Dúvidas e certezas norte-americanas

Alerta: os analistas estratégicos mais influentes dos EUA continuam acreditando no “papel essencial” de seu país. E apostam cada vez menos na democracia…

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Alerta: os analistas estratégicos mais influentes dos EUA continuam acreditando no “papel essencial” de seu país. E apostam cada vez menos na democracia…

Por José Luís Fiori

“O Deus Todo-Poderoso abençoou nossa terra de muitas maneiras.

Ele deu ao nosso povo corações robustos e braços fortes com os quais

podemos desferir golpes poderosos por nossa liberdade e verdade.

Ele deu ao nosso povo uma fé que se tornou

a esperança de todos os povos em um mundo angustiado”

Franklin D. Roosevelt, 1944

No seu último livro, recém lançado no Brasil, o historiador inglês, Perry Anderson, incursiona no campo da geopolítica e das relações internacionais e reconstitui, de forma impecável, os principais acontecimentos e inflexões da politica externa dos EUA, no período que vai do fim da II Guerra Mundial até o início do século XXI. A política exterior dos EUA e os seus teóricos é uma obra sucinta e que se inscreve dentro da literatura crítica do imperialismo, mas não repete os seus argumentos clássicos, nem acredita, como a maioria dos analistas de esquerda, que os EUA estejam vivendo um “declínio inevitável”, ou algum tipo de “crise terminal”. Para Perry Anderson, a oposição radical ao império norte-americano não “exige garantias do seu recuo ou do seu colapso iminente”. Mais do que isto, Anderson considera que apesar das grandes mudanças geopolíticas que estão em pleno curso nesta segunda década do século XXI, os EUA mantêm sua hegemonia mundial.

Por isto mesmo, o autor dedica a segunda parte do seu livro à releitura cuidadosa do debate contemporâneo, dentro dos EUA, entre os seus principais analistas estratégicos, sobre os caminhos futuros do poder americano. Um debate e uma interlocução que transcende o campo da política externa e não tem preocupações acadêmicas, envolvendo um grupo seleto de autores que trabalham direta ou indiretamente para o Departamento de Estado e de Defesa, e que discutem a estratégia do poder global dos EUA diretamente com a “burocracia imperial” do estado americano, independente de qual seja o presidente ou partido político que esteja no governo. Como é o caso, por exemplo, de Walter Mead, Michael Mandelbaum, John Ikenbery, Charles Kupchan, Robert Kagan, William Kristol, Zbigniew Brzenzinski, Robert Art, Thomas Barnett, Richard Rosencrance, ou Francis Fukuyama, entre outros.

Uma síntese deste debate atual permite identificar algumas grandes dúvidas e certezas que atravessam todos estes autores e que delimitam e anunciam de alguma forma os critérios que orientarão — muito provavelmente — as próximas decisões e os próximos passos que serão dados pelos EUA dentro do sistema internacional. Existem dúvidas e uma discussão intensa, por exemplo, sobre qual a melhor forma de enfrentar o desafio atual da Rússia e da China, pela via do diálogo e da cooptação, ou do atrito e da contenção; sobre qual o grau de autonomia que os EUA devem conceder aos seus pequenos protetorados europeus, em particular à Alemanha; e existem alguns analistas que consideram inclusive a possibilidade e as vantagens de permitir um acesso limitado e tutelado do Irã às armas nucleares. Mas por outro lado, todos estes analistas e arquitetos da “grande estratégia” americana compartem algumas certezas e convicções, como por exemplo:

i) de que os EUA são um povo “escolhido” e indispensável, que tem a responsabilidade de liderar e policiar o sistema internacional, devendo manter de todas as formas a sua supremacia militar global e seu controle absoluto dos mares e oceanos do mundo. Além disto, eles são hoje os responsáveis pela manutenção do domínio mundial anglo-saxônico, que começou com a Inglaterra e se prolonga há 400 anos.

ii) de que acabou-se a distinção clássica entre realistas e idealistas dentro do establishment americano, e hoje todos os partidos e governantes estão obrigados a seguir uma mesma estratégia, que alguns chamam de “wilsonismo realista”.

iii) de que os EUA não podem abrir mão, em nenhuma circunstância, da defesa e da preservação do livre comercio e dos mercados financeiros desregulados. Nenhum deles defende qualquer tipo de fundamentalismo teórico ou ortodoxo, de tipo econômico. Mas todos eles têm certeza de que os mercados abertos e as finanças desreguladas são o principal instrumento de poder internacional dos EUA, antes do uso das armas.

iv) e por fim, quase nenhum destes analistas acredita mais na validez universal da democracia, nem na possibilidade dos EUA exercerem no futuro, uma liderança mundial “hegemônica e benevolente”. Neste momento, a democracia passou para um segundo plano, como instrumento de promoção e defesa dos interesses estratégicos americanos.

A defesa inconteste — de todos estes analistas — dos mercados abertos e das finanças desreguladas é sem duvida um notícia muito ruim para os que ainda sonham com o patrocínio norte-americano do imediato pós-guerra, das finanças reguladas, do desenvolvimentismo, e das democracias do bem-estar social.

Mas o seu desinteresse pela democracia parece obedecer um movimento cíclico dentro da história da estratégia global do EUA. Apesar de que seu idioma obrigatório seja sempre o “internacionalismo liberal e democrático”, os EUA sempre promoveram a democracia de forma seletiva e sazonal. Como ocorreu depois da II Guerra Mundial, quando apareceram como líderes democráticos mundiais durante duas décadas, e depois apoiaram ou mesmo participaram diretamente de todos os golpes e ditaduras militares da América Latina, das décadas de 1960 e 70. Mais à frente, os EUA voltaram a priorizar a democracia, depois do fim da Guerra Fria, e agora parece que voltaram a colocá-la num segundo plano, nesta segunda década do século XX. Os democratas do mundo, e em particular da periferia europeia e da América Latina que ponham suas “barbas de molho”.

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