Cinema Novo, resgate criador

Filme de Erik Rocha revê o grande movimento cinematográfico brasileiro dos anos 1960. Tratado sem reverência, este surge não como peça de museu — mas algo vivo, capaz de transformar ainda hoje

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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Se o festival de Brasília sempre foi o mais quente do cinema brasileiro, nesta 49ª edição ele ferve, tanto pela contundência da seleção de filmes como pelas conturbadas circunstâncias políticas que o cercam por todos os lados.

Não farei aqui o relato jornalístico dos acontecimentos – que o leitor poderá acompanhar pela imprensa diária e pelas redes sociais – e nem entrarei no mérito dos longas-metragens em competição, por ter participado de sua seleção. Vou falar de um filme (o documentário Cinema novo, de Eryk Rocha, exibido hors-concours na abertura do festival) e de uma sessão (do também documentário Martírio, de Vincent Carelli, apresentado na noite de quinta-feira, dia 22).

Cinema Novo

Premiado como melhor documentário no festival de Cannes deste ano, Cinema novo é, para dizer de um modo cru e redutor, uma colagem de trechos de filmes e depoimentos de época dos principais diretores do movimento cinematográfico que agitou o país nos anos 1960. Seu realizador, Eryk Rocha, como se sabe, é filho do principal líder do grupo cinemanovista, Glauber Rocha. O produtor Diogo Dahl, por sua vez, é filho biológico do protocinemanovista Nelson Pereira dos Santos e da atriz Ana Maria Magalhães e foi registrado e criado como filho pelo cineasta Gustavo Dahl, uma espécie de diplomata do movimento.

Além de facilitar o acesso a acervos e pessoas, essas circunstâncias biográficas propiciaram a construção de um retrato do cinema novo “a partir de dentro”, filtrado e matizado porém pela ótica da geração seguinte. O resultado é extraordinário, uma leitura do movimento que, em vez de transformá-lo num monumento (e portanto paralisá-lo no passado), busca captar o que ainda há de vivo e transformador naqueles filmes e nas ideias que eles colocaram em circulação.

A escolha e a organização dos fragmentos, mais do que divisões temáticas, parece ter obedecido a valores plásticos e rítmicos, de maneira a construir não propriamente uma tapeçaria, mas uma pulsação, um fluxo, uma energia em movimento.

O filme abre com a sequência final de Deus e o diabo na terra do sol (Glauber, 1964): os protagonistas Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) correndo pelo sertão. Encadeiam-se então imagens de personagens correndo ou andando em outros filmes da época (Flavio Migliaccio em Cinco vezes favela, Luiza Maranhão em Barravento, Antonio Pitanga em A grande cidade, os meninos de Vidas secas etc.): para a direita, para a esquerda, em direção à câmera, afastando-se da câmera. Como observou o crítico Jean-Claude Bernardet no debate sobre o documentário, esse procedimento, repetido ao longo da narrativa, dá a Cinema novo uma espacialidade própria, diferente daquela de cada filme específico citado.

Potência do cinema

A sensação de fluxo irresistível é acentuada pela autonomia da trilha sonora em relação às imagens, com a música ou os ruídos de um filme “vazando” para os outros, o que resulta num processo contínuo de revitalização e ressignificação do material original.

Uma particularidade que chamou a atenção de muita gente foi a incorporação de trechos de filmes de diretores que não apenas não faziam parte do grupo como eram rejeitados por ele, como Luís Sergio Person (São Paulo S/A) e Walter Hugo Khouri (O corpo ardente). Eryk Rocha explicou a opção dizendo que quis agregar todas as obras, ou trechos de obras, que traduzissem o espírito inquieto, transformador (“épico”, no dizer do montador Renato Vallone), do movimento.

É como se, passados cinquenta anos, importassem menos as arestas, diatribes e ressentimentos do grupo cinemanovista do que a pulsão de descoberta e transformação que animava inúmeros filmes do período. Uma visão ampliada e generosa do movimento, portanto, irmanando membros da turma a outsiders e até desafetos. Eryk Rocha chegou a dizer que só não incluiu obras de Rogério Sganzerla e Julio Bressane, expoentes da geração “marginal” que rompeu com o cinema novo, porque estes não gostariam de ser incluídos.

“‘Cinema novo’ são todos os filmes bons feitos de 1960 em diante”, costumava dizer o ecumênico Gustavo Dahl. Talvez se possa dizer que, na visão de Eryk Rocha e Diogo Dahl, “cinema novo” são todos os filmes vivos realizados desde então, ou até mesmo antes (Mario Peixoto, Humberto Mauro).

O documentário estreia nos cinemas em 3 de novembro, e certamente voltaremos a ele. Agora vamos falar da histórica sessão de Martírio no Cine Brasília.

Impotência do cinema

Se o filme de Eryk Rocha dá a ver um desejo contagiante de cinema como força de transformação humana e social, a exibição do documentário de Vincent Carelli mostrou alguns limites e paradoxos desse desejo. Vou tentar explicar.

A partir da luta dos Guarani-Kaiowá pela retomada de suas aldeias e territórios sagrados, Martírio constrói, ao longo de quase três horas, talvez o mais pungente retrato da tragédia indígena brasileira, ao lado de Serras da desordem (2006), de Andrea Tonacci. Este último é cinematograficamente superior, mas isso não vem ao caso aqui.

Organizando materiais captados desde as primeiras décadas do século XX, além de registros feitos pelo próprio Carelli nos últimos trinta anos e reportagens televisivas, o filme traça um itinerário de extermínio físico e cultural dos índios brasileiros (e não apenas dos Guarani-Kaiowá) por conta de um desenvolvimento etnocêntrico e predatório.

No superlotado Cine Brasília, o público participou ativamente da sessão: aplaudiu, vaiou e xingou em cena aberta e, no final, ovacionou o filme por vários minutos. Essa catarse coletiva não esconde uma contradição angustiante. Os momentos que mais suscitaram as reações ruidosas da plateia foram as discussões sobre demarcação de terras no Congresso Nacional e um apavorante “Leilão da Resistência” promovido por ruralistas e políticos ligados ao agronegócio em Mato Grosso do Sul. Os discursos truculentos e retrógrados mais vaiados pelo público do cinema eram justamente os mais aplaudidos na tela pelos parlamentares e representantes ruralistas.

O divórcio entre o mundo do cinema e o mundo da política institucional, que se acentuou nos últimos tempos com os imbróglios envolvendo o Ministério da Cultura, a Cinemateca Brasileira, a escolha do representante brasileiro no Oscar etc., parece ter atingido um ponto crítico no atual festival de Brasília. O “Fora Temer” bradado no palco e na plateia do Cine Brasília a cada sessão é apenas um detalhe, a ponta do iceberg, a face visível de uma cisão mais profunda.

Há nos filmes exibidos, nos debates e nas reações do público uma energia de transformação que parece não encontrar eco nem acolhida nos edifícios oficiais bem próximos dali. Desembocando em angústia ou em catarse imediata, essa energia frustrada talvez fale muito sobre as limitações do cinema em seu afã de mudar o mundo. O sentimento generalizado é de resistência às trevas ao redor. “Todas as canções inutilmente; todas as canções eternamente”, canta Milton Nascimento em “Minas Gerais”. A ideia é essa.

 

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