Controle social, do Grande Irmão ao Big Data

Como Estados e empresas praticam, juntos, vigilância permanente. Por que isso corrói vida privada, sem a qual, segundo Rousseau e Arendt, não há liberdade

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Como Estados e mega-corporações praticam, juntos, vigilância permanente. De que modo isso corrói vida privada — sem a qual não pode, segundo Rousseau e Hannah Arendt, haver liberdade

Por Ignacio Ramonet | Tradução: Inês Castilho

A ideia de um mundo colocado sob “vigilância total” pareceu durante muito tempo um delírio utópico ou paranóico, fruto da imaginação mais ou menos alucinada dos obcecados pela conspiração. Mas é preciso reconhecer a evidência: vivemos, aqui e agora, sob o olhar de uma espécie de império da vigilância. Sem que saibamos, cada vez mais nos observam, nos espiam, nos vigiam, nos controlam, nos ficham. A cada dia novas tecnologias tornam-se mais refinadas, na perseguição do nosso rastro. Empresas comerciais e agências publicitárias registram nossa vida. Mas, sobretudo, sob o pretexto de lutar contra o terrorismo ou contra outras mazelas (pornografia infantil, lavagem de dinheiro, narcotráfico), os governos – incluindo os mais democráticos – se erigem em Grande Irmão e já não têm dúvidas em infringir suas próprias leis para nos espionar melhor. Secretamente, os novos Estados orwellianos buscam construir arquivos completos de nossos contatos e dados pessoais, exatamente como aparecem em diversos suportes eletrônicos.

Depois da onda de ataques terroristas que golpeou, há anos, cidades como Nova York, Paris, Boston, Otawa, Londres ou Madri, as autoridades não tiveram dúvidas em utilizar o grande pavor das sociedades abaladas para intensificar a vigilância e reduzir ainda mais a proteção de nossa vida privada.

Compreendamos: o problema não é a vigilância em geral, é a vigilância maciça clandestina. Num Estado democrático, as autoridades têm legitimidade, baseando-se na lei e com a autorização prévia de um juiz, para colocar sob vigilância pessoas que considerem suspeitas. Como disse Edward Snowden: “Não há nenhum problema em colocar sob escuta Osama Bin Laden. Sempre que os investigadores tenham que obter a permissão de um juiz – um juiz independente, genuíno, não um juiz secreto – e possam provar que existe uma boa razão para emitir uma ordem, podem executar esse trabalho. O problema surge quando nos controlam a todos, em massa, o tempo todo e sem nenhuma justificativa” (1).

Com a ajuda de algoritmos cada vez mais aperfeiçoados, milhares de pesquisadores, engenheiros, matemáticos, estadistas e profissionais de informática buscam e classificam a informação que geramos sobre nós mesmos. Satélites e drones de visão penetrante nos seguem do espaço. Nos terminais dos aeroportos, escâners biométricos analisam nosso andar, leem nossa íris e nossas impressões digitais. Câmaras de infravermelhos medem nossa temperatura. As pupilas silenciosas das câmeras de vídeo nos examinam nas calçadas das cidades ou nos corredores dos hipermercados. Também seguem nossa pista no trabalho, nas ruas, no ônibus, no banco, no metrô, no estádio, nos estacionamentos, em elevadores, em shoppings, nas estradas, nas estações, em aeroportos …

A revolução digital que vivemos, que já transformou tantas atividades e profissões, também modificou completamente os serviços de informação e de vigilância. Na época da internet, a vigilância passou a ser algo onipresente e imaterial, imperceptível, indetectável. Caracteriza-se tecnicamente por uma simplicidade espantosa. Acabaram-se os trabalhos de alvenaria para instalar cabos e microfones, como no célebre filme “A Conversação” (2), no qual podíamos ver como um grupo de “encanadores” apresentava, em uma feira dedicada às técnicas de vigilância, aparatos mais ou menos elaborados, equipados com caixas “informantes” transbordantes de cabos eléctricos que precisavam ser escondidas nos paredes ou no chão.

Vários escândalos ruidosos dessa época – o caso Watergate nos Estados Unidos, o dos “encanadores” do jornal Le Canard Enchaîné  na França –, fracassos humilhantes dos serviços de informação, demonstraram os limites desses antigos métodos mecânicos, facilmente detectáveis e localizáveis.”

Hoje, colocar alguém sob escuta passou a ser feito com facilidade desconcertante. Uma pessoa comum que queira espionar alguém à sua volta encontra no comércio, vendido livremente, um vasto leque de opções: meia dúzia de programas de informática para espiar (mSpy, GsmSpy, FlexiSpy, Spyera, EasySpy), que “leem” facilmente os conteúdos dos telefones celulares, mensagens de texto, correios eletrônicos, contas de Facebook, Whatsapp, Twitter etc. Com o auge do consumo on line, a vigilância comercial também se desenvolveu enormemente, criando um gigantesco mercado de dados pessoais que se converteram em mercadorias. Em cada conexão a uma pagina da rede, os cookies registram o conjunto das buscas realizadas e permitem estabelecer nosso perfil de consumidor. Em menos de vinte milésimos de segundo, a página visitada vende aos possíveis anunciantes a informação que nos diz respeito, revelada pelos cookies. Apenas alguns milésimos de segundo mais tarde, a publicidade que supostamente nos atinge com maior impacto aparece em nossa tela.

De alguma maneira, a vigilância se “privatizou” e “democratizou”. Já não é um assunto reservado aos serviços estatais de informação. Mas ao mesmo tempo, a capacidade de os Estados em matéria de espionagem maciça cresceu de modo exponencial. Isso também se deve à estreita cumplicidade com as grandes empresas privadas que dominam as indústrias de informática e de telecomunicações. Julian Assange afirma: “As novas organizações como Google, Apple, Amazon e Facebook armaram estreitos vínculos com o aparato de Estado em Washington, em particular com os responsáveis por Assuntos Exteriores” (3). Este complexo da segurança e do digital – Estado + aparato militar de segurança + indústrias gigantes da Web – constitui um verdadeiro império da vigilância cujo objetivo, muito concreto e muito claro, é colocar a Internet (toda a Internet e todos os internautas) sob escuta. Para controlar a sociedade.

Para as gerações de menos de quarenta anos, a rede é o ecossistema em que poliram sua mente, sua curiosidade, seus gostos e sua personalidade. De seu ponto de vista, Internet não é só uma ferramenta autônoma, utilizada para tarefas concretas. É uma imensa esfera intelectual onde se aprende a explorar livremente todos os saberes. Uma ágora sem limites, um fórum onde as pessoas se reúnem, dialogam, trocam e adquirem, frequentemente de modo compartilhado, cultura, conhecimentos e valores.

A Internet representa, aos olhos destas novas gerações, o que era para os mais velhos, de modo simultâneo, a escola e a biblioteca, a arte e a enciclopedia, a pólis e o templo, o mercado e a cooperativa, o estádio e o palco, a viagem e os jogos, o circo e o bordel… É tão fabuloso que “o indivíduo, em seu prazer por evoluir num universo tecnológico, não se preocupa em saber, e menos ainda em compreender, que as máquinas gerenciam seu dia a dia. Que cada um de seus atos e gestos é gravado, filtrado, analisado e, eventualmente, vigiado. Que, longe de libertá-lo de seus obstáculos físicos, a informática da comunicação constitui a ferramenta de vigilância e de controle mais incrível que o ser humano jamais pode criar” (4).

Essa intenção de controle total representa um perigo inédito para sociedades democráticas: “Permitir a vigilância da Internet – afirma Grenn Greenwald, o jornalista norte-americano que defundiu as revelações de Edward Snowden – é o mesmo que submeter a um controle estatal completo praticamente todas as formas de interação humana, inclusive o pensamento propriamente dito” (5).

Essa é a grande diferença em relação aos sistemas de vigilância que existiam antes. Sabemos, desde Michel Foucault, que a vigilância ocupa uma posição central na organização das sociedades modernas. Estas são “sociedades disciplinadoras”, onde o poder, por meio de técnicas e de estratégias complexas de vigilância, busca exercer o maior controle social possível (6).

Esta vontade por parte do Estado, de saber tudo sobre os cidadãos, está legitimada politicamente pela promessa de maior eficácia na administração burocrática da sociedade. O Estado afirma que será mais competitivo e, portanto, servirá melhor os cidadãos se os conhecer da forma mais profunda possível. Ao ter se tornado cada vez mais invasiva, a intrusão do Estado terminou provocando, já faz tempo, rejeição crescente entre os cidadãos que apreciam a proteção da vida privada. Desde 1835, Alexis de Tocqueville já assinalava que as democracias modernas de massa produzem cidadãos privados, cuja principal preocupação é a proteção de seus direitos. E que isso faz com que sejam particularmente exigentes e hostis às pretensões intrusivas e abusivas do Estado (7).

Esta tradição prolonga-se atualmente na figura dos “lançadores de alertas”, como Julian Assange e Edward Snowden, perseguidos ferozmente pelos Estados Unidos. Em sua defesa, Noam Chomsky afirma: “Para esses ‘lançadores de alertas’, sua luta por uma informação livre e transparente é uma luta quase natural. Terão êxito? Depende de nós. Snowden, Assange e outros agem na qualidade de cidadãos. Estão ajudando o público a descobrir o que fazem seus próprios governos. Existe acaso uma tarefa mais nobre para um cidadão livre? Mas são castigados severamente. Se Washington pudesse colocar as mãos neles, seria pior ainda. Nos Estados Unidos existe uma lei de espionagem que data do Primeira Guerra Mundial; Obama a tem usado para evitar que a informação divulgada por Assange e Snowden chegue ao público. O governo vai tentar de tudo, até mesmo o indizível, para proteger-se de seu ‘inimigo principal’. E o ‘inimigo principal’ de qualquer governo é o seu próprio povo” (8).

Na era da Internet, compartilhamos nossos pensamentos mais pessoais e íntimos, tanto profissionais como emocionais. Quando o Estado, com ajuda de tecnologias superpoderosas, decide escanear nosso uso da rede, não somente rebaixa suas funções como profana nossa intimidade, descarna literalmente nosso espírito e saqueia o refúgio da nossa vida privada.

Sem saber, fomos reduzidos, aos olhos dos novos “Estados de vigilância”, em clones do herói do filme “O Show de Truman” (9), expostos ao olhar de milhares de câmaras e à escuta de milhares de microfones que expõem nossa vida privada à curiosidade planetárias dos serviços de informação.

A esse respeito, Vince Cerf, um dos inventores da web, considera que “na época das tecnologias digitais modernas, a vida privada é uma anomalía…” (10). Leonard Kleinroc, um dos pioneiros da Internet, é ainda mais pessimista: “Basicamente – considera –, nossa vida privada acabou e é impossível recuperá-la” (11).

Por um lado, muitos cidadãos se resignam, como se o fim do direito ao anonimato fosse uma fatalidade de época. Por outro, esta preocupação de defender nossa vida privada pode parecer reacionária ou “suspeita”: só os que têm algo a esconder tentariam esquivar-se à vigilância do Estado. Este discurso – “Dá-me um pouco de tua liberdade, e a devolvo centuplicada em garantia de segurança” – é uma cilada. A segurança total não existe, nem pode existir. No entanto, a “vigilância total” converteu-se numa realidade indiscutível.

Contra a cilada da segurança, cantilena de todos os poderes, recordemos a lúcida advertência lançada por Benjamin Franklin, um dos autores da Constituição norte-americana: “Um povo disposto a sacrificar um pouco de liberdade por um pouco de segurança não merece nem a primeira nem a segunda. E acaba perdendo as duas”. É uma sentença de atualidade perfeita, e que deve nos encorajar a defender o direito à vida privada. Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista e primeiro pensador a “descobrir” a intimidade, deu o exemplo. Ele foi, também, o primeiro a se rebelar contra a sociedade de seu tempo e contra a sua vontade inquisidora de querer controlar a consciência dos indivíduos.

“O fim da vida privada seria uma autêntica calamidade existencial”, sublinhou igualmente a filósofa contemporânea Hanna Arendt em seu livro “A condição humana” (12). Com formidável clarividência, sua obra aponta os perigos, para a democracia, de uma sociedade na qual a distinção entre a vida privada e a vida pública estaria estabelecida de forma insuficiente, o que, segundo Arendt, significaria o fim do homem livre. E arrastaria nossas sociedades, de maneira implacável, para novas formas de totalitarismo.

Notas

(1) Katrina van den Heuvel et Stephen F. Cohen, “Edward Snowden: A ‘Nation’ Interview”, The Nation, Nova York, 28 de outubro de 2014.

(2) A Conversação, 1973. Direção: Francis F. Coppola. Intérpretes: Gene Hackman, John Cazale, Cindy Williams, Harrison Ford, Robert Duvall. Palma de Ouro 1974 no Festival de Cannes.

(3) Ignacio Ramonet, “Entrevista a Julian Assange: ‘Google nos espia e informa ao Governo dos Estados Unidos’”, Le Monde diplomatique em espanhol, dezembro de 2014.

(4) Jean Guisnel, em seu prefácio do livro de Reg Whitaker, Tous fliqués. La vie privée sous surveillance, Denoël, París, 2001

(5) Glenn Greenwald, Sem lugar para esconder, Edward Snowden, a NSA, e a espionagem do governo americano, Editora Primeira Pessoa, 2014.

(6) Michel Foucault, Vigiar e punir, Editora Vozes, Petrópolis, 1987

(7) Alexis de Tocqueville, A democracia na América, Martins Fontes, 2005.

(8) Ignacio Ramonet, “Entrevista com Noam Chomsky: Contra o império da vigilância”, Le Monde diplomatique en español, abril de 2015.

(9) O Show de Truman (The Truman Show) (1998). Direção: Peter Weir. Intérpretes: Jim Carrey, Ed Harris.

(10) Marianne, París, 10 de abril de 2015.

(11) El País, Madrid, 13 de janeiro de 2015.

(12) Hanna Arendt, A condição humana, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2007.

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