De olhos bem abertos

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“Retrato de Mário de Andrade”, de Zina Aita, 1923

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Aquele homem parecia um espelhamento, uma versão dolorosamente invertida de Mário. Imaginei-o perguntando, como o poeta: “Onde está o insofrido?”

Por Theotonio de Paiva*

Há muito não ia a São Paulo. Devia ter pelo menos uns quatro anos que não andava pelas ruas daquela cidade. Em outros tempos, geralmente ao chegar, ali pelo Tietê, embicando na rodoviária, me recordava dos versos famosos: “São Paulo! Comoção de minha vida…” e me deixava iluminar por dentro. E vinha um compasso trinado daquilo que a distante cidade significava em mim, desde a primeira visita com meu pai até resvalar nas idas constantes para as minhas pesquisas e alguns projetos.

Era uma sexta-feira e eu acabara de almoçar na Rua Augusta. Estava ali, num misto de trabalho, contatos e, sobretudo, interessado em realizar finalmente uma espécie de visita sentimental.

Uma chuva contínua dera o ar de sua graça lá pelo final da tarde do dia anterior. As calçadas molhadas pareciam insistir para que os meus sensores mais vagabundos ganhassem uma atenção redobrada. Nada poderia escapar daquela vigília realizada com os olhos bem abertos. Absolutamente nada.

Como ia dizendo, acabara de almoçar num restaurante com um jornalista amigo meu. Estávamos acompanhados de uma senhora encantadora, igualmente jornalista, que eu conhecera ali, naquela ocasião.

Na verdade, havia uma sutileza nesse encontro. Efetivamente, eu acabara de conhecer esse meu amigo, naquele exato momento. É claro que isso se explica com algumas poucas palavras. Muito embora nos correspondêssemos há uns três anos, embalados pelas facilidades do mundo virtual, e, nesses contatos, fosse fácil perceber uma certa intimidade, éramos, contudo, ainda distantes um para o outro. Por conta de um trabalho em comum, passamos a nos comunicar com certa frequência, através de emails e mensagens. A mulher, ao contrário, seria desde sempre uma presença real, linda nos seus movimentos e capacidade de perguntar o que ficara em construção pelo pensamento. E ambos me ajudavam a pensar São Paulo como uma cidade, cuja tradução “a berrar nos desertos da América”, se faz necessária emergir em novas equivalências nas suas sensíveis diferenças.

De todo modo, havia uma expressão de segurança, de velhos conhecidos, cujas antigas afinidades se deixavam acontecer. Com um pouco de ironia, dali a algum tempo, ao me afastar deles, esse estado de segurança iria desaparecer em mim, quase sem deixar vestígios.

Há alguns anos, sob um sol escaldante, estive na Barra Funda, antigamente considerada periferia da cidade, a fim de visitar a casa onde morou Mário de Andrade.”Era uma visita para a qual me preparara desde sempre. Começou quando, ainda adolescente, vi algumas fotos de uma São Paulo antiga que embalara a existência do escritor. E aquilo crescera comigo, em meus modestos estudos e num desejo de quem mitifica o mundo, e, nesse compasso, ambiciona trazer para dentro de si aquele mesmo quadrante que os olhos sonolentos abrigavam.

Esforço inútil. Era um sábado e o local, já na época transformado em centro de cultura, a Oficina da Palavra, não abria aos sábados. Fechava-se no seu mobiliário pela voz do guarda aos visitantes desavisados.

Atualmente a situação, parece, mudou bastante. De qualquer maneira, talvez fosse capaz de dizer que apenas aquela lembrança ainda me deixa sem ação. Preso à calçada, contava uma derrota que me retorcia inteiro. Impossibilitado de gerar uma reação tímida que fosse, procurava, com os meus olhos, um sentido qualquer para aquela situação de desalento.

Acreditando ou não, naquele momento, eu fora privado de olhar pela mesma janela por onde o poeta via o mundo. Coisa talvez sem importância, num culto desnecessário ao passado, embora não se tratasse de um poeta qualquer. As horas de dedicação e pesquisa, ao menos para mim, há muito tinham gerado uma intimidade distante e próxima. Diria mesmo perversa, quando, ao final de algum tempo, acabamos por travar com os nossos objetos de estudo uma afeição necessária, porém desmedida. E, nessa curiosa relação, o poeta modernista era alguém que se infiltrava pelas minhas retinas, em seu terno de casimira inglesa, como aqueles que meu pai também usava.

No entanto, a situação agora era integralmente nova. E aquela visita programada voltava a existir enquanto uma modesta possibilidade.

Saímos do almoço, os meus dois amigos jornalistas e eu, conversando sobre amenidades. Os guarda-chuvas se esbarravam e queriam pedir passagem, apressados. Naquele descompasso, o tempo parecia não deixar ver direito o vai-e-vem de ricos e brancos, que bem de perto ficam pobres e pretos.

Passamos novamente pelo local onde fica o bunker da redação. Faço uma pequena hora, despeço-me, e, ansioso, dirijo-me ao metrô.

Ao comprar o bilhete, pensava naquelas distantes ruas da Barra Funda. É para lá que eu ia.

Os anos passados e o tempo chuvoso tornavam o lugar pouco familiar. Não me recordava direito da topografia. Queria me lembrar daquela rua íngreme, por onde imaginava o poeta subindo à noite. Talvez procurasse por algum vizinho próximo a escutar os ecos, às duas horas da manhã, do piano tocando Bach, enquanto os trabalhadores dormiam profundamente.

No entanto, naquela tarde, a rua parecia ter sumido de suas próprias cercanias. Ante o meu desespero, procurei um ambulante que pudesse me informar onde ficava a Rua Lopes Chaves. Avisto um rapaz negro, meio alto, vendendo algumas guloseimas numa esquina, próxima de um enorme viaduto. Daquele lugar, com construções antigas, que soavam estranhas à cidade, ele também não distinguia muito bem o mundo que o rodeava.

Um pouco distante, vejo se aproximar um homem ainda jovem. Os passos contidos ajudavam a organizar os pontilhados da imagem que lentamente se formavam. Era visivelmente um morador de rua. As roupas encardidas, o cabelo, meio gruvinhado, e as mãos que se afagavam mostravam um aspecto visivelmente miserável. No entanto, aquela aparência, veria logo, desdizia o homem. À parte deixar transparecer uma generosidade incomum, exercia um comando meio heróico dos seus seres imaginários e da sua solidão inconclusa, além de efetivamente parecer disposto a encontrar a rua e assim me ajudar.

Naquele passo de alma cambaleante me deixei levar por aquela situação e concordei com a sua oferta. Não tinha muito que perder. Num ato contínuo, o homem vai até uma birosca e retorna decidido. Já sabia onde ficava o local.

Aquilo dura pouco. Logo em seguida, descubro que está enganado. Era um outro Lopes, ou um outro Chaves, que lhe informaram. Mas isso agora não fazia uma diferença significativa.

A princípio, aquilo para mim não estava claro, mas aquele homem, com cerca de seus trinta e poucos anos, via em mim alguém com quem pudesse conversar e, provavelmente, conseguir alguma ajuda, o que logo se confirmaria.

No entanto, o que assoma do nosso amigo é a sua capacidade de entreter o outro. Assim, como um malabarista das palavras, se desdobra em encontrar assuntos e meios para conduzir o tempo. Comentava pelos cotovelos a importância da educação, da cultura e daqueles outros conceitos distantes que ele possuía e, ao mesmo tempo, invejava por não ter, ao menos por não ter da maneira que desejava. E contava de sua compreensão sobre o Príncipe, de Maquiavel. Evidentemente, Emerson, vamos chamá-lo assim, não frequentara uma escola formal, no entanto, lera aquele clássico da ciência política por duas vezes, expondo em detalhes uma concepção bem formada que me nocauteava.

Falava de Napoleão. E apressava-se em discorrer sobre Maquiavel e Sun Tzu, os autores de cabeceira do corso, cuja dedicatória à Heróica fora implacavelmente riscada pelo músico alemão quando aquele se fizera Imperador. E emendava os assuntos. E cantava romanticamente uma espécie de lírica sobre a sua mulher, a doce Elisa, que mais parecia se erguer como um simulacro de Dulcineia. Entretanto, tudo leva a crer, Elisa não ocultava a verdade praquele Quixote das quebradas. Era ela a verdadeira dama.

Num repente, assim de chofre, se revela: – Nós somos soropositivos.

Mais um golpe. Previsível nocaute. Mas de todo modo, constrangedor, apesar da inteligência em falar de si mesmo com uma espécie de distanciamento o que dava às palavras daquele homem uma certa leveza.

Feliz com a atenção que eu lhe dedicava, pedia para tocar as mãos em sinal de amizade. E gentilmente dizia: – Se eu não lhe incomodasse, receberia de bom grado um presente. Que presente seria? Fraldas para ele e a sua mulher. Rapidamente, sem me deixar raciocinar, informava que os recursos dados pelo governo haviam terminado e o coquetel os fragilizava terrivelmente.

Enquanto nos dirigíamos a uma farmácia próxima, observava melhor aquele sujeito. Cruzávamos um viaduto. E as roupas encardidas, os dentes mal conservados, e a verve de um intelectual que poderia ter sido e não foi, gritavam em toda a sua plenitude. Cuido para que não seja importunado no estabelecimento, ouça frases que venham a agredi-lo, ou, quem sabe ainda, seja convidado a se retirar. Nesse sentido, adoto uma postura meio paternal, que me dói um pouco ter de lançar mão, mas julgo necessária assim mesmo.

E nos despedimos mais à frente. Numa confusão vulcânica, encaminhava-me à Rua Lopes Chaves, naquele momento, já devidamente mapeada. A casa, encantadora, não mais pertencia a ninguém, mas à memória de uma cidade e do mundo. E poderá ser compreendida como um patrimônio cultural dos nossos desejos e das nossas tradições mais fecundas.

De volta à minha cidade, um outro amigo, ao ouvir o relato, colocava um reparo. E nele deixava estremecer toda a sorte do mundo, que se apresentava como uma injunção terrível. Aquele homem parecia um espelhamento, uma versão dolorosamente invertida do poeta. Enquanto este seguia morto e reconhecido, às vezes de um modo incompreensivelmente tão antimodernista, por uma sociedade com a qual mantivera conflitos intensos, aquele outro, morador de rua, soropositivo, apesar do sangue ainda lhe correr pelas veias, visto de perto, permanecia uma sombra fugidia de si mesmo, desenhando a cada movimento a sua própria exclusão. Parecia se perguntar como o poeta: “Onde está o insofrido?”

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* Theotonio de Paiva, dramaturgo e diretor de teatro, é doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Colaborador do Outras Palavras. Para ler todos os seus textos publicados no site, clique aqui.

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