Castells: a Internet ameaçada

Como a rede, promessa de comunicação livre, pode se converter no contrário: mecanismo de controle social em massa e de redução dos cidadãos a mercadorias

Castells: "EUA são centro do sistema de vigilância, mas documentos de Snowden mostram cooperação ativa com  agências do Reino Unido, Alemanha, França e qualquer país, com exceção parcial da Rússia e China

Castells: “EUA são centro da vigilância, mas documentos de Snowden mostram cooperação com agências do Reino Unido, Alemanha, França e qualquer país, com exceção parcial da Rússia e China

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Como a rede, promessa de comunicação livre e sem intermediários, pode se converter no contrário: mecanismo de controle social em massa e de redução dos cidadãos a mercadorias

Por Manuel Castells | Tradução: Inês Castilho

Noventa e sete por cento da informação do planeta está digitalizada. E a maior parte dessa informação nós é que produzimos, por meio da internet e redes de comunicação sem fio. Ao nos comunicar, transformamos boa parte de nossas vidas em registro digital. E portanto comunicável e acessível via interconexão de arquivos de redes. Com uma identificação individual que se conecta com nossos cartões de crédito, nosso cartão de saúde, nossa conta bancária, nosso histórico pessoal e profissional (incluindo domicílio), nossos computadores (cada um com seu número de código), nosso correio eletrônico (requerido por bancos e empresas de internet), nossa carteira de motorista, o número do registro do carro, as viagens que fazemos, nossos hábitos de consumo (detectados pelas compras com cartão ou pela internet), nossos hábitos de música e leitura, nossa presença nas redes sociais (tais como Facebook, Instagram, YouTube, Flickr ou Twitter e tantos outros), nossas buscas no Google ou Yahoo e um amplo etcetera digital. E tudo isso referido a uma pessoa: você, por exemplo. Supõe-se sem dúvida que as identidades individuais estejam legalmente protegidas e que os dados de cada um sejam privados. Até que deixem de ser. E essas exceções, que na verdade são a regra, referem-se ao relacionamento com as duas instituições centrais em nossa sociedade: o Estado e o Capital.

Nesse mundo digitalizado e conectado, o Estado nos vigia e o Capital nos vende, ou seja, vende nossa vida transformada em dados. Vigiam-nos pelo nosso bem, para proteger-nos do mal. E nos vendem com nossa própria concordância, quando aceitamos cookies e confiamos nos bancos que nos permitem viver de crédito (e, portanto, julgam-se no direito de saber a quem fornecem cartão). Os dois processos, a vigilância eletrônica maciça e a venda de dados pessoais como modelo de negócio, ampliaram-se exponencialmente na última década, pelo efeito da paranoia da segurança, a busca de formas para tornar a internet rentável e o desenvolvimento tecnológico da comunicação digital e do tratamento de dados.

As revelações de Edward Snowden sobre as práticas de espionagem permanente, no mundo inteiro (com escassa proteção judicial ou simplesmente ilegais) expuseram uma sociedade em que nada pode escapar à vigilância do Grande Irmão, nem Angela Merkel. Não foi sempre assim, porque não estávamos digitalizados e não existiam tecnologias suficientemente potentes para obter, relacionar e processar essa imensa massa de informação. A emergência do chamado big data, gigantescas bases de dados em formatos comunicáveis e acessíveis (como o imenso arquivo da Agência Nacional de Segurança dos EUA — NSA — em Bluffdale, Utah) resultou no reforço dos serviços de inteligência depois do bárbaro ataque a Nova York, assim como da cooperação entre grandes empresas tecnológicas e governos, em particular com a NSA (que é parte do Ministério de Defesa dos EUA, mas goza de ampla autonomia).

O diretor da NSA, Michael Hayden, declarou que, para identificar uma agulha num palheiro (o terrorista na comunicação mundial) é necessário controlar todo o palheiro — e é isso que acabou conseguindo, segundo seus critérios, com uma cobertura legal flexível. Ainda que os Estados Unidos sejam o centro do sistema de vigilância, os documentos de Snowden mostram a cooperação ativa com as agências especializadas de vigilância do Reino Unido, da Alemanha, da França e de qualquer país, com exceção parcial da Rússia e da China, salvo em momentos de convergência. Na Espanha, depois da escandalosa revelação de que a NSA havia interceptado 600 milhões de chamadas telefônicas, Snowden apontou que na realidade a CNI havia feito isso por conta da NSA. Seguia a política do ex-primeiro-ministro José Maria Aznar, que deu ao presidente norte-americano George W. Bush permissão ilimitada para espionar na Espanha em troca de material avançado de vigilância. E vigiaram qualquer pessoa que estivesse compartilhando informação.

Mas foram as empresas tecnológicas que desenvolveram as tecnologias de ponta para o Pentágono. E foram empresas telefônicas e de internet que entregaram os dados de seus clientes. Só se zangaram quando souberam que a NSA as espionava sem sua permissão. Facebook, Google e Apple protestaram e encriptaram parte de suas comunicações internas. Porque na realidade essa é uma possível defesa da privacidade: facilitar comunicação encriptada aos usuários. Sem dúvida, não é difundida porque contradiz o modelo de negócio das empresas de internet: a coleta e venda de dados para publicidade focalizada (que constituem 91% dos ganhos do Google).

Ainda que a vigilância sem controle do Estado seja uma ameaça à democracia, a erosão da privacidade provém essencialmente da prática das empresas de comunicação de obter dados de seus clientes, agregá-los e vendê-los. Vendem seus usuários — nós mesmos — em forma de dados. Sem problema legal. Leia a política de privacidade publicada pelo Google: o buscador outorga-se o direito de registrar o nome do usuário, o correio eletrônico, número de telefone, cartão de crédito, hábitos de busca, pedidos de busca, identificação de computadores e telefones, duração de chamadas, localização, usos e dados das aplicações. Fora isso, respeita-se a privacidade. Por isso o Google dispõe de quase um milhão de servidores para processamento de dados.

Como evitar ser vigiado ou vendido? Os criptoanarquistas confiam na tecnologia. Vã esperança, para as pessoas normais. Os advogados, na justiça. Batalha árdua e lenta. Os políticos ficam encantados por saber tudo, com exceção dos seus dados. E o indivíduo? Talvez mudar por si mesmo: não utilize cartões de crédito, comunique-se em cibercafés, ligue de telefones públicos, vá ao cinema e a shows ao invés de baixar filmes ou música. E se isso for muito pesado, venda seus dados ao invés de doá-los — como propõem pequenas empresas que agora proliferam no Vale do Silício…

 

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8 comentários para "Castells: a Internet ameaçada"

  1. Dinio disse:

    Coerente teu raciocínio Eduardo Rocha, principalmente no comparativo “bovino”. Ora se hoje as pessoas deixam de abraçar um amigo ou parente em seu aniversário, para mandar mensagens pelas redes “anti-sociais” é porque assumem a condição de pastar e servir de alimento aos “leões”. Já dizia o grande Gonzaguinha: “- estar com a bunda exposta na janela, pra passar a mão nela! “

  2. Aonde esse texto foi originalmente publicado?

  3. Edgar Rocha disse:

    Como a tese do “controle remoto” da Dilma? Se for isto que você disse, me desculpe, discordo. Você não pode assumir os riscos quando não há alternativas ao que nos é necessário. Se a própria Presidenta foi espionada mostrando a vulnerabilidade das instituições frente a este problema, que dirá o cidadão comum que pode ter seus dados acessados, por exemplo, de alguma página de atendimento ao público, compulsoriamente colocada como única alternativa para recorrer a um serviço prestado pelo Estado. É preciso regulamentar a internet, sim. É preciso criar mecanismos de proteção ao usuário e punir crimes como a invasão de privacidade. Mas, da parte do indivíduo, é preciso buscar alternativas, simplificar, não se deixar seduzir pelas possibilidades oferecidas, nem reduzir-se à condição de mero consumidor neste mundo artificial ao qual tentam nos impor como realidade única. Não é. Muito menos, pode ser considerado irreversível do ponto de vista dos avanços sociais. Esta é a maior falácia de todas. A humanidade não pode ter nos avanços tecnológicos a única baliza para medir seu grau de evolução. Ainda mais numa sociedade tão desigual, com o poder econômico centralizado e instrumentalizador dos benefícios advindos da tecnologia. Estes não chegam a quase ninguém, senão para atingir direitos e coisificar a maioria dos que dele necessitam. Não se pode pensar nos avanços tecnológicos apenas pelo viés comercial, gastando-se tempo, energia, material humano, matéria prima apenas pra se fazer penduricalhos que atendam a necessidades incutidas e não prementes de fato. O que é mais importante? Um novo modelo de Ipod ou a vacina contra o ebola? A criação de um novo jogo interativo ou algum dispositivo capaz de ajudar pessoas com deficiência física? O que deveria ser plenamente acessível e barato e o que deveria ser considerado luxo e perda de tempo? Quem define estas coisas é o mercado e a ele a sociedade serve bovinamente, sem definir prioridades, sem colocá-lo no lugar de instrumento e não de controlador social.

  4. ita disse:

    criptoanarquistas não querem apenas tornar a comunicação sigilosa, eles são anarquistas! Parte do programa é tornar o cyberrespaço uma geografia suficiente e autônoma, um domínio próprio engendrando forças contra o estatismo e o capitalismo.
    A maioria dos usuários são analfabetos, não sabem programação nem criptografia. A luta maior é dar embasamento técnico e tornar cada indivíduo uma potencial fratura no sistema, capaz de produzir conforme suas regras e vontades, pois a voracidade da industria garante que tenhamos hardware necessário.
    vender anúncios foi uma guinada demoníaca feita pela google, passar o dinheiro pela mão da publicidade foi o pior efeito dessa empresa. Antes desse paradigma imaginava-se que as pessoas iria transacionar valores diretamente uns com os outros, seria uma comunicação de dados e de valores. Micropagamento e clowdfounding ainda engatinham.
    quando os estados vão se digitalizar?
    Uma nova topologia emerge de cada brecha, os primeiros a disputar território ainda são os pioneiros de sempre do controle e da manipulação. Porém, como nunca antes foi, a cascata e o efeito que cada unidade pode propagar, cada login com seu processador de bolso, fazem das articulações que mantinham a forma da geração anterior uma cinta pífia prestes a estourar.

  5. silvana dias coelho disse:

    A internet é,em princípio,incontrolável,concorda Edgar Rocha? A cada ferramenta de ‘proteção’ ,surge outra para ultrapassar a barreira!Resta-nos não nos deixar seduzir pela parafernália de de ofertas por um lado,e,por outro,saber que não há privacidade e acessar o que nos interessa,assumindo os riscos!

  6. Edgar Rocha disse:

    Me perdoe o autor, mas o final do texto propõe uma resposta pífia pra um problema hercúleo. Primeiro porque admite ações contrárias ao controle de dados numa escala muito restrita aos mecanismos precários que o próprio sistema oferece. No caso, seria preciso algo mais criativo, não só no sentido de proteger-se individualmente ou reivindicar perante instituições com legitimidade para lidar com assunto (legitimidade em tese, já que todas – judiciário, político e outros – dependem e usufruem do sistema de forma paradigmática). Já o termo “criptoanarquistas” pra mim é novidade, embora, seu uso no texto deixe claro se tratar de algo restrito a um grupo com acessibilidade técnica para proteger-se. Enfim, nada disto é solução. Eu creio mais num processo de atomização social, como indicam as ZAD. A sociedade precisa livrar-se destas amarras e reconstruir uma lógica social a partir de outros valores. Utópico, mas aparentemente possível. Embora distante, tal intento se mostra cada vez mais inadiável. A crise enorme desta estrutura organizada a partir da centralidade do capital e de uma “realpolitik” aderida a tudo que se faz, inclusive o pensar, dá sinais de que estamos numa ladeira sem freios. A dominação da informação é parte integrante deste jogo maldito de coisificação do indivíduo, de apropriação de tudo que se produz por poucos e de controle de Estados e setores permeáveis às ideologias alienantes. Não vejo nenhuma possibilidade de reforma satisfatória no sentido de impedir o uso da informação para fins espúrios dentro deste sistema.
    Ainda creio que o ser humano não tenha se esquecido de coisas capazes de nos tornar diferentes de um peixinho dourado de aquário, cuja forma é moldada ao gosto dos que o aprisionam, submisso aos erros e desapreços de seus senhores.

  7. Luciana disse:

    E como eu faço para vender meus dados?

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