para Maturana isso se dá de forma intersubjetiva. Em outras palavras, as ações são construídas nas relações, mas de uma maneira autônoma e partilhada ao mesmo tempo. Atribui grande importância ao relacionar-se, mantendo a responsabilidade do sujeito por suas decisões.”

Estas foram algumas das questões apresentadas por Ana. Ao compartilhar sua vivência, práticas e conhecimentos, muitas lacunas foram abertas, e ainda mais possibilidades. Muito do que ela expôs já faz parte da nossa realidade e busca, em nossas práticas terapêuticas e meditativas. Mas, com certeza, precisamos avançar bastante na relação com as crianças. Afinal, como também defendia Jung, “quem não se envolve, não se desenvolve”. E o medo ou as barreiras que nos impedem de nos envolvermos mais verdadeiramente com nossos filhos nos dizem muito de nós mesmos.

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7 comentários para "Educar para o trabalho ou para o convívio?"

  1. Katia Marko disse:

    Muito bom, Eduardo. Grata pela dica. um abraço

  2. Lucas, veja esse documentário sobre as escolas!! A questão não é blindar, é permitir que ela se desenvolva…… 🙂

  3. josé mário ferraz disse:

    Está tudo errado. Até um iletrado como eu percebe a necessidade de se ensinar às crianças o oposto do que nos ensinaram e que continua sendo ensinado. É necessário educar as crianças para o trabalho, mas também e principalmente para o convívio. Não se pode viver em sociedade com a animosidade apregoada pelo monstruoso Henry Kissinger ao endeusar a competição que, segundo suas palavras, implica em ganhadores e perdedores. É desse tipo de monstros que nasce a idéia monstruosa apresentada como grande novidade na Rádio CBN de uma educação financeira para crianças, o que significa transformar doces criancinhas em malditos agiotas, ou na outra monstruosidade defendida na Rádio Bandeirantes de São Paulo, da educação pelo esporte. Do modelo vigente de educação resultam jovens sem noção de sociabilidade. Como viver em sociedade com apenas alguns tendo direitos e a absoluta maioria apenas deveres? Esta manhã, numa feira, dei algum dinheiro para “comprar” a atenção de cinco jovens que fumavam maconha na tentativa de conversar com eles, mas não tinham condição de entender nada. Estavam fora de si. Como o número desse tipo de jovens cresce assustadoramente, não precisa ser sabido para saber do perigo que ameaça as crianças de hoje. Está tudo errado. É preciso encontrar um rumo.

  4. Lucas disse:

    sem querer glamourizar nossa escola, tal iniciativa me parece excessivamente individualista e até superprotetora. a escola é lugar essencial para conviver com pessoas diferentes e lidar com os valores difusos na sociedade, concordemos com eles ou não. ao retiramos nossos filhos de escola, não teríamos como real objetivo uma tentativa de blindar as crianças contra valores que não os nossos, abrindo caminho para choques e frustrações na vida adulta?

  5. Dica de leitura, Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano é o título de um livro maravilhoso cujos autores são Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller. O primeiro, o biólogo chileno que, juntamente com Francisco Varella, conribuiu para modificar conceitos sobre a conexão corpo, mundo e conhecimento. Ela, psicóloga alemã, membro do Centro Bávaro de Pesquisa Educacional do Instituto Estatal para a Educação na Primeira Infância e fundadora do Instituto de Pesquisa de Ecopsicologia da Primeira Infância de Passau, na Bavária.
    http://culturadobrincar.blogspot.com.br/2007/06/amar-e-brincar-fundamentos-esquecidos.html

  6. Um pequeno trecho disse:

    Educação não apenas tem poder de gerar e ampliar riqueza, mas também de criar fontes. Portanto, mesmo que não se tenha esta ou não esteja visível, educação pode abrir horizontes locais ou alhures. E mais: riqueza produzida com base nessa tende ser mais socialmente distribuída quanto maior for o nível educacional, pois suas ações prescindem de profissional qualificado, significando boa remuneração. Já má educação, eufemismo de baixíssima qualidade e síntese de que ignorância reina até de forma petulante, produz até mais, se houver riqueza preexistente, especialmente ao natural.
    Deve-se isso, como no caso brasileiro, um dos piores índices em educação e dos maiores em economia, por ser sua ação determinante exploração, mais tendendo à espoliação. E o detalhe é que riqueza assim gerada pode ser amealhada, portanto, usufruída, por uma pequena e exclusiva fatia social, migrando mais aos que se valem das mais diversas espertezas e até aos mais vendilhões. Havendo o dado mais importante: a educação de uma Nação será praticamente o único bem que lhe restará quando desgraça mais profunda bater suas portas. E qualquer estudo de uma das variáveis, como aplicação dos recursos, mostra que historicamente há negligência nisso no Brasil, ou mais propriamente pelos que decidem, ao aplicar até grotescamente errado, descambando para erro proposital, e até desperdiçando muito.

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