De como Takiguthi decidiu declarar-se não-artista

Pintor e professor paulistano procura arte menos egocêntrica e midiática, voltando-se para ofício artesão que, acredita, traz real profundidade

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Pintor e professor paulistano procura arte menos egocêntrica e midiática, voltando-se para ofício artesão que, acredita, traz real profundidade

Por Mazé Leite | Imagens: Maurício Takiguthi, Mãos, Sectários e Modelo Feminino 6 (em ordem de aparição no post)

Maurício Takiguthi, pintor, trabalha há 28 anos como pintor, mas ainda se mantém “diante do mundo como aprendiz”, vivendo “cheio de dúvidas, questões, e instigado pela curiosidade de querer entender o que os mestres viam”. Mas acrescenta que não há como medir a plausibilidade deste tipo de desejo, desta ambição. Nunca podemos saber aonde nossos desejos nos levam, mas serve como um motor que nos move e que move o pintor até hoje “depois de 28 anos de estrada”.

“Continuo insistindo em obter respostas, acrescenta ele. Porque continuo frustrado boa parte do tempo por não tê-las. Porque continuo ‘apanhando’ e, mais importante, porque continuo sentindo tesão pelo realismo que me instiga na esperança de um dia ter acesso”.

Ter acesso ao que?

O filósofo alemão Friedrich von Schelling (1775-1854) em seu texto “A relação das artes plásticas com a natureza” mostra como o olhar do artista, penetrando no Real, enxerga o mundo através da sua essência, que é acessível ao nosso espírito (mente). Schelling adverte que aquele que apenas enxerga do mundo a sua casca, a sua superfície, a ele “jamais será facultado atingir o processo profundo”. Enquanto para o artista que tem consciência de seu papel sabe o caminho para desvendar as aparências que muitas vezes a realidade toma. Diz Schelling: “Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido.” (grifo meu)

Qual é o processo profundo, qual é o caminho que nos leva a este mergulho do qual retornamos como criadores?

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Não é uma resposta fácil. Mas um caminho possível é o exercício do ofício ao qual cada um se propôs e é isso o que diariamente Takiguthi ensina a seus alunos. Por sua origem japonesa, ele se reporta muitas vezes aos ensinamentos zen-budistas que dizem que “a prática é que é expressiva”.

“Desse ponto de vista, diz ele, somos algo a partir do que fazemos e não do que dizemos ou acreditamos”. Por isso fica difícil criar qualquer adjetivo que qualifique o sujeito, pois no momento em que uma pessoa se chama a si próprio de “artista”, isso cria, segundo Maurício, uma predisposição a que “as palavras comecem a substituir ilusoriamente o que fazemos, obscurecendo a realidade dos fatos e a visão sobre nós mesmos”.

Pois a prática concreta é mais enfática do que qualquer discurso. “Em geral a pessoa que se preocupa demais em se auto definir ou falar de suas qualidades pessoais é que provavelmente está mais ocupada em convencer-se ou convencer ao outro – pela retórica, e não por atos concretos. Pode servir como marketing pessoal, mas não como autoaperfeiçoamento”.

Pergunto a Takiguthi a respeito da temática de sua pintura atual. As figuras que ele pinta são fortes, parecem habitar um lugar entre a vida e a morte, com gestos dramáticos, olhares densos; figuras que parecem nos apontar nossos próprios medos, nos defrontando incomodamente.

“Diferentemente do que se associa a um realista, eu procuro não ficar na mera imitação da natureza ou atingir qualidades ‘fotográficas’. Não sou adepto da ideia de que o melhor propósito de uma pintura é de parecer com uma fotografia. Quero registrar na tela a minha percepção interna da natureza humana ou, mais relevante para mim, conseguir visualizar minha realidade interior. Muito disso se passa pelo diálogo silencioso com o que faço: a partir da imersão no processo que nem sempre é fácil, dadas as grandes distrações da vida numa metrópole, procuro me debruçar sobre questões intrínsecas da pintura e do desenho.”

– Que relação há entre o que você pinta hoje e o tempo contemporâneo, Maurício? Pergunto a ele.

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“Se está falando do tempo contemporâneo enquanto relação entre a postura tradicional e o status quo com sua lógica pós-moderna, que tem a arte como entretenimento, barulho, escândalo ou transgressão… nenhuma!” diz ele. Maurício Takiguthi insiste em se voltar para a arte tradicional que para ele é sinônimo de conhecimento, do caminho solitário do mestre em busca da construção, do sentido dos valores permanentes do ser humano, do resgate da contemplação da arte, da observação seletiva baseada em critérios. Daí sua crítica de que hoje não há espaço para isso, em especial aqui no Brasil.

Takiguthi explica que o tempo contemporâneo impõe um fluxo interminável de informações, de imediatismo pragmático que força as pessoas a produzir “num ritmo ansioso e alucinado” do qual é difícil escapar. “O que pode ser feito é minimizar seus efeitos pela consciência dessa forte influência quase arrasadora, dada a impossibilidade de o indivíduo simplesmente descolar-se social e culturalmente dessas imposições”, acrescenta.

Mas diz também que a pintura pode desempenhar esse papel que ele chama de “campo de respiro” em outro tipo de ar. “Não o ar viciado e barulhento que exige aceitação acéfala das regras, mas um ar onde o tempo transcorre de maneira diferente, mais desacelerada. Onde o ar, ao invés de ser estritamente racional, calculista, mecânico, previsível, vinculado fortemente às demandas da utilidade, pode assumir uma dimensão intuitiva, voltada para a introspecção e contemplação das coisas visíveis e invisíveis”.

Essa mudança de perspectiva na relação com o tempo e “o deslocamento para estados mentais mais sensoriais”, apazigua o espírito, amplia a sensibilidade, diz ele. É uma proposta a uma resistência ao modus operandi exigido pela sociedade atual, que exige do ser humano coisas além da sua capacidade, física e mental. Me pergunto se não seria por isso que hoje temos uma sociedade onde se usa tanto remédio para depressão e se faz uso de tantos narcóticos? Esse deslocamento da prioridade aos valores humanos em prol da produção e do consumo não está criando uma sociedade doente, com indivíduos massacrados diariamente em busca da sobrevivência? O esvaziamento de símbolos universais, o corte radical com a tradição histórica perpetrado inclusive por artistas ditos modernos e contemporâneos não estaria nos distanciando cada vez mais de nós mesmos, dos nossos sonhos, da nossa capacidade de criadores do mundo?

Talvez isso dependa da busca novamente do que é essencial, do que não é óbvio atualmente, “das qualidades perenes, universais, que demandam tempo e maturidade para poder visualizar e compreender”, complementa Maurício.

Neste ponto da conversa, relembro um diálogo que aconteceu entre nós e outros amigos, num sábado à noite no Ateliê Contraponto, quando Maurício disse que está abdicando da possibilidade de ser chamado de “artista”. Aquilo me interessou e logo quis saber o motivo. Takiguthi respondeu:

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“Já faz um tempo que venho constatando a existência de um patrulhamento ideológico, forte mas implícito, em torno das exigências para que uma pessoa seja considerada um artista: que deva estar ‘antenada’ na busca pela próxima tendência (como na moda) — perdendo, assim, a conexão com sua busca interna; que deva ignorar as habilidades do seu campo de atuação (que significa conhecimento prático e técnico); que faça prevalecer a habilidade retórica de convencer o outro de que o que faz é arte, em detrimento do conhecimento em profundidade que lhe permita pensar o que faz ou fazer o que pensa; entre outras. Este patrulhamento serve fundamentalmente para tornar oficial o monopólio da verdade e manter a posse da ‘aura’ artística, tão importante numa sociedade sufocadamente racional”.

O problema é que o artista de hoje aceita, acrescenta Takiguthi. “Apesar de aparentemente pregar a transgressão como estilo de vida, está mais desesperado em se enquadrar e ser cooptado pelo sistema. Sob a lógica atual, faz de tudo para chocar/entreter o espectador para poder existir artisticamente. Cultua o ego ao tentar virar celebridade, abre mão do comprometimento sincero com a obra, para transformá-la numa extensão do próprio umbigo e vitrine de si mesmo. Defende verborragicamente a todo custo a auto-imagem que cria de si como artista/celebridade, por uma via afetada, ególatra e arrogante. Caça desesperada e exclusivamente a fama, a reputação e os interesses mercadológicos. O seu foco concentra-se nos aspectos extrínsecos à sua prática e, certamente, quer ser maior do que faz”.

Foi num dia em que refletia sobre isso que Maurício Takiguthi se viu “esgotado” com esse estado de coisas. Ao ver como a palavra “Arte” se encontra atualmente tão contaminada — assim como outras palavras — é que ele recorreu a uma frase de uma música de Raul Seixas e decretou para si mesmo: “Pára este mundo que eu quero descer!”

Esse retorno à ideia de “ofício” para Maurício Takiguthi é a reafirmação do compromisso harmonioso e silencioso com o processo do trabalho. E complementa:

“É materializar uma inversão radical nos valores: no lugar da ‘aura’, a realidade concreta do cotidiano; no lugar do glamour, o trabalho árduo; no lugar da retórica, a sinceridade e a sensibilidade para algo existente.  Enfim, é só isso que eu desejo ardentemente hoje em dia: quero respeitar meu ofício, reverenciar a prática, dedicar toda a atenção e energia aos seus elementos intrínsecos para compreender a sua essência, sob o rigor da excelência”.

Voltando-se para seu ofício, o artesão escuta, vê melhor o que faz e o que vê. Estabelece “uma interação sensível com um mundo complexo e infinito, onde pequenas revelações e insights cotidianos fazem muito sentido”, finaliza ele.

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5 comentários para "De como Takiguthi decidiu declarar-se não-artista"

  1. marcio ramos disse:

    … legal isso ai…
    … artista e quem quiser ou quem quiserem ou os dois ou um dos dois ou nenhum dos dois e mesmo assim…

  2. que maravilha. estou começando uma série de pesquisa com artistas “por que você é artista?” e gostaria de saber de você Mazé Leite, e do Takiguthi. Podemos nos falar por email? o meu: [email protected]
    obrigada.
    e amei a entrevista.
    bjos

  3. raoni disse:

    Nem tão lá nem tão cá. Nem tão idiota e nem tão Nelma. Takiguthi faz o que move e intriga ele e o tal cara do pinico fazia o mesmo. Não dá pra dizer que isso ou aquilo é superior ou inferior…
    “(…)Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.(…)
    Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente.(…)”
    Rainer Maria Rilke
    Carta a um jovem poeta

  4. Nelma Sarandura disse:

    O “idiota” acima, não sabe o que diz e provavelmente foi muito apressadinho em seus julgamentos… ts ts ts… Provavelmente é um dos que endeusam os badulaques que se expõem atualmente como arte e como todos os seus parceiros que adoram isso, fica incomodadozinho com opiniões diferentes, com quem faz arte de outro jeito que não o imposto pelo sistema atual, este, sim, apegado aos “velhos” e repetitivos costumes de considerar um pinico como obra de arte. Eu gosto da arte do Takiguthi, este, sim, um resistente à babaquice atual!

  5. idiota disse:

    se o site quer se situar à esquerda deveria saber reconhecer o artista burguês em busca da sua “expressão ideal” e da “verdade essencial” como os arquitetos do antigo regime e os moralistas de todos os tempos.

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