Das Novas Famílias ou dos Bandos Legais

Uma história de amor e uma pergunta: poderão grupos de distintos gostos sexuais e miscigenações unir-se com reconhecimento do Estado?

140611-Matisse

.

Uma história de amor e uma pergunta: poderão, um dia, grupos de distintos gostos sexuais, miscigenações e nacionalidades unir-se com reconhecimento do Estado?

Por Fabiane M. Borges | Imagem: Henri MatisseMúsica (1907)

Uma amiga minha é casada com um homem há quatro anos. Mas em uma das viagens reencontrou um ex-namorado e descobriu que ainda o ama. Quer casar com dois homens. Depois de contar para eles, não sem alguma tensão, eles aceitam. Ela conta para a mãe, que por sua vez conta para o pai. O pai liga para o marido número 1 e tem uma conversa de homem para homem com ele. A filha fica indignada com essa reação e escreve uma carta para a mãe e para o pai. Mãe e pai respondem as cartas criticando seu comportamento. Ela então faz um questionário sobre o amor romântico e exclusividade, os pais respondem cada um com uma carta. Ela envia essas cartas completas dos três para alguns psicólogos e sociólogos e pede para que cada um dê seu ponto de vista sobre as cartas. Sendo eu uma das suas escolhidas, escrevi esse texto para ela. As cartas e os textos de resposta se tornarão um espetáculo a ser feito no mês de junho em algum lugar da Europa. Aqui está o texto.

* * *

Amor, pós amor, poli amor, poligâmica, queer, goiabinha, Dona flor, poliândrica, poli poli, mesmo assim hétero, uma hétero que gosta de homem, de dois homens, mesmo que um deles seja gay. Ela é bonita, charmosa, tem um modo singular de fazer as coisas, toda analisada, edipianizada por uma mãe psicanalista que não a trata como paciente, trata como filha, e com filha se coloca limites, se dá linhas éticas, se aconselha a andar no caminho de Deus. Do deus católico apostólico romano. Para essa mãe a psicanálise vem antes da experiência, Deus vem para endossar algumas de suas verdades “encontrar Deus ou encontrar um psicanalista” diz ela. Deus endossou “verdades” como a de que a fidelidade representa segurança, fidelidade sexual como um estabilizador, um ponto de equilíbrio na vida. A mãe fala à filha de um desejo de fusão e intimidade que é inerente ao sexo, que só vem com a intensidade de uma entrega, e para essa entrega existir é preciso escolha e confiança. Alerta que a filha está em busca de uma triangulação, como uma criança onipotente e narcísica que quer estar no meio de duas pessoas.

O pai fala de forma diferente de que é preciso fazer escolhas, colocar limites. Na carta não dá para perceber de forma tão clara a influência religiosa ou intelectual do pai. Não é psicanalista, mas fala em ética e moral. Diz que a liberdade é secundária quando o amor é de verdade, pois a verdade do amor é maior que a liberdade. Muito maior. Amar e se sentir amada é uma proteção que secundariza todos os outros desejos.

O pai diz: não desrespeite seu marido se ele te ama, e se deixar você ter outro homem, é porque não te ama de verdade. Você tem que respeitá-lo. O outro é um homossexual. Ele vai te fazer sofrer como já fez no passado. Você tem que escolher com quem quer montar uma família, escolher um pai para os seus filhos.

A mãe diz, eles vão te abandonar, vão te fazer sofrer. Você é mulher. Pensa que pode ter esse sentimento de onipotência, mas a vida é cheia de limites, você vai acabar sozinha sem nenhum dos dois. A sociedade vai te ver com maus olhos. Você está cultivando tua própria armadilha. Te criamos com ética e moral, não esperávamos isso de ti.

Esses discursos de verdade do pai e da mãe estão fora de questionamento sob seu ponto de vista. Eles são memes que se repetem através de alguns séculos. São discursos produzidos sobre o corpo, sobre a sexualidade e sobre os afetos que tem um sentido histórico, mas para criar esse sentido foi preciso doses cavalares de religiosidade imposta sobre os modos de desejo, foi preciso toda a onda da disciplina sobre os corpos com aparatos antropotécnicos como direito, teologia, medicina, ciência para fazer vingar um amor domiciliar, herdeiro, familiaresco, autoritário, protetor e auto-referente. Esses discursos de verdade ligadas a moral e a ética são discursos que funcionaram por algum tempo para que fossem promovidos ideais como a de família, território, propriedade, estado nação, projetos coloniais entre outros, mas hoje em dia ainda funcionam?

Em plena sociedade de controle, com um capitalismo individualista cada vez mais premente, esse ideal de família nuclear mostra evidentes traços de instabilidade. Os motivos são para lá de evidentes. Uma relação familiar baseia-se em grande medida nos papéis de gênero, o homem provedor, a mulher cuidadora, o homem do espaço público, a mulher do espaço doméstico, o homem social, a mulher companheira, o pai da lei, a mãe do cuidado. Apesar desses modelos estarem enfrentando mudanças nas últimas décadas, a força dessas memes largamente reproduzidas em todo o tipo de aparatos públicos durante os séculos XVIII e XIX, ainda sustentam grande parte do imaginário social atual.

Durante o século XX, em plena revolução industrial, essa meme continuou a ser reproduzida através do cinema, televisão, revistas, passando pelo american way of life durante o período pós II Guerra, e foi nesse momento que começou também a pipocar com mais força todo o tipo de insurgências de gêneros, transgêneros, feministas, gays, lésbicas, movimentos queers, que passaram a se mostrar para a sociedade, não só no sentido de demonstrar sua diferença em relação ao ideal da sociedade heteropatriarcal, mas de apontar os métodos de dominação impostos pelos sistemas de controle sobre a vida, sobre o comportamento humano, sobre o desejo.

Dentro desse contexto de insurgências vem à tona as críticas aos modelos científicos por serem atrelados a leituras moralistas, cristianizadas, que apesar de tentarem provar que praticam a neutralidade e a razão, trazem no interior de suas interpretações toda a sorte de preconceito, narrativas moralizadoras e pressupostos políticos ideológicos. Ou seja, foi um momento de tornar público que os grandes modelos científicos não eram imparciais, muito pelo contrário, estavam misturados aos ideias religiosos e morais e que isso acarretava em produções de “verdades” sobre a vida e o mundo, com comprovações científicas.

Para além de apontar os termos ideológicos da ciência, medicina, religião, esses movimentos insurgentes começaram a dizer que dentro dos interstícios da sociedade haviam outros modos de desejar, havia diversidade de gênero, diversidade sexual e erótica, que se diferenciavam grandemente do modelo tradicional de família e propriedade, e que isso precisava ser reconhecido dentro das formas de produção de lei, sair da ilegalidade, daí as grandes lutas desses múltiplos gêneros por direitos, por leis, por igualdade social, por respeito. Todas as campanhas, as festas, as demonstrações públicas, as passeatas, os carnavais políticos, as lutas institucionais, as políticas de afirmação.

No meio de todo esse turbilhão está nossa mulher de 31 anos em 2014 apaixonada por dois homens, que declara aos pais e aos seus homens, que quer ficar com os dois, em um clima de comum acordo. Quer ter dois maridos, sabendo que um deles é gay, o que torna essa questão ainda mais interessante. Nesse tipo de família ou bando, as diferenças sexuais podem ser assimiladas de outra forma, não se trata aqui de compulsão heternormativa, mas de uma ampla aceitação dos diferentes modos de desejar ou de expressar erotismo, sem que isso resulte no sacrifício individual dos “diferentes”.

Depois de tantas lutas e tantas deflagrações no campo social, era para ser já banal esse tipo de escolha. Poderíamos aqui recorrer a todas as culturas de poliandria, para dar a essa mulher um respaldo histórico e cultural, poderíamos recorrer a tribos indígenas como os asurini no Brasil, ou famílias do Himalaia, ou práticas de poliamor que se consolidaram no contexto dos anos 1960 e continuam se consolidando, tudo isso para não deixá-la sozinha com essa experimentação, respaldá-la antropologicamente, criar um vínculo entre seu desejo e outras práticas afetuosas nesse nível. Mas preferimos aqui fazer um outro movimento e tentar analisar a problemática da família em que ela se encontra.

Os pais da nossa mulher de 31 anos não esperavam isso de sua filha. Ela foi feita para ser uma mulher independente, moderna, mas adaptada a uma forma de produção de desejo, baseada na família nuclear. Ela se apaixonaria por um homem honesto e bom, com ele reproduziria uma família, e mesmo que viessem a se separar futuramente, ela teria uma estrutura familiar segura jurídica e socialmente. Ao invés disso, ela propõe o casamento com dois homens, sendo um deles gay, com quem já teve uma relação no passado e com quem quer voltar a estar.

Isso cria um colapso em sua família, que já fazem parte daquelas famílias divorciadas, onde mãe e pai tem outros companheiros, mas que mesmo assim preservam valores que consideram universais e condizentes com a estrutura social. O colapso advém do modelo novo de família que a filha quer assumir, que vai contra esses “valores” e “verdades” históricas que os pais preservam. Eles não questionam nem a origem nem a validade desses valores e dessas verdades. Eles argumentam a favor dessas verdades e valores a partir dos seus conhecimentos e sua própria experiência.

Não vou me ater a mais detalhes da carta do pai, porque ele não dá muitos subsídios nas cartas, parece somente querer proteger a filha e demonstrar sua força de lei e ordem através de gestos machistas como fazer uma ligação para o marido da filha, para ter uma conversa de homem para homem com ele, e assim colocar os pontos nos is. O que fez com que ela desencadeasse toda essa ação performática e virótica, revoltada com seu comportamento.

Já a mãe impõe sobre a filha um teoria psicanalítica produzida um século atrás, com aparentemente nenhuma atualização. Édipo, onipotência, triangulação, limite, castração. Aparentemente ela trata a filha com os mesmos alicerces teóricos com que Freud analisou Marie Bonaparte. O modelo teórico que a mãe segue já foi restruturado centenas de vezes, mas ela ignora todas essas críticas e reformulações e usa seu mérito de ser uma reconhecida psicanalista da sociedade paulista, para impingir sua interpretação sobre a filha, psicopatologizando a situação, julgando-a como um erro e por fim apontando uma punição: a solidão e o sofrimento.

Mulheres desperdiçadas

Quero falar um pouco da punição expressa pela mãe: Solidão e Sofrimento. Ela está agora em um espaço confuso entre suas teorias, suas verdades, sua religião e sua própria experiência. Fala com a força de quem já viveu muita coisa, quando diz, “você deveria aprender com a experiência da sua mãe”!

Existe um desperdício de mulheres dessas gerações da idade da mãe da nossa personagem. Porque para traz não tinham muita referência histórica (ou historicizada) de mulheres socialmente poderosas em quem pudessem se espelhar, e para frente havia um deserto, despovoado, então foi preciso inventar essa mulher auto-suficiente. Essa mulher para além de abrir caminho no mercado de trabalho, não podia deixar de lado o cuidado com a família, o erotismo, a maternidade, a beleza, a jovialidade. Muitas dessas mulheres ficaram sobrecarregadas sendo que os homens não acompanharam essa mudança de forma tão expressiva, cometendo enormes injustiças, endossando a culpa cristã delas e suas neuroses de atratividade. Muitas delas ficaram sozinhas, sofrendo com os divórcios, que recém começavam a eclodir, e com a dificuldade em relação ao envelhecimento e a solidão.

Provavelmente a mãe da nossa personagem passou e passa por tudo isso, por esse desperdício e por isso ela deixa subentendido que experimentação é coisa pra jovens, pois sua experiência própria (lembrando que ela é das primeiras gerações a se tornarem ativas no campo público), aponta no sentido de que “quando você minha filha começar a envelhecer, vai ver que a sociedade não evoluiu tanto assim, e sua onipresença vai acarretar em sofrimento já que seus homens vão abandonar você e essa experiência vai te trazer consequências irreversíveis, porque você vai ficar velha e sozinha.

Esse desperdício tem a ver com o machismo ainda impregnado na nossa sociedade, e talvez ainda tenhamos muito pouco tempo de invenção de outras formas de relacionamentos, que rompa com a lógica da família nuclear, ou estendida a partir das relações de parentesco, ou ainda inovações válidas no campo da paternidade e maternidade compartilhada.

Em uma sociedade que recém agora está começando a ser liberado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ainda vai demorar um pouco para ser legalizada a união civil estável de um trio, um bando, um grupo, uma matilha. Mas é provável que isso comece a ser mais comum num futuro próximo, já que muitas relações estão abrindo suas estruturas nucleares, assim como o caso da nossa personagem – a filha, e o que era considerado um escândalo na moral da família burguesa, pode vir a ser um hábito, como tantas outras coisas difíceis que acabaram sendo incorporadas na sociedade.

A individualização e o amor romântico mostram sinais de decadência, em função de que os pilares que sustentavam esses hábitos se modificaram. Se em alguns setores da sociedade, essas práticas de família estendida se organiza em função da cultura como no caso de tribos indígenas, quilombos, casas religiosas, ou ainda por necessidade por causa da precariedade econômica, como em alguns espaços das fazendas distantes da cidade, das favelas, das repúblicas, por outro lado temos uma queixa constante das pessoas de classes sociais mais estáveis, que não tiveram oportunidade ou desprendimento para inventar para si outros tipos de famílias, pautadas em outros critérios para além da consanguinidade, que sofrem por solidão e abandono, sendo muito comum encontrarmos nas grandes cidades pessoas idosas solteiras ou viúvas, sozinhas dentro de seus apartamentos, sem ninguém para fazer companhia ou exercer o cuidado, já que seus filhos, caso tenham, na maioria ficam ocupados com seus próprios afazeres e famílias e não se dedicam inteiramente ao cuidado dos pais. Ou seja, a família nuclear propriamente dita, não dá respostas a questão da solidão e do sofrimento. De certo modo a família aberta e estendida se torna então uma necessidade, não um capricho.

Para terminar, faço aqui um elogio à experimentação no campo familiar da nossa personagem. Ela está entre outras coisas respondendo com sua própria vida a um desejo social amplo, que não é só individual ou narcísico. São essas experiências que vão introduzir aos poucos na sociedade outras alternativas à família nuclear burguesa tradicional. Essas experiências não vão ser vividas sem sofrimento ou dor, que é algo próprio da vida em sociedade, como também afetos de alegria e colaboração, mas vão constituir outras formas de existência e relações.

Será que daqui a pouco vai ser comum as pessoas casarem em bandos? Que isso será exigido pela sociedade civil, e o Estado de Direito dará enfim o consentimento para que bandos dos mais diferentes gostos sexuais e das mais diferentes miscigenações e nacionalidades possam se unir com reconhecimento do Estado e legitimados pela Lei?

Apostamos que sim, já que inúmeras pessoas já estão operando com essa lógica múltipla e coletiva. Uma volta a ideia de tribalização perpassa o imaginário dessas novas gerações. Mas esse é outro texto.

Leia Também:

Um comentario para "Das Novas Famílias ou dos Bandos Legais"

  1. Belinda Silva Pereira disse:

    muito bom o texto, parabéns!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *