E se as cidades fossem para todos?

Crônica no webdocumentário “Ipiranga, 195” expõe encontro entre duas classes sociais, num prédio ocupado no centro de São Paulo

.

Por Breno Castro Alves

Está no ar, e será lançado neste sábado (1º/10), com festerê* em São Paulo, o webdocumentário “Ipiranga, 195”. É uma produção de que “Outras Palavras” se orgulha. Foi construído colaborativamente por uma equipe de mais de vinte pessoas, que participaram, no ano passado, da primeira turma da Escola Livre de Comunicação Compartilhada. Inclui vídeos, fotos, áudios e textos (reportagens, entrevistas, ensaios e até poesias).

Durante dois meses, a equipe da Escola Livre conviveu com centenas de pessoas que haviam ocupado um edifício no centro de São Paulo (foram desalojados pela polícia militar em 25 de novembro). Produzidas a partir deste contato, as peças jornalísticas que compõem o “webdoc” revelam parte de um processo que marca profundamente a sociedade brasileira há mais de uma década. As periferias já não se vêem como inferiores. Descobriram-se injustiçadas. Exigem seus direitos, inclusive o de viver no centro das cidades – que ergueram com seus braços e do qual foram expulsas.

O jornalista Breno Castro Alves foi o editor geral deste trabalho. Nos dois meses de captação do material, coordenou reuniões, sugeriu pautas, estimulou e ajudou a desenhar coberturas. A partir de janeiro deste ano, envolveu-se no mundo dos programadores, para montar a estrutura e a navegação do webdoc. Este trabalho, que envolve criatividade e transpiração, é essencial para que as matérias jornalísticas articulem-se entre si e – mais que isso – sugiram ao leitor o contexto em que a reportagem foi produzida. Sem programação, não há webdoc.

Já o trabalho abaixo, parte de “Ipiranga 895”, revela o Breno jornalista literário. Em sua crônica, por trás do relato de uma noite, emerge a riqueza das relações sociais que o Brasil continuará desperdiçando, enquanto mantiver a condição de sociedade cindida (A.M).

Noite em Família

(Nono andar. Rapaz vem subindo escada, papel e caneta no bolso, costas cansadas, encontra homem fumando no hall sob a única lâmpada acesa)

– (Breno, ofegando) Opa. Boa noite

– (Jota) Oi, tudo bem

– (Breno) Então é na sua casa que eu vou dormir? Porque me convidaram..

– (Jota, apaga o cigarro) Na hora. Vamo lá?

(Apartamento 903, luz de vela, uma vela. Um cômodo. Três colchões no chão, cobertores, uma mesa de escritório pequena com água, comidas novas e velhas e coisas de cozinha. Um armário embutido e algumas prateleiras cheias. Uma porta, para o banheiro, e uma janela, para a Ipiranga.)

– (Belo, se levanta e estende a mão) Ah, encontrou é? Entra, pode entrar

– (Breno) Dá licença. Boa noite gente, obrigado

– (Adriana, sentada, jogando celular) Oi, oi. Pode entrar. Larga suas coisas aí.

– (Belo) Mas aí, já jantou? Quer alguma coisa, um pouco dágua? (levanta uma garrafa pet verde cheia de água)

– (Breno) Cabei de comer lá embaixo

– (Adriana) Arroz, feijão, salada e salsicha, né? Tava bom?

– (Breno) Tava sim.. o pessoal aqui adora coentro, né?

– (Adriana) Ah é. E você, gosta?

– (Breno) Hm, não gosto não. Mas tava bom

– (Adriana) Ah

(Sentados em colchões estão Adriana e Jota, casal por volta de seus 40 anos, abraçados; Adriana é mãe de Belo. Pamela, sua mulher, está deitada ao lado com bebê, um ano de vida. Belo é pai de Jullya, dois meses, e de Agata, que está de pé e correndo. Agata tem dois anos, quatro maria chiquinhas e uma bexiga enorme de plástico amarelo)

– (Agata, abraçando a perna do moço) ô ô.. ô homi. brinca?

– (Breno, cafuné na gatinha) ô ô.. ô menina, tudo bem com você?

– (Agata, sorrisão dos que encolhem ombros e apertam olhos) heh

– (Breno) Que menina figura, hein Belo?

– (Belo) Ela dá trabalho.. saiu com energia essa.

– (Agata corre pelo cômodo) vuuuuush

– (Adriana e Pamela) Agata, entra! Vem aqui deitar

– (Jota) Olha a bruxa!

(Assusta, entra correndo e quase tromba com uma avó aconchegada no marido e concentrada na telinha azul que tem nas mãos. A pequena fonte de luz brilha no ambiente, que só tem mais uma vela e a luz da rua para clarear. Adriana no celular, ergue o olho pra falar e volta aos pixels)

– (Breno) Você tá jogando? O que?

– (Adriana, nível três) Cama elástica. É só pra passar o tempo.. depois que escurece não tem mais o que fazer..

– (Breno, nerd de joguinhos) Ah.. qual é esse?

– (Adriana) Aquele que tem uma barrinha embaixo e uma bola que vai destruindo os tijolinhos em cima.. você tem que segurar a bola…

– (Breno, saudoso) E você joga Tetris?

– (Adriana) Não.. só jogo esse mesmo..

– (Breno, mulheres da família) É que minha irmã e minha mãe só gostavam de Tetris, era o único que elas jogavam..

– (Adriana) a..

– (Belo, sarrista) Mas elas eram viciadas também? Porque isso aí é vício.. Já pensei em denunciar ela pro pessoal aí do corredor, tenho uma viciada aqui em casa hehehe

– (Adriana, dentuça de sorriso fácil) Ah, e quem é que tava jogando ali agora há pouco, posso saber ô seu ewerton?

– (Belo, pega gosto pela graça e ri falando mais alto) Mas isso é só pra fazer seu recorde! Hehe

– (Breno, repórter) E qual é o recorde?

– (Adriana) Nível cinco. Mas o Ewerton nem chega lá.

(Belo chama Ewerton. Tem 23, é negro e um começo de gordinho. Perdeu um emprego e conseguiu outro no mesmo dia, ambos no centro. Camisa social, calça de linha e sapato)

– (Breno) Mas ô Belo.. só eu te chamo de Belo por aqui.. vou ficar com vergonha

– (Belo) É Ewerton né, mas é mais minha família que fala isso..

– (Breno, crônica a escrever) Então explica.. da onde vem?

– (Adriana, empolgada) É que ele tingiu, que nem o cantor. Foi a Maria, essaí, a Maria do Planalto que deu o apelido. Assim que ele apareceu lá loirão ela apontou e berrou, “Belo!”

– (Belo) Foi isso memo. Um dia cheguei lá loirão, deu certo.

– (Adriana, *PLIRIM*) Uhu nível quatro!

– (Breno) Heheh..imagino você loiro..-

– (Belo, pegando o fio) É cara, é facinho fazer. Você mistura o blondor e a água oxigenada num pote. 200 g de pó de blondor e 50 ml de água oxigenada 40x, mistura com sabão em pó e depois coloca na cabeça, deixa até você aguentar porque aquilo ali vai queimar teus cabelo e as ideias. E coloca a toca térmica né, que de rico é alumínio e a nossa é sacolinha de supermercado Higa heheh

– (Breno) Higa é o que, nome de japonês?

– (Adriana) É, irmãos Higa. Tem lá em São Mateus.

(Algum dia, dez anos antes, houve carpete naquele quarto. Hoje sobrou apenas a camada que grudou com a cola, uma fina cobertura de pelagem cinza desigual. Diversos buracos revelam o taco de madeira abaixo)

– (Belo) E você tá escrevendo o que aí?

– (Breno, caneta no escuro) As coisas que eu vou vendo

– (Belo) Pega essa vela aqui, coloca mais perto. Mas me diz, o que você vai fazer com isso, o que vai escrever depois?

– (Breno) Olha cara.. ainda não sei o que vai sair..

– (Belo) Sei.. cuidado hein. Não vai sair inventando coisas.

– (Breno) Olha Belo.. tou querendo ser bem honesto.. falar de tudo, desde o carinho que vocês tem até da sujeira do prédio. Mas eu tou com uma dor de cabeça lascada e não vou conseguir anotar tudo.. então acho que vou trazer aqui pra vocês lerem antes, que cê acha?

– (Belo) Olhaí mãe. Vai trazer antes aqui pra gente é?

– (Adriana, dona de casa) Mas.. quem vai querer ouvir falar de sujeira?

(Agora temos quatro colchões e três deles, lado a lado, ocupam todo o chão à frente da janela. O último avança pelo quarto em direção ao banheiro e é ali que está o visitante, a três metros do vaso sanitário. A fonte de água mais próxima fica dez lances de escada abaixo. Toda água sobe nas costas e não há muita para descargas, cada vez que alguém usa um cheiro velho se espalha pelo quarto)

– (Agata) mnh mnh banheiro..

– (Belo, vela na mão) Vamo ali com o pai, vamo. (voltando) Nossa mãe do céu, precisa comprar um desinfetante aí hein. Tem que comprar tudo que der, desinfetante, desidrante, desperfumante, tem que jogar alguma coisa aí.

– (Adriana) Tem né. Quando que vão subir essa água hein?

– (Belo) Tem que botar esse povo pra trabalhar..

– (Dona Maria, senhora rechonchuda) Dá licença de entrar..

– (Adriana) Boa noite, boa noite dona Maria

– (Dona Maria, saia evangélica) É que eu tava sozinha ali no meu quarto, ai melhor ficar com gente aqui né

– (Belo, anfitrião de gestos largos) Ora, mas vamos entrando Dona Maria! A senhora fica à vontade, sente aqui com essa vela.

– (Adriana, como na roça) Pode se sentar aqui no colchão. E olha, a gente já tá com outra visita, tava até tirando foto

(Não está num dia bom. Já teve dias bons antes, aquele não era um deles. Pensava se não era melhor voltar depois, mas aí já estava deitado sem camisa no colchão e na coberta, sem lençol. Cogitou a deselegância)

– (Dona Maria) Foto é? Que chique-chique

– (Breno, deitado, sente algo úmido e macio em sua coberta) …

– (Adriana) E a igreja, Dona Maria?

– (Dona Maria, irmã) Ai que bonito que foi ouvir o pastor dessa vez..

– (Adriana, cheiro de sincretismo) A senhora sabe que eu fui da igreja não é, Dezesseis anos no evangelho..

– (Breno tateia um grão de arroz em meio aos pêlos da coberta)

– (Dona Maria) Foi é?

– (Adriana) Foi, até eu ver o outro lado. Eu fiz curso, quase fui pastora sabe. Nossa Dona Maria, falo para você, que tristeza que era ver aquilo, aquele povo dividindo dinheiro. Lembro de uma mulher lá chorando porque o marido tinha abandonado, tava desesperada no culto falando com o pastor e depois o homem vem falar pros outros “que mulher nojenta, vem se esfregar aqui em mim e não posso fazer nada, ela que vá encontrar outro homem!” e todo mundo rindo! O homem olhando aquele desespero e só pensando “eu já tenho meus problemas, vem os outros me trazer mais!”.

– (Dona Maria) Mas a senhora dá licença de dizer que tá na bíblia que..

– (Adriana, engatada) Eu até fui batizada, Dona Maria. Fiz tudo, ia todo dia. Levei meu pai uma vez. Meu pai nunca acreditou, nem minha mãe. Sabe o que ele falava? “A bíblia é um livro e foi escrito por um homem” (força a entonação) Insisti anos pros meus pais irem comigo à igreja e no dia que eles vão a primeira coisa que o pastor faz é vender o livro dele e a última foi pedir quinhentos reais! A vergonha que eu me deu, ele falou, foi pra isso, pra isso que você me trouxe aqui? Naquela época eu ia todo dia…

– (Belo, respeito a Exu) É por isso que eu sempre fui do candomblé, Dona Maria. Imagina só, o povo todo descendo pra missa e minha mãe toucando louvor né, glória a isso e aquilo. Então, ela saía e eu já metia a batucada (tunca tunca tunca) imagina o povo todo que viu aquele louvor logo depois ali tocando macumba heh, hein, vai dizer?

– (Breno, limitado, peteleca o quinto grão de arroz para a escuridão)

(São 23h e as conversas diminuem. Uma das visitas pediu licença e foi dormir em casa. A outra está deitada sem camisa sobre um colchão fino, sua coberta é áspera. Apaga a última vela e encontra desenhos de luz no teto, a claridade da Avenida Ipiranga entra filtrada pela janela. Passará as próximas duas horas assistindo aquelas luzes, catalogando cheiros e ouvindo fofocas do interior de São Paulo)

* Festerê, 01/10, das 16h ás 22h com venda de comidas e bebidas, entrada franca.

Local: Av São João, 588 – São Paulo, clique aqui para ver o mapa

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *