Demétria, terra livre no Brasil

Como se organizam trabalho e vida social numa comunidade que produz sem agrotóxicos, confinamento do gado ou propriedade privada

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Por Anjee Cristina, Fotos de Alvio Isao e Eduarda Mendes

O espírito de Demeter, que também atende pelos nomes de Gaia e Terra, esteve presente na jornada domingueira onde se conheceu como funciona um organismo agrícola vivo e se tomou consciência dos desafios de manter uma ilha de sustentabilidade em meio a uma civilização insustentável. Nestes tempos em que a urbanização vem avançando de forma acelerada e desordenada ao longo da rodovia Gastão dal Farra, é inevitável e mesmo imprescindível que aconteça um movimento para fortalecer internamente o bairro rural Demétria, que tem o seu acesso a partir dessa estrada.

Num primeiro encontro que reuniu cerca de 40 pessoas das mais diversas idades, foram agendadas tarefas coletivas, como a realização de novos encontros comunitários na fazenda e a formação de grupos de trabalho para atuar em parcerias diversas. Durante a roda de conversa que se formou após o almoço comunitário, uma frase ecoava no ambiente: “A imagem do futuro que tememos só pode ser superada pela imagem do futuro que queremos”.

Vivência de agroecologia: A jornada domingueira começou com uma caminhada rumo às diversas atividades de prática biodinâmica. O guia do grupo foi Paulo Cabrera, administrador da fazenda nos últimos dez anos que se prepara para cumprir um novo contrato de arrendamento por mais três anos com a Associação Beneficente Tobias, proprietária das terras.

Logo ficou claro que não se trata simplesmente de plantar e colher ou criar e comer. Trata-se principalmente de desenvolver uma relação harmoniosa com a terra, o ambiente que a envolve e os seres que nela habitam. O grande desafio é melhorar o rendimento do solo, aperfeiçoar o ambiente e desenvolver uma relação de mútuo respeito entre os seres. Na prática biodinâmica, a meta vai além do desempenho econômico, busca a formação de um organismo agrícola saudável que respeite a individualidade de cada elemento e a sua relação com o todo. Essa meta implica em resistir às demandas do atual sistema econômico que transforma tudo em mercadoria, degradando os seres e as relações entre eles para diminuir custos e aumentar lucros. Quando os 140 hectares que formam a Estância Demétria foram comprados em 1974, o chão estava seco e gasto pelas muitas queimadas anuais feitas para forçar o rebrote dos pastos.

Muito trabalho vem sendo feito ao longo dos anos e precisa ser constantemente renovado para despertar a fertilidade de um solo difícil pela sua própria natureza arenosa e piorado pela prática secular das queimadas. A Estância Demétria manteve a vocação da antiga fazenda na criação de gado leiteiro, introduzindo uma nova abordagem. A vitalização dos pastos aboliu o uso das queimadas e introduziu o pastoreio com rotação de áreas e roçado das sobras de capim. Em lugar dos piquetes que costumam marcar o pastoreio com rotação, usa-se cercas móveis e arborização em curvas de nível, com o plantio de culturas específicas.

Reino das Chifrudas: O plantio de leguminosas como guandu, leucena, ervilhaca e feijão de porco ajudam a fixar os elementos que nutrem e vitalizam o solo. O rebanho leiteiro precisa ser muito bem alimentado e cuidado, pois cumpre a dupla função de alimentar a gente e adubar a terra. É o melhor aliado na busca pela fertilidade do solo e através dele a natureza realiza um ciclo de vida completo.

Nada de confinamento, nada de estimulantes químicos ou rações transgênicas. O gado se alimenta da comida viva dos pastos livres e da ração natural feita à base de milho. Atualmente, o rebanho da Estância Demétria possui 150 cabeças com 44 delas em produção, numa média de 8 a 10 litros/dia por vaca. Além da alimentação nutritiva, a qualidade do rebanho é reforçada por cruzamentos entre as espécies de gado holandês, gir e jersey.

Uma imagem que diferencia a prática biodinâmica da convencional está no rebanho de vacas com chifres. Ao contrário do que ocorre nas fazendas tradicionais, eles não são retirados. Permanecem para que se mantenha a integridade das vacas pois é suposto que a biomassa por elas ingerida (uma boa quantidade de vida em forma de pasto), as transforma numa usina de forças que são absorvidas pelas extremidades (chifres e cascos).

A alquimia biodinâmica usa os chifres como veículos de um ritual consagrado para a promoção de fertilidade e vitalidade. Após serem energizados durante uma vida, os chifres são preenchidos com o esterco das vacas e descansam e fermentam na terra durante o inverno, quando o solo está mais ativo. Esse tipo de “adubo” é então diluído e dinamizado em tambores com água e finalmente aspergido sobre a terra e as plantas, sensibilizando-as para a integração com as forças terrestres e cósmicas. Outros preparados são feitos com elementos dos reinos mineral, vegetal e animal, através da interação entre a ação do agricultor e os ritmos da natureza, sempre visando a vitalização do organismo agrícola.

Mãos carinhosas: Assim como a prática biodinâmica requer que se toque e se manipule o adubo artesanalmente, também as plantas que por ele são nutridas devem ser tocadas e acariciadas. A interação entre o produtor e o alimento que está sendo cultivado precisa estar presente em todo o ciclo. Além das frutíferas, as culturas predominantes comercializadas pela Estância Demétria são batata inglesa, batata doce, mandioca, mandioquinha, salsa, cebola e alho. Como forrageiras para o gado são plantadas espécies como milho com guandu e aveia preta com ervilhaca. As plantações se alternam num sistema de rotações.

Atualmente, as plantações representam 20% da área total da fazenda e as pastagens, 60%. Os restantes 20% constituem reserva florestal e construções de moradia e serviço. Além do laticínio onde se processam os queijos, iogurtes e manteiga, a fazenda possui uma fabrica artesanal de sorvetes e geléias. Dispõe ainda de uma padaria e uma bioloja no vizinho sítio Bahia. Já existiu o cultivo de trigo na fazenda, mas trata-se de uma cultura difícil de lidar na região da Demétria e busca-se incrementar a produção de pães à base de abóbora, mandioca e milho, que são produzidos localmente.

Mas, quem sabe devido aos condicionamentos introduzidos pela colonização, os habitantes do país da mandioca e do milho ainda preferem o trigo.

Está na mesa: Após a instrutiva caminhada pelos campos da fazenda, os participantes da jornada domingueira celebraram um almoço comunitário. Além dos quitutes deliciosos que os convidados levaram, foi para a mesa uma boa amostra dos alimentos processados na fazenda, como pães e laticínios diversos acompanhados por sucos de frutas.

Durante o banquete comunitário foi possível observar um importante diferencial das relações sócio-ambientais nas fazendas de agricultura orgânica familiar – que muitas vezes fica escondido quando se avalia a composição de custos dos produtos. Não se distingue quem é patrão ou empregado, trabalhador ou visitante. Todos compartilham a mesma mesa e o mesmo respeito. A qualidade de vida dos trabalhadores e as relações entre as pessoas são dignificadas e valorizadas, ao contrário do que acontece nos grandes empreendimentos agrícolas que priorizam o uso das máquinas que destroem o solo e relegam o trabalhador rural a uma condição servil e indigna.

Além de usar os agrotóxicos que envenenam pessoas e terras, muitas empresas agrícolas conseguem preço competitivo e lucro explorando mão de obra barata em condições grosseiras de trabalho e moradia. Ao comprarem um produto orgânico, as pessoas pensam em geral na própria saúde, mas muitas vezes reclamam do preço esquecendo que o barateamento de custos se faz geralmente à custa da dignidade humana e da integridade da natureza.

A verdade na roda: A jornada domingueira prosseguiu após o almoço com uma roda de conversa. As crianças e os cães também participaram, cada um à sua maneira. Foram então colocados os desafios que se apresentam para a continuidade dos trabalhos na Estância Demétria e a necessidade de os moradores do bairro criado a partir dela se envolverem mais com o seu destino. Um importante passo já foi dado com a implantação do CSA (Agricultura Apoiada pela Comunidade, ou Community Supported Agriculture, em inglês), movimento que transforma os consumidores em parceiros dos produtores, formando grupos que garantem uma compra mensal direta a preço fixo.

É preciso porém ir além dos fenômenos puramente econômicos para analisar os impulsos que estão por trás deles. Dados fornecidos durante a conversa de domingo revelam que, nos últimos dez anos, a Estância Demétria conquistou uma valorização dez vezes maior. Uma conquista que é fruto do trabalho mas principalmente da especulação financeira, que transforma a fazenda, na lógica perversa do capitalismo financeirizado, num produto comercial muito rentável. Esse canto da sereia ameaça todo um patrimônio sócio-ambiental e cultural construído ao longo de 36 anos que precisa ser visto, analisado e trabalhado a partir de um impulso inovador e criativo que considera terra, trabalho e capital como meios de produção e não produtos ou mercadorias.

Vale a pena relembrar, a esse respeito, como foi que tudo começou. Porque é sempre bom conhecer de onde viemos para saber aonde vamos. Voltemos à antevisão de futuro dos inspiradores e fundadores da Estância Demétria, quando a antiga fazenda Tranca de Ferro foi comprada e libertada. Passemos a palavra a Pedro Schmidt: “… o Marco mostrou-nos diversas terras, um dia ele levou-nos à fazenda Tranca de Ferro e após andarmos nela, chegamos às jaboticabeiras que hoje ainda existem. Comendo frutos saborosos e cuspindo as cascas, decidimos comprar a fazenda…O natural seria comprá-la em nosso nome. Mas então a terra seria propriedade da família e, um dia, familiares que não tivessem ligação com a Biodinâmica, mas precisassem de dinheiro, iriam vender terra e gado e todo o esforço de melhorar a terra se perderia”.

Os jovens visionários do passado chegaram à conclusão que era necessário neutralizar a propriedade da terra, emancipando-a das antigas relações de direito do uso individual para o uso comunitário. Em lugar de pertencer a pessoas físicas, a fazenda deveria pertencer a uma instituição filantrópica que recebesse a incumbência de desenvolver a agricultura biodinâmica no Brasil. Acreditavam os fundadores da Estância Demétria na necessidade de se criar “comunidades de doação”, onde a agricultura seria a base para o desenvolvimento de uma nova cultura que privilegiasse as artes, a pedagogia criativa e curativa, a medicina natural, a religiosidade. As diversas atividades das comunidades assim criadas deveriam se apoiar e complementar, formando uma “ilha cultural”, como relatou Schmidt: “Já nos anos 1920, o Rudolf Steiner falava da necessidade de formar comunidades ou ilhas culturais para fazer frente à decadência social que viria. Baseada nisto havia, por ocasião da compra da fazenda, uma leve esperança de que ela pudesse desenvolver uma agricultura biodinâmica como base para outras atividades culturais”.

A leve esperança dos visionários do passado transformou-se em realidade num futuro que para nós é presente. Uma boa amostra de que com a força de nossos pensamentos, palavras e atos, podemos construir o mundo que queremos.

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3 comentários para "Demétria, terra livre no Brasil"

  1. Vale a pena conhecer, divulgar e fazer viver!

  2. Na Indonésia, Canavalia ensiformis/feijao de porco cultivo evoluiu bem. produção atingiu 6-8 toneladas por hectare.
    Muitos agricultores planta Canavalia ensiformis para substituir soja. Comercialização são muito bons

  3. Parcos Maulo disse:

    Muito legal o texto. Adoraria conhecer a Demétria. Sou professor de Filosofia e Educação Ambiental numa escola pública no interior de Goiás e estou sempre lutando contra o currículo engessado e estúpido, procurando alargá-lo para que abarque vivências que de fato façam diferença na vida dos estudantes. A Permacultura, enquanto referencial teórico e experiências fáceis de se colocarem em prática no espaço – infelizmente – demasiado asfixiante da Escola, tem se mostrado uma verdadeira catalisadora de interesses. Fico muito satisfeito de sempre estar topando com Outras iniciativas permaculturais que – infelizmente² – não são disseminadas pela grande mídia de merda de nosso país.
    Obrigado pelo texto,
    Marcos Paulo

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