Campo Grande e as crianças invisíveis

Filme de Sandra Kogut expõe desigualdade social brasileira com estética depojada porém perturbadora, na qual o mundo surge um lugar confuso e inóspito

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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Crianças pobres só atraem nossa atenção, e com grande estardalhaço, quando estão envolvidas em tiroteios, assaltos, estupros ou assassinatos. No restante do tempo são invisíveis. É como se não existissem.

Campo Grande, de Sandra Kogut, rompe com essa indiferença passiva ao trazer para diante dos nossos olhos dois desses pequenos seres, os irmãos Ygor (Ygor Manoel), de uns oito anos, e Rayane (Rayane do Amaral), de uns seis. Eles aparecem de surpresa no apartamento de Regina (Carla Ribs), uma mulher de classe média e meia-idade, que não sabe quem são e nem o que fazer com eles.

Não cabe reproduzir aqui a saga de Regina em busca da família dos dois irmãos ou, na falta dela, de um abrigo adequado para eles. O que importa é que, o tempo todo, essas duas criaturas ariscas e lacônicas apresentam-se à personagem (e por extensão a nós, espectadores) como um enigma a ser decifrado. Sua irrupção no apartamento de Regina não apenas desarranja sua vida como também revela a distância entre dois mundos, o abismo vertiginoso entre Copacabana e Campo Grande, bairro da zona oeste carioca que dá título ao filme e de onde os irmãos dizem ter saído.

Na aflição de Regina há um movimento pendular entre o desejo de livrar-se logo do problema e a necessidade de compreender aquelas crianças, de protegê-las de algum modo das durezas do mundo. Entram em jogo também suas próprias carências afetivas de mulher recém-separada e com um relacionamento difícil com a filha (Julia Bernat).

Mundo fragmentário

Resumindo assim, pode-se dar a impressão de um melodrama social corriqueiro, mas o filme não é nada disso. Sua força e sua originalidade estão no seu modo de construção, que preserva e exacerba o caráter fragmentário, truncado, incompleto do espaço físico, bem como da identidade dos personagens e das relações entre eles.

A paisagem urbana que o filme apresenta é de um grande canteiro de obras, com tapumes e guindastes obstruindo parte do quadro, sob o som de motores, serras e bate-estacas. A câmera é colocada no mais das vezes ao nível do olhar das crianças, o que torna tudo mais ameaçador e opressivo. O mundo é um lugar confuso e inóspito, sobretudo para esses pequenos personagens a quem todos olham com desconfiança ou indiferença, quando olham.

A relação tensa e instável entre a adulta Regina e o menino Ygor faz lembrar em alguns momentos Gloria (1980), de John Cassavetes, e sua mal disfarçada versão brasileira, Verônica (2008), de Mauricio Farias. Só que de Campo Grande o crime está ausente, bem como as armas e a violência explícita.

No filme de Sandra Kogut não há maniqueísmo, nem discurso sociológico, nem ênfase declaratória, nem resquício de pieguice. O olhar da diretora é ao mesmo tempo delicado e franco. Equilibra admiravelmente o registro documental, vívido e despojado (graças em grande parte à habilidade do diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo), com a segurança narrativa que faz tudo aos poucos se esclarecer, mas de modo indireto, solicitando a participação ativa do espectador.

As coisas parecem se passar naturalmente diante de uma câmera invisível – não no sentido da invisibilidade “clássica”, em que a decupagem cria uma continuidade macia, sem tropeços, mas sim no de uma captação espontânea e provisória, que colhe os acontecimentos de modo parcial, quando já estão em curso (in media res, para dizer de um modo pernóstico). Não há descuido aqui: os enquadramentos são sempre os mais expressivos e ricos de informação. Mas há uma porosidade que permite que a cidade respire e pulse como os próprios personagens.

Atores mirins

Uma última palavra sobre o elenco. Se Sandra Kogut já demonstrara, em Mutum (2007), uma grande competência para dirigir crianças, aqui esse talento se mostra prodigioso: raras vezes se viu na tela um desempenho tão crível e pungente como o de Ygor e Rayane. Carla Ribas, que até agora teve poucas mas marcantes aparições no cinema (O outro lado da rua, A casa de Alice, O abismo prateado) oferece aqui sua mais tocante e corajosa atuação.

Por fim, cabe lembrar que o filme não estava programado para nenhuma das dez salas de cinema existentes no bairro de Campo Grande, quase todas ocupadas com blockbusters americanos, mas um movimento de moradores conseguiu que fosse exibido num shopping local. Agora outros bairros periféricos do Rio, sobretudo da zona norte, mobilizam-se para ver Campo Grande. Essa pressão para a ampliação do circuito de certa forma é um desdobramento do projeto político, ético e estético do filme, de abertura, inclusão, conhecimento e troca.

Cinema francês

O cinema francês realiza uma bem-vinda invasão das telas brasileiras. Até o próximo dia 22, a sétima edição do Festival Varilux exibe quinze filmes recentes e inéditos em cinquenta cidades do país. No Rio, uma das salas exibidoras é o Instituto Moreira Salles.

Entre os destaques estão Chocolate, de Roschdy Zem, em que Omar Sy (o astro de Intocáveise Samba) encarna o ex-escravo que se tornou o primeiro clown negro da França, no final do século 19; o drama de amor Meu rei, dirigido pela atriz Maïwenn, que deu a Emmanuelle Bercot o prêmio de atriz em Cannes; a animação Abril e o mundo extraordinário, de Christian Desmares e Franck Ekinci, ganhadora do festival de Annecy; e Um belo verão, de Catherine Corsini, história do romance entre duas jovens no início dos anos 1970.

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