Brincar, a revolução que faltava

Um filme sobre medicalização da infância e adormecimento dos afetos. E o potencial transformador do brincar, espaço de criação e coletividade

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Novo olhar sobre “Tarja Branca”, filme que debate medicalização da infância e adormecimento dos afetos. Alternativa questionadora: brincadeiras, para crianças e adultos

Por Lais Fontenelle

“É no brincar, e talvez apenas no brincar,

que a criança e o adulto fruem

sua liberdade de criação” (Winnicott)

Caixa de sapato. Amarelinha. Pipa. Ciranda. Corda. Pião.

As brincadeiras infantis fazem parte de nossa formação social, intelectual e afetiva. Por elas nos socializamos, nos definimos e introjetamos muitos dos hábitos culturais da vida adulta. Todos brincamos na infância e no brincar fomos livres e felizes. Mas será que ainda carregamos essa subjetividade brincante e cultura lúdica vivas dentro de nós? Será que a criança que fomos se orgulharia do adulto em que se transformou?

É sobre o tema do brincar, sua seriedade e importância na vida, não somente de crianças como também de adultos, que trata o documentário Tarja Branca: A revolução que faltava, de Cacau Rhoden, em cartaz em São Paulo, e mais uma belíssima produção da Maria Farinha Filmes (Muito além do peso, de 2012, e Criança, a alma do negócio, de 2008, ambos de Estela Rennel).

O filme emociona e faz pensar. Merece ser visto não somente pelo casamento harmonioso da beleza das imagens de brincadeiras e manifestações da cultura popular com uma deliciosa trilha sonora, que promove uma viagem pelo nosso vasto país ao som de maracatus, cocos, cirandas e sambas. Mas principalmente pela discussão que suscita. O conjunto da obra leva o espectador às lágrimas e à reflexão sobre o humano, a infância, nosso tempo, e criança, cidade e consumo – mais pelo sentimento que pela razão.

A partir da fala de adultos especialistas, vindos de diversas gerações, origens e profissões, o documentário discorre sobre a pluralidade de sentidos contidos no ato de brincar. E como pode ser um remédio aos males da contemporaneidade para o humano adulto relacionar-se com a criança dentro de si.

Para além do brincar, o documentário trata, aos meus olhos, do urgente tema da medicalização da vida e principalmente da infância, do adormecimento de nossos afetos, do embrutecimento da vida urbana e das escolhas que temos feito enquanto sociedade que prefere comprar a brincar.

Ao definir o brincar como ato de afirmação da vida, a educadora e etnomusicóloga baiana Lydia Hortélio (foto) convoca à reflexão urgente que o filme suscita: uma sociedade que não confere ao brincar e à criança seu devido valor, não por acaso é uma sociedade doente. Para ela, num depoimento tão belo quanto duro, a solução para muitos problemas da nossa sociedade está em crianças brincantes.

“Estou pela revolução que falta, esta revolução da criança. É isso que vai nos tirar desse mal-estar, dessa tristeza generalizada que a gente vê nas pessoas, essa falta de alegria que estamos vivendo”, afirma. E vai além: “A gente está vendo a rebeldia das crianças nas escolas, o número de crianças encaminhadas para terapeutas, e a escola sem poder resolver a questão da violência. A violência está aí porque as pessoas foram violentadas na sua capacidade de ser gente”, afirma.

Conforme a especialista a criança prova, no brincar (de todas as formas que pode), que não é para ser assim. Quando consegue, nos encanta e é chamada criativa; quando não a compreendemos, é chamada desatenta, hiperativa. E é aí que mora um grande problema e entramos na tarja preta – remédios utilizados hoje, muitas vezes indiscriminadamente, para domesticar nossas crianças e adormecer seus afetos.

Medicalização da vida

No ano passado a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgou um estudo alarmante. Os dados mostram que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, comercializado no Brasil com o nome de Ritalina e vulgarmente conhecido como “droga da obediência”, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. Vale dizer que é medicamento tarja preta – atua no sistema nervoso central e pode causar dependência física e emocional.

A droga é usada, hoje, muitas vezes, para combater uma patologia controversa, denominada TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, atribuída a crianças que apresentam sintomas como: dificuldade para prestar atenção, ou que passam muito tempo sonhando acordadas, parecem não ouvir quando se fala diretamente com elas; distraem-se facilmente ao fazer tarefas ou brincar; esquecem as coisas; movem-se constantemente ou são incapazes de permanecer sentadas; falam excessivamente; demonstram incapacidade de brincar caladas; atuam e falam sem pensar; têm dificuldade para esperar sua vez; interrompem a conversa de terceiros; demonstram inquietação.

Mas, me pergunto: Não seriam essas características inerentes à infância e sua linguagem universal que é o brincar? Não seria essa a beleza e a poesia de ser criança?

O que mais me preocupou no estudo, porém, foi o fato de que existe uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Poderá isso significar uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta? Estaria a escola, espaço segundo de socialização de nossas crianças, depois da família, sendo agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças consideradas “diferentes”? Existiria um doping legalizado de nossas crianças brincantes? Essas e outras perguntas merecem ser feitas e continuam sem respostas claras.

O tema, sem dúvida, merece reflexão. Será que o início de uma transformação não seria a Tarja Branca – o brincar e a cultura popular – como formas de expressão humana mais dignas e como remédio para o mal-estar generalizado em que vivemos?

Fica a dica. Tarja Branca – a revolução que faltava. Você sem dúvida sairá da sala escura com a cabeça cheia de ideias e o corpo sedento por movimento, música e brincadeira. Não é justo silenciarmos nossas crianças. O brincar, mais do que um passatempo lúdico e alegre, poderia ser uma forma de expressão e de coletividade. Deveria ser o espaço da criação e da elaboração de conflitos. Que tal, então, transformarmos a realidade contemporânea dando o devido tempo, espaço e valor ao brincar na vida de nossas crianças, e nas nossas também?

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3 comentários para "Brincar, a revolução que faltava"

  1. Edileuza Dias Freeira disse:

    muito bom

  2. leonardo disse:

    Excelente artigo Laís!!!
    Sei que o enfoque principal é o filme, ainda não o vi, mas gostaria de contribuir com o pensamento de um psicologo soviético chamado Vygotsky, fundante da T.H.C. (Teoria Histórico Cultural) e que vai de encontro com algo dito no texto. Que as crianças não encontram na escola mais a instituição do ensino e de emaprendizagem. Explico-me. Não encontram por que a escola não dá mais conta de acompanhar a dinâmica e a movimentação da sociedade, pois a juventude que ai hoje esta, não é a mesma juventude de 50, 100 ou 200 anos atrás, mas a escola ainda exatamente a mesma, hierárquica, rigida, focada no professor que seria o detentor de todo o conhecimento e não nas necessidades do aluno, naquilo que ele deseja aprender Dois conceitos fundamentais pra Vygotsky e toda THC: Necessidade e sentido. É preciso entender quais as necessidades e os desejos que o aluno tem, o que mais importa pra ele, o que ele quer realmente aprender e a partir disso correlacionar os conhecimentos que se deseja ensisar. É uma relação dialética, pois tanto aquilo que se deseja ensinar está presenta quanto aquilo que o aluno deseja aprender, e não como fazem as escolar, passar na lousa os conhecimentos e se os alunos não aprenderem a culpa é deles, aqui entra o problema do liberalismo e que não cabe discorrer aqui.
    O outro conceito e o de sentido, que vou explica fazendo uma diferenciação com significado. Sentido é aquilo que atribuímos à algo e significado é aquilo que é socialmente reconhecido. Por exemplo uma vassoura tem o significado de ser um objeto de varrer mas se uma criança pega ela pra brincar de voar, ele está atribuindo um sentido na brincadeira. Por que essa diferenciação? Por que hoje em dia a escola apenas tem o senido de ser a instituição da educação, ou seja se perguntarmos a todos pra quer serve a escola todos responderão que é pra aprender. Mas o que realmente se faz lá é aprender? não o sentido que que tem a escola hoje pros jovens é apenas o de socializar, poucos alunos conseguem atribuir o sentido de estudar ao significado de escola. Isso se dá, entre outras, por que a escola perdeu a capacidade, e se ela já teve isso um dia é questionavel tambem, de junto com os conhecimentos que são transmitidos, transmitir o sentido daquilo, ou seja o de por que aquilo é necessário na vida dos individuos, pra que quer serve, qual a função na sociedade. De outra forma não ouvimos as criancas falaram pra que vou aprender isso se não vou usar na vida? elas não tem ideia de que tudo aquilo que é ensinado tme uma função, a matemática, a física, a geografia, não basta passar o conteúdo mas significá-lo também e importante. Bom acho que me estendi, só gostaria de deixar essa contribuição da escola sovietica da educação que acho fascinante.

  3. Muito bom a análise Lais, acrescentou informações que aprofundam o significado do filme. Principalmente a questão da variação do consumo de medicamento e da escola e homogenização

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