Contra o cinema de autor?

Em crise, a revista “Cahiers du Cinéma”, criadora da política dos autores, ataca o pensamento autoral… dos outros

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Em crise, a revista Cahiers du Cinéma, criadora da política dos autores, ataca o pensamento autoral… dos outros

Por Bruno Carmelo, do Discurso-Imagem

As coisas não andam bem na revista de cinema francesa Cahiers du Cinéma. Desde os anos 1950, ela adquiriu o estatuto de uma das revistas de crítica mais influentes no mundo, por ter criado e defendido com unhas e dentes a “política dos autores”, conceito de acordo com o qual o papel dos críticos não é de defender obras, mas autores-criadores; aplicando a noção de uma qualidade contínua e perene. De acordo com este raciocínio, um bom diretor (ou melhor, “autor”) faria sempre bons filmes, enquanto os diretores ruins jamais melhorariam suas produções. Aos diversos detratores que acusavam a revista de julgar os filmes antes mesmo de vê-los, baseando-se apenas na figura do autor, os críticos respondiam que esta atitude era uma posição política que permitiria aos diretores apreciados de sempre terem uma visibilidade crítica, apesar das flutuações do mercado e do público.

Se esta primeira política dos autores constituía uma relação crítico-diretor baseada na fidelidade sem questionamentos, o pensamento autoral mudou bastante desde então, mesmo dentro da própria revista. As gerações de críticos se sucederam: Serge Daney tentou impor uma postura mais analítica, Charles Tesson abriu a questão autoral aos filmes de animação, Alain Bergala criou a ferramenta retórica dos “erros preciosos”, que permitiam defender que “mesmo os piores filmes dos grandes autores são melhores que os bons filmes de artesãos quaisquer”, Serge Toubiana restaurou uma certa nostalgia dos filmes anteriores à Segunda Guerra Mundial. A noção de política foi desaparecendo quase completamente, sobrou a apreciação dos autores, e uma fidelidade, justamente, acrítica a certos diretores.

Entretanto, a realidade da Cahiers du Cinéma hoje em dia é outra. A revista, bastante cara a publicar, começou a perder leitores. Alguns anos atrás, em falência, ela foi vendida à Taschen, que impôs uma mudança gráfica significativa: mais imagens, menos texto. A Cahiers, antes muito influente no prestigioso Festival de Cannes, tem uma representação mínima diante da eterna rival Positif, que controla o prêmio da Semana da Crítica, o novo fórum do cinema parisiense e o maior sindicato de crítica de cinema francês. Esta última revista é inclusive mais rentável, com suas páginas em preto e branco e seus textos mais desenvolvidos. A influência cultural e crítica da Cahiers du Cinéma é cada vez menor.

O retorno à autoria extrema

A solução foi a adoção de uma nova postura, radical. O novo e jovem editor-chefe decidiu investir justamente no pensamento autoral extremo que havia constituído os dias mais férteis da revista. As capas se sucederam: “A eterna juventude de Alain Resnais”, “Coppola: retorno ao topo”… Dos vinte à trinta filmes criticados em cada edição, apenas três ou quatro recebiam uma nota acima da média. A crise econômica e de influência implicou também um rigor na avaliação: para que os filmes bons pareçam ainda melhores, é preciso que eles estejam lado a lado com produções muito ruins. A bipolaridade foi uma consequência lógica: ou o filme é excelente, ou ele é péssimo. A melhor defesa é o ataque…

Mas esta atitude não necessariamente trouxe um bom resultado. Quando antigamente a distinção da Cahiers du Cinéma implicava a criação de um novo estatuto social (porque as outras tentavam imitá-la, o que mostrava o quão interessante era “ser como a Cahiers”), agora esta forma de crítica autoral e radical está criando um isolamento profundo da revista. O grupo se separa do resto, mas sem conquistar novos seguidores. A marginalização perde todo o seu prestígio social.

As consequências foram logo percebidas nas próprias páginas da revista. Uma primeira grande surpresa veio com a estreia de A Turin Horse, do húngaro Béla Tarr, nos cinemas franceses. Enquanto a crítica foi quase unânime a dizer que se tratava de uma obra-prima, a Cahiers du Cinéma foi a única a atribuir “uma estrela” ao filme – a pior nota possível. De acordo com estes críticos, o fato de que muitos consideravam o filme excelente seria uma “estratégia de falsificação” do cinema e da autoria. Com este argumento, não somente cria-se inimigos, mas instaura-se a teoria do complô: fujam, caros leitores, estão todos tentando te enganar.

O gosto amargo do autor alheio

A situação tornou-se mais flagrante com outra estreia, Le Havre, dirigida por Aki Kaurismaki. Novamente, unanimidade crítica, mas a pior nota possível da Cahiers. O filme ganhou inclusive o prêmio de melhor obra francesa do ano segundo os críticos – outra premiação na qual a influência da Cahiers du Cinéma tornou-se ínfima. Desta vez, pior do que enganadores, todos os outros críticos foram atacados por… seu pensamento autoral! “Qual é a diferença entre este filme e Amélie Poulain, por exemplo? Quase nenhuma. A não ser a imunidade de autor que é dada a Kaurismaki, que lhe permite passar ileso por entre as gotas.” Cúmulo da ironia, algo que jamais se poderia produzir uma década atrás: a Cahiers du Cinéma ataca não apenas os autores dos outros, mas a “imunidade do autor”, o privilégio da apreciação constante, ou seja, um elemento criado por eles mesmos, e defendido pela própria revista. A criatura virou-se contra o criador.

No meio desta pane ideológica e crítica, sai um livro, publicado por um redator da revista e pela editora da Cahiers, intitulado “Clint Fucking Eastwood”, sobre este que sempre foi um dos autores mais apreciados historicamente pelo grupo. O livro tenta conciliar duas ideias contraditórias: por um lado dizendo que ele é tão autor que seria mesmo autor dos filmes nos quais apenas atuava (ou seja, uma forma de pensamento autoral extremo e retórico, porque não aplicável aos outros atores), por outro dizendo que ele sempre beneficiou da tal “imunidade do autor”, mas que no caso dele, seria justificado. Crise e incoerência: “a política dos autores é boa para nós, mas não para os outros; ela implica excessos, mas não no nosso caso”.

Apesar da hipocrisia destes argumentos, pelo menos o leitor pode se felicitar por um aspecto. É interessante ver a Cahiers du Cinéma, que desde os anos 1950 defende o cinema com os mesmos argumentos dos jovens fervorosos de antigamente (que se chamavam Truffaut, Godard, Rohmer etc.), finalmente perceber os efeitos perversos da política dos autores: ela só funciona para as “instâncias legitimadoras do poder”, como diria Bourdieu. E o poder de legitimação da Cahiers du Cinéma é cada vez menor.

Presa na armadilha de sua própria retórica, esta revista tida como “entidade cultural” é obrigada a reconhecer, com a cólera típica aos marginais, que a obviedade do talento do autor é um argumento que só serve aos críticos poderosos, como instrumento de ampliação da sua influência. O argumento é portanto cíclico: o crítico valoriza o autor que acaba por valorizar o próprio crítico, que foi capaz de reconhecer tal talento. Esta forma de pensamento, que sempre serviu mais aos críticos do que aos diretores-autores, revela seu perverso mecanismo de funcionamento, atacando-se à sua mãe e criadora e ampliando o seu declínio.

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Um comentario para "Contra o cinema de autor?"

  1. Raul Arthuso disse:

    Bruno, duas coisas simples:
    1. O fim do seu texto é ótimo, pois parece essa a questão, mas acho que você gasta muito tempo demonstrando o ponto sem nó da Cahiers e se atém pouco a isso que é o mais interessante (a relação de poder crítica-autor e o circulo vicioso que sai disso).
    2. Quem comprou a Cahiers foi a Phaidon Press e não a Taschen.
    Outra coisa para o contexto da revista: essa decadência de influência já começa com o Frodon, ex-editor, quando a revista parecia um pouco xiita, mas sem tocar em questões (algo que o Délorme tenta atualmente). Hoje o problema é de outra ordem: a revista está sequelada, meio esquizofrenica, atirando pra todo lado para conseguir leitores e influência.
    Um dado que talvez seja menos sensível nessa perda de influência é a própria perda de influência da língua francesa no meio intelectual depois dos anos 80 em favor do inglês. Por exemplo: meus tios mais velhos, pais e avôs de amigos meus estudaram francês no colégio. Hoje o negócio é inglês e ponto (não só no Brasil). O francês era a língua da arte; hoje parece ser o inglês.

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