Como Gaza resistiu ao massacre

Reportagem pouco antes da trégua. Bombardeios, mortes e desabastecimento não abalaram dignidade de população instruída, criativa e acolhedora

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Gaza comemora (em 26/8) fim dos ataques de Israel. Paul Mason escreve: “Para o mundo, esta sociedade tornou-se sinônimo de desespero e impossibilidade. Mas ninguém combinou isso com os moradores. Encontrei-os cheios de esperança.”

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Por Paul Mason, no The Guardian | Tradução: Inês Castilho

Palestinos e Israelenses acabam de anunciar (26/8) uma trégua por tempo indefinido em Gaza. A decisão encerra os bombardeios mantidos durante cinquenta dias por Telaviv e está sendo celebrada intensamente pela população que deles foi vítima (veja foto). Como foi possível frear a ofensiva? Que consequências ela deixa? De que modo reconstruir um território vinte vezes menor que o município de São Paulo, onde estão cercadas, em condições desumanas, 1,8 milhões de pessoas?

Tenho reportado de Gaza continuamente. Em meio à torrente de civis mortos e feridos que passam por mim, transportados em carrinhos de mão, as pessoas que gesticulam freneticamente na minha cara e as noites passadas em uma cidade às escuras, sob bombardeio, cheguei a uma conclusão que não esperava: Gaza “funciona”.

Quero dizer que, se lhe fossem dados os recursos, conexões com o mundo exterior e tempo, esta minúscula entidade política poderia funcionar normalmente. Com sua areia macia, céu e mar azuis, poderia até mesmo tornar-se um destino turístico. Já tem um grupo enorme de gente treinada e instruída – infelizmente, porém, a maioria dos seus especialistas são cirurgiões de trauma. Na situação atual, os hotéis ao longo da praia na Cidade de Gaza mantêm-se desertos. Seus garçons, envergonhados, lutam para fazer café numa chama de fogareiro. Os pescadores do porto avançam em canoas por uns vinte metros, talvez, enquanto as hostilidades continuam, e em barcos a motor a cem metros, durante os esporádicos cessar-fogos.

A vida cotidiana, mesmo para quem tem dinheiro e amigos no Ocidente, está se tornando impossível. Formam-se filas para água, e os postos de gasolina estão vazios. Igualmente inquietante para os jovens e as crianças urbanizadas, a internet é esporádica. Conheci duas mulheres, profissionais formadas: o andar de cima do seu bloco de apartamentos foi demolido por um foguete israelense. Agora, elas também estavam no mundo das filas, falta de higiene, falta de moradia. Ter dinheiro não as isenta disso. A moeda é o shekel, mas a maior preocupação é o ouro. Os palestinos mantêm sua riqueza em ouro e jóias. Cerca de 250 mil pessoas foram desalojadas e deslocadas para escolas lotadas e sujas. Dormir junto com os jumentos dos pobres não é mais chocante, para quem possui ouro, do que ficar à espera da explosão das granadas.

Gaza funciona por causa do povo de Gaza. Desde que o Hamas passou a governar, em 2007, o território vem sendo administrado por um grupo designado de terrorista, e sob a lei islâmica. Na impossibilidade de reconstruir o local após a invasão israelense de 2008-9, eles construíram túneis – ninguém sabe de que comprimento – onde o braço militar do Hamas, as Brigadas Qassam, vivem, armazenam seus foguetes e lutam. Os túneis são também usados para trazer os suprimentos essenciais que foram proibidos durante o cerco a Gaza, que já dura sete anos.

Por isso, durante a maior parte do dia parece, estranhamente, que o Hamas não existe. Nenhuma polícia do grupo está ali para manter a ordem; mulheres sem hijabs movimentam-se livremente, assim como mulheres de véu; médicos que voltaram da Alemanha e do Canadá serram os ossos quebrados de jovens que vivem e podem morrer nesta pequena faixa de terra. E dois terços da população pula e brinca – pois são crianças.

Quando a guerra acabar, nada de bom acontecerá a Gaza – até que o cerco e o bloqueio do território tenham fim De fato, com 40% da área urbana inabitáveis devido à destruição, haverá uma crise humana maciça durante meses. Resolver essa crise não é trabalho apenas para ONGs. A forma como ela será enfrentada vai determinar se Gaza vai sobreviver. A Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que abriu as portas de suas limpas escolas azul-e-branco a uma explosão caótica e suja de humanidade deslocada, diz que Gaza está “à beira do precipício”. O hospital em que estive há pouco tem 95 feridos a bala ou explosivos para tratar, e seis leitos de terapia intensiva.

A lógica diz que ou vem ajuda em escala sem precedentes para o interior do território, ou as pessoas vão para o exterior – não amanhã, mas à medida em que as semanas passem sem saneamento ou energia. Os palestinos temem que uma crise humanitária seja usada para expulsá-los permanentemente da terra, capturada pelos israelenses.

Estive em países muçulmanos onde há profundo conservadorismo, pouca educação e desconfiança do Ocidente. Este não é o caso. Encontro frequentemente pessoas com alto nível educacional, pessoas que falam inglês; pessoas alegres e amigáveis – o que é incrível, dado o horror trazido pela noite. O mundo não é tão povoado com pessoas educadas e cheias de recursos para que possa desperdiçar as vidas de 1,8 milhões de palestinos atrás das grades de ferro e paredes de concreto que delimitam Gaza. Perdi a conta de quantas vezes já conheci um cara jovem, de 18 ou 19 anos, orgulhoso de não ser um combatente, um militante ou um ingênuo artista de rua. Quando você pergunta qual é o seu trabalho, a resposta mais comum é “carpinteiro”. Trabalhar com madeira – não com metal ou computador – é o máximo que o bloqueio tem permitido, aqui, ao trabalhador manual qualificado.

Em face de tal desesperança, naturalmente muitos tornam-se resignados: “Viver é o mesmo que morrer” é uma frase que se ouve entre homens jovens. É o raciocínio perfeito para a organização militar niilista a que alguns decidem aderir. Mas seu oposto é a desenvoltura que reestrutura uma casa depois que sua frente foi arrancada; que senta num tapete fazendo pão numa panela quente depois de ter a casa reduzida a pó.

Há apenas duas rotas econômicas para a vida voltar a fluir em Gaza e, dada a amargura deste conflito, a rota de Israel não será a principal. O Egito detém a chave para a integração econômica de Gaza com a economia global. Abra-se a passagem de Rafah, e desaparece a necessidade dos túneis. Para o mundo, esta sociedade desamparada, empobrecida e totalmente violentada tornou-se sinônimo de desespero e impossibilidade. Mas ninguém combinou isso com os moradores de Gaza. Encontrei-os cheios de esperança.

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