Fábrica de Wellingtons

“Banhamos os nossos adolescentes nas águas podres do que de pior temos em nós, de preconceito, de medo, de completa ausência de generosidade e mesmo de desprezo pela alteridade”

Por Bruno Cava, do Outras PalavrasUniversidade Nômade | Imagem: plano do filmeCaché, de Michael Haneke, 2005
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No começo do ano, escrevi sobre como a cobertura da grande imprensa em horas de comoção costuma ser pusilânime. Reproduz a morte à exaustão, explora a comiseração humana, estimula a cultura do medo. Tudo para fortalecer a agenda de segurança pública: mais vigilância, mais controle, mais punição. Se o luto consiste na esconjuração do que o morto tem de morto, para fazer valer a sua potência de vida, no (eterno) retorno do diferente que persevera em viver; a mídia da impotência fecha o zoom e pergunta aos entrevistados: e agora, como sobreviver na falta, como conviver com a morte?
jornalismo brasileiro agonizou de vez. Cada vez mais se impõe o desejo por um mundo pós-jornais que nos livre desse horror editorial.
Enquanto isso, na surrada narrativa cristã da Queda, fala-se em falência de valores. Como se o Brasil não fosse, desde o ovo, um país profundamente desigual, semicolonial, escravagista, ultra-violento, cuja cordialidade não passa de hipocrisia letrada, da condescendência humanistóide cevada nas mais chiques vernissages de seus salões acadêmicos.
Nunca houve impunidade por aqui, mas excesso de punição. Quem crê no sistema penal para mitigar mazelas sociais desconhece a via dolorosa que vai da ação policial às prisões, passando por autuações, inquéritos, varas criminais, tribunais de justiça, recursos, varas de execução etc. Em suma, pelos mil filtros e desvios e atalhos que tornam o sistema penal uma máquina de triturar pobres e negros. Sem qualquer serventia para uma pauta de esquerda, senão uma idealista, pois está idealizando o poder punitivo. A bem da verdade, dar vivas a um estado mais forte e repressor, sob qualquer pretexto imaginável, não tem como configurar uma posição emancipadora.
Sobrou até para a internet, novamente achincalhada pela velha mídia, desesperada ante a audiência perdida para a cauda longa de sites, blogues e redes sociais. Videogames? Que graça… a periferia do Rio já vive num regime de brutalidade permanente, direta e difusa.
Nenhum morador do subúrbio carioca precisa jogar Counterstrike para vivenciar ao vivo e em cores a guerra. Sim, mais um caso em que negro pobre chacina negros e pobres, ou melhor, negras. Este crime tem cor e sexo. Vale lembrar como, no homicídio passional, a mulher geralmente morre (marido traído mata esposa e esposa traída, a amante).
Wellington é um cidadão como eu e você que, submetido a circunstâncias extremas por um longo período, acabou cometendo um ato extremo. Wellington nunca será santo nem demônio: um personagem demasiado real, tomado de dramas e carências, encharcado do fel da sociedade.
Esquizofrenia não causa assassinato por si mesma. Nem todos levam na boa uma vida de opressão sistemática, vinda de todos os lados, sem rota de fuga.
Menos Febrônio Índio do Brasil ou Pièrre Rivière, mais para Seung-Hui Cho, jovem aliás da mesma idade de Wellington. Em 2007, matou 32 pessoas num instituto tecnológico americano, nos mesmos moldes do massacre em Realengo. Era um imigrante coreano num país atravessado por racismo, que reclamava ser tratado como bicho pelos colegas, — abandonado a tratamentos inúteis por psiquiatras aborrecidos, vagamente interessados no paciente.
Na última década, a ascensão social e racial dos brasileiros acentuou a cultura do preconceito contra o diferente. No momento que pobres e minorias empoderam-se, que se formam mil classes-médias, a postura da reação torna-se mais agressiva, despudorada e odiosa. Ódio contra pobres, mulheres, negros, indígenas, minorias LGBT. Agrava-se um contexto de preconceito e repulsa que alimenta a criançada, — fascista menos por natureza do que por copiar acriticamente a atitude de adultos, por absorver a violência disseminada nas frinchas do nosso sistema político.
Daí a gravidade de discursos inflamados de políticos como Bolsonaro e de religiosos fanáticos (inclusive parlamentares). Por sinal, mesmo sem desejá-lo, o “único deputado de direita do Brasil” serviu de grande referência da pequena, porém sintomática manifestação fascista e neonazista ontem, na Avenida Paulista — tão famosa ultimamente por seus atentados homofóbicos na madrugada.
Esse fenômeno também aparece de modo mais “cordial”, no almoço de domingo ou na roda do bar, quando, diante dos jovens, se discriminam pessoas diferentes, se contam piadas racistas ou contra nordestinos, se fazem comentários machistas, se propagam ideais punitivos e vingativos.
Inadvertidamente ou nem tanto, banhamos os nossos adolescentes nas águas podres do que de pior temos em nós, de preconceito, de medo, de bullying, de sectarismo, de incompreensão, de completa ausência de generosidade e mesmo de desprezo pela alteridade. Quanta burrice, agora querer levantar mais muros, espalhar mais câmeras, colocar mais guardas, punir com mais violência!
O resultado a olhos vivos é isso aí: doze crianças mortas. Não deveria surpreender tanto. Torço para que o espetáculo ao redor do caso não abra a caixa de Pandora, inspirando ações semelhantes no futuro. Desta vez, pelo menos, Wellington sequer deu o gostinho para alguém sair bradando pela “pena de morte contra vagabundo”.
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Textos recomendados pelo autor:
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Alô, alô, Realengo“, por José Ribamar Freire, no Blog do Picica
A Columbine brasileira e o nosso mito da tolerância“, por Raphael Douglas, no Amálgama
Esquizofrenia não é caso de polícia“, do Blog do Rovai
Como fechar os olhos para a hipótese da misoginia“, do Escreva Lola escreva
A tragédia no Rio“, do Descurvo
E se você ficou abalado com o episódio, o excelentemente bem escrito texto antidepressivo de Alex Castro em Dez Anos.

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5 comentários para "Fábrica de Wellingtons"

  1. JORGE VIDAL disse:

    NÃO CENSURE. É FEIO…
    A primeira importante atitude que devemos ter com relação à nossa opinião é que a dos outros tem exatamente o mesmo valor; deve ser respeitada e de forma alguma censurada… Quem censura não tem o direito de protestar contra nada. Não censure o comentário a seguir. Não há erro no meu Email, nem ofensa no comentário.
    O Plano Nacional LGBT em tudo que pretende é plena agressão ao Estado de Direito ou também é nas suas estratégias de paulatinamente desconstruir a heteronormatividade (heterossexualidade) do povo brasileiro, uma flagrante CONSPIRAÇÃO, conforme o confessado no próprio Plano: capítulo 2 ─ Estratégia; no terceiro quadro, item 1. 2. 20 de competência do Ministério da Saúde.
    Para entender tudo isto leia o Blog O QUE É O PLANO NACIONAL LGBT, endereço ─ http://www.direitoshumanosrespeitoejustica.blogspot.com , no qual detalho os principais pontos que ferem de forma compulsória nosso direito de cidadãos.
    Atenciosamente JORGE VIDAL

  2. Antonio disse:

    Só para comunicar que não está compartilhando com o Facebook? Quanto ao texto, é isso aí…Também coloquei um post a respeito, contestando a propagada “índole pacífica” do nosso povo. Agora, que o cara foi um FDP, foi!!

  3. Não se deve desprezar a influência do poder, recentemente comprovado nas revoltas em países árabes, da moderna tecnologia denominada “internet”.
    Por mais perturbado e revoltado que Welington fosse, ou por mais que tenha sofrido bullying no passado, não teria transformado sua rebeldia em obsessão se não houvesse reforços psicológicos constantes, o que provavelmente obteve em relacionamentos suspeitos pelo mundo virtual.
    No cotidiano, grandes problemas são compensados por pequenos prazeres, grandes decepções são contrapostas por pequenas diversões. Só há uma forma de se ficar hipnotizado por um objetivo sinistro: torná-lo o próprio sentido da existência, ignorando quaisquer mecanismos de fuga que se apresentem no dia-a-dia.
    Comprova-se esta obsessão pelos vídeos gravados com meses de antecedência, e pelas cartas que tentam justificar (canhestramente) a atrocidade que seria cometida.
    Muito provavelmente tal obsessão foi construída paulatinamente, (como um recitar de mantra), através da troca de mensagens pela internet com membros de grupos supostamente “terroristas”, cujos estatutos devem incitar a arregimentação de mentes desequilibradas para aceitação de suas degeneradas ideias homicidas.
    Uniu-se, portanto, como se diz no popular, “a fome com a vontade de comer”. Uma mente fraca, desajustada, relativamente isolada em termos sociais, sendo assediada por mensageiros virtuais pregadores de um mal que eles próprios não têm coragem de praticar.
    De certa forma, Wellington foi ato contínuo de um poder revolucionário recentemente suscitado pela rede mundial de computadores. Porém, neste caso, tendo provocado uma tragédia hedionda.

  4. Marcelo disse:

    Irretocável;
    Acrescentaria que o auge da hipocrisia é querer trazer a culpa toda sobre o garoto, como tem feito a mídia, sendo que ele é apenas um sintoma do quanto a nossa sociedade está doente.

  5. silvia disse:

    Colocar Welligton como a representação do mal absoluto é contribuir para mais preconceitos, sem questinonar as inúmeras razões que provocam atos desumanos assim.
    Welligton foi o resultado de uma combinação extrema de tudo que ocorre de pior na sociedade brasileira, como preconceito, a exclusão social, do sistema de saúde precário, das doenças mentais mau-compreendidas e pior ainda tratadas, da violência e indiferença que busca ignorar os problemas dos outros, da falta de diálogo, tolerância, e respeito à diferença.
    Mas desse modo poucos preferem pensar, ninguém quer se sentir responsável pela miséria que existe.

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