Chéri à Paris: A espreguiçadeira do Migué

Decidiam o destino da cadeira de maneira tão italiana que Fellini, se passasse por ali, teria conteúdo para uma trilogia

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Decidiam o destino da cadeira de uma maneira tão italiana que Fellini, se passasse por ali, teria conteúdo para uma trilogia

Por Daniel Cariello

Uma amiga da minha mãe resolveu gentilmente colaborar com a minha reinstalação no Brasil e me deu uma geladeira praticamente nova que ela não usava mais. Vamos chamá-la de Babusha (a amiga, não a geladeira). Pra carregar o treco, convoquei um amigo meu, dono de uma mini-camionete e de uma massa muscular consequente. Fomos lá.

— Daniel, a geladeira está ali, embalada em papel bolha desde a minha mudança para essa casa. Está em perfeitas condições. Aproveita e leva também aquela espreguiçadeira dobrável que está atrás da porta, ninguém aqui usa mesmo.

Cheguei perto do trambolho (a geladeira, não a amiga) e fiquei olhando pra ela desanimado, imaginando como transportar aquilo até o carro. Nisso, meu amigo pediu licença, abraçou-a como um urso e a levantou sozinho. Apavorada, Babusha chamou os filhos para ajudar.

– Saul! Migué! O Daniel tá aqui e veio buscar a geladeira. Desçam rápido pra dar um alô pra ele e ajudar a transportá-la.

Pra não pagar o mico de estar com as mãos abanando quando os filhos dela chegassem, enquanto meu amigo fazia o trabalho pesado, fui levar a espreguiçadeira para a caçamba do veículo. Saul desceu primeiro e me cumprimentou.

— Olá, como vai?

— Eu vou indo, e você?

— Tudo bem.

Logo em seguida veio o Migué. Ele me viu de longe e abriu um sorriso, que foi se transformando em cara de pânico à medida em que chegava mais perto. Não disse nem “oi”. Virou pra mãe e protestou.

— Mas você tá dando a minha espreguiçadeira pro Daniel?

— Tô. Você não usa.

— Uso. É a minha cadeira preferida.

Com a espreguiçadeira na mão, senti-me um ladrão pego em flagrante. Sem graça, fiz menção de devolvê-la, no que fui repreendido por Babusha.

— Nada disso, Daniel. Ela é sua. Está encostada há um tempão, ocupando espaço. Você me faz um favor levando daqui.

Aliviado, acomodei-a na caçamba. Migué protestou.

— Nada disso. Eu gosto dela. Quero de volta.

Tirei novamente do carro. Saul, que até então assistia calado, interveio.

— Leva, Daniel. Isso só acumula poeira aqui em casa.

Devolvi-a outra vez à caminhonete. E o Migué continuou reclamando.

— É minha poltrona favorita pra ver futebol. Ela fica.

— Ela vai, disse Babusha.

— Não vai não.

— Ah, se vai, completou Saul.

— De jeito nenhum.

— Vai.

Os três decidiam o destino da cadeira de uma maneira tão italiana que paramos pra assistir, eu e o meu amigo, que continuava abraçado à geladeira. Se Fellini passasse por ali naquele momento, teria conteúdo para uma trilogia.

Por fim, depois de longos minutos e com a discussão longe de terminar, tomei uma decisão sobre a espreguiçadeira do Migué. Mas não vou contar antes de segunda-feira, na area de comentários desse texto. Antes disso, gostaria de saber: e vocês, o que fariam?

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6 comentários para "Chéri à Paris: A espreguiçadeira do Migué"

  1. liliane disse:

    Mãe italiana tem dessas questões simbióticas eternas. O Migué entende o que senti quando vi minhas calças jeans mais velhas e deliciosas virarem tapete da cozinha! Querio, não há nada a fazer. Ao Migué o que é do Migué. Caso contrário, filho italiano traumatizado dá um trabalhão.

  2. Val disse:

    eu teria devolvido para o Migué, que desagradável dar o que é do menino, sem o consentimento dele, tem afeto na relação com a tal, o futebol não será o mesmo sem ela, tenho uma igual e adoro.

  3. Marcelo disse:

    Coloca o teu cachorro (se tiver) nela. 🙂

  4. Chéri disse:

    Gostei das sugestões e do poeminha da Eunice.
    Mas a verdade é menos poética. Eu peguei a cadeira e convidei o Migué a ver o próximo jogo do flamengo lá em casa. Só não sei ainda se vou deixá-lo sentar na espreguiçadeira ou se vou arrumar uma almofada pra ele. Veremos…

  5. Eunice disse:

    Devolveria com a desculpa de que voltaria para buscar.
    Alguns objetos são tão pessoais, que não era uma questão de usar, mas talvez amar.
    Eu amo esta cadeira que me afaga
    dia a dia no meu tormento
    de fazer lições, trabalhar
    É ali meu especial momento
    Nem é cadeira mas amiga,
    já há tanto tempo ali
    que seu conforto é um abraço
    seu regaço suave meu alento.
    E me sento no seu colo todo dia
    Minha amiga! Que fada!
    Em seu vestido listado.

  6. Marcelo disse:

    Eu teria armado a espreguiçadeira na calçada para avaliar melhor a cena.

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