E se for não for apenas um slogan?

Outra forma de produzir e distribuir riquezas, baseada em lógicas pós-capitalistas, está em construção. Nossa nova coluna pretende torná-la visível

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Por Antonio Martins

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Caminhos para Outro Desenvolvimento

Diante da crise ambiental e desigualdades crescentes, multiplicam-se, também no Brasil, experiências de Economia Ecológica. Como elas podem contagiar sociedade? Por Ivo Lesbaupin

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Todos os sistemas recorrem, diante de crises e contestações, a um certo realismo imóvel. Quando aparece o caráter injusto, obsoleto ou eticamente inaceitável das relações sociais vigentes, uma das formas de tentar preservá-las é alegar que são as únicas reais. A alternativa a elas, argumenta-se, é romântica, ingênua, inviável.

Convocam-se as forças da inércia e do medo. Como alterar lógicas mantidas ao longo de séculos envolve, de fato, esforço e risco, aposta-se que as sociedades preferirão manter o que é cada vez mais frustrante e pesaroso – porém conhecido. Apela-se ao que Manuel Castells chama de ocultamento (”A maior influência que a mídia exerce sobre a política não é proveniente do que é publicado, mas do que não é, de tudo o que permanece oculto, que passa despercebido”1). Procura-se apagar os sinais de que outras lógicas sociais são possíveis e já existem – ainda que de forma embrionária.

Em cenários assim, sobressai o papel de quem se propõe a mapear as novas relações sociais que emergem. Torná-las visíveis. Impedir que sucumbam, vitimadas pela inércia ou pela violência. Examiná-las em detalhe, destacando aspectos que podem servir de exemplo ou inspirar outras iniciativas. Acompanhar seus êxitos, dificuldades, desafios e superações.

Há cerca de três anos, a Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais) lançou-se a este trabalho. Muito menos divulgado do que mereceria, ele está em pleno andamento. Já gerou três seminários e resultou num livro (disponível aqui, livre e grátis).

A ação parece especialmente necessária num país que se depara com uma encruzilhada dupla. Por um lado, precisa reduzir a desigualdade material, estendendo os benefícios do que chamamos “desenvolvimento” à maioria dos brasileiros – que, em pleno século 21, nem têm acesso à internet rápida, nem vivem em domicílio servido por rede de esgotos. Por outro, deve reverter a marcha deste mesmo “desenvolvimento” – que resulta, no padrão atual, em fenômenos como devastação da natureza, redução da biodiversidade e esclerose das metrópoles, paralisadas pelo automóvel e especulação imobiliária.

Pode parecer surpreendente, mas o esforço iniciado pela a Abong está demonstrando que esta equação intrincada pode ser resolvida. Mais: alguns dos elementos que permitem decifrá-la já estão sendo desenhados. Se pressões sociais forem capazes de inverter o sentido das políticas públicas, será possível dar início a algo que poderíamos chamar de Outro Desenvolvimento. O caminho para ele está sugerido por Ivo Lesbaupin, um dos articuladores do esforço da Abong, num artigo presente no livro e reproduzido agora, com enorme prazer, por Outras Palavras.

Sociólogo e filósofo, ativista há quatro décadas por uma ordem social que supere o capitalismo, Ivo busca, em seu texto, sinais do surgimento de uma Economia Ecológica – um conceito desenvolvido por pensadores como Lester Brown, Juan Martinez-Allier, Ignacy Sachs e Ladislau Dowbor.

Ivo detecta, em meio a um Brasil capitalista e desigual, presenças claras e crescentes da Economia Ecológica. Em alguns casos, há experiências já em implantação; em outros, a viabilidade de novas lógicas está claramente demonstrada, em estudos teóricos consistentes. Entre os primeiros exemplos está a agroecologia. Já há uma alternativa real, demonstra o artigo, ao modelo de produção rural baseado em monocultura, grandes propriedades e uso intenso de agrotóxicos e transgênicos. A saída está presente na produção familiar, responsável por 70% dos alimentos que os brasileiros têm em suas mesas, e em especial nos experimentos que substituem pesticidas químicos pelo controle natural das pragas.

Também há caminhos novos no mundo, muito mais complexo, da produção industrial e urbana. Tomemos algo estratégico, como a geração de energia. Levantamentos precisos, aponta Ivo, demonstram que o Brasil tem enorme potencial em fontes renováveis, limpas e socialmente inofensivas: eólica, solar para aquecimento, solar fotovoltaica, geotérmica e das marés. Aqui, ainda não estamos no terreno da prática. Para transformar o possível em real, são necessárias políticas de Estado. Deve-se permitir, por exemplo (como já ocorre na China ou na Alemanha), que pequenos produtores de energia solar ou eólica ofertem, na rede elétrica existente, o que podem gerar. As tecnologias para tanto já estão disponíveis. E o próprio país, argumenta o texto, tem tudo para se converter num grande inovador, aperfeiçoando a captação do potencial eólico e solar e pesquisando a geração a partir força do mar.

Mas além de converter a produção de energia, preferindo fontes limpas, é preciso repensar as próprias necessidades de geração. Vale a pena inundar grandes áreas de floresta, ou construir usinas termelétricas a petróleo ou gás, para atender às necessidades de grandes corporações? É claro que não, argumenta Ivo. Aqui, sua crítica ao sistema hoje hegemônico é mais radical. A Economia Ecológica, diz ele, pressupõe o fim da produção caótica atual, comandada apenas pela busca do lucro. “É necessário o controle da sociedade sobre a política econômica. Não se pode deixar as empresas decidirem o que e como fazer, sem interferência da sociedade na qual atuam, sem o conhecimento e a avaliação daqueles que sofrem as consequências”.

Seria algo impossível, em sociedades muito influenciadas pelo consumismo e individualismo? Provavelmente, não, se a mudança de lógica se apoiar no surgimento, já em curso, de novas mentalidades. Em entrevista recente para a série Outra Política, o economista Ricardo Abramovay destacou que parte juventude já aprendeu a separar riqueza e bem-estar de prosperidade material. Por isso relativiza, por exemplo, a posse do automóvel: considera mais importante viver em cidades com transporte público eficiente e redes de ciclovias. Por que não apoiar-se neste impulso cultural transformador para vencer a pressão por mais asfalto e incentivos à venda de carros?

Ivo não está de acordo com certas tendências do ambientalismo, que, em nome da preservação da natureza, fecham os olhos às lutas sociais. “Qualquer projeto de Economia Ecológica precisa ter como prioridade a redução da desigualdade”, sustenta seu texto. Ele reconhece que o Brasil alcançou êxitos importantes, nos últimos anos, na redução da pobreza – graças ao aumento real do salário-mínimo e ao Bolsa-Família. Mas julga os resultados tímidos e incompletos.

Por que não ampliar esta conquista, altamente valorizada pelas maiorias, e desencadear, em seu rastro, políticas que tornem o país menos desigual? Há pistas claras para tanto: novas rodadas de redução dos juros pagos (em benefício de uma pequena minoria) pelo Estado; em especial, uma reforma tributária, que transfira riqueza dos mais abastados para toda a sociedade.

Ao longo de onze densas páginas, o artigo de Ivo passeia diversos aspectos ligados a Outro Desenvolvimento. Trata da produção industrial (que precisa ser reorientada, para que adote a durabilidade e recuperabilidade, abandonando a obsolescência programada e descarte obsessivo); da propaganda (hoje, motor do consumismo; amanhã, possivelmente voltada a informar sobre produtos e serviços); da região semi-árida (onde desenvolvem-se tecnologias sociais que permitem ter água o ano todo, apesar da pouca chuva).

Em todos os casos – e aqui está parte sua força e originalidade –, o texto apoia-se em ações reais, embriões da possível Economia Ecológica. Serve como uma espécie de roteiro inicial para conhecê-los; e como um primeiro passo para resgatá-los do ocultamento a que são quase sempre relegados pela mídia tradicional.

O esforço de Ivo prosseguirá em Outras Palavras. Seu primeiro texto originará uma coluna permanente, com periodicidade a princípio quinzenal. Intitulada Outro Desenvolvimento, trará informações, análises e provocações teóricas sobre a Economia Ecológica. Quais suas bases e conceitos? Em que práticas se apoia, com que dificuldades depara, como superá-las? Como pode avançar, em meio a uma sociedade cuja lógica hegemônica é a do capital? que experiências concretas a materializam, desde já?

Outro Mundo é Possível, diz o slogan dos Fóruns Sociais Mundiais, eventos que expressam a nova cultura política do pós-capitalismo. A coluna de Ivo procurará demonstrar que, apesar dos obstáculos, este mundo já está em construção – e tem imenso poder de contágio…

Antonio Martins é editor de Outras Palavras. Os textos que publicou no site estão disponíveis aqui

1Manuel Castells, A era da intercomunicação, 1/8/2006, Biblioteca Diplô

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5 comentários para "E se for não for apenas um slogan?"

  1. Marra Stutz disse:

    Sempre uma "solução" boa e pronta! Acredito ser mais uma jogada Zionista vindo ai. Att. Marra Stutz

  2. Maravilha disponibilizarem o livro! Achei que na matéria faltou falar do Georgescu-Roegen (quando citou os estudiosos que deram e dão prosseguimento a economia ecologia, passou batido o "fundador"..)

  3. Paulo disse:

    E de fato não é apenas um slogan ! Um outro mundo é possível.

  4. Carl Kobain disse:

    A resposta é Economia Baseada em Rercursos: http://www.youtube.com/watch?v=1j65XfwY5dM

  5. Cesar Lacerda disse:

    Sugênere e perfeito.

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