Boaventura: depois das "democracias de mercado"

Regime que era opção das elites desde a queda do Muro de Berlin regrediu para uma democracia esvaziada. É um interregno. Virá novo momento, ainda incerto

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O regime que era opção das elites desde a queda do Muro de Berlin regrediu, após 2008, para uma democracia esvaziada. Mas é apenas um interregno. Virá um novo momento, ainda incerto

Por Boaventura de Sousa Santos | Imagem: Paul Robeyrolle, Liquidação (1999)

Estamos num interregno. O mundo que o neoliberalismo criou em 1989 com a queda do Muro de Berlim terminou com a primeira fase da crise financeira (2008-2011) e ainda não se definiu o novo mundo que se lhe vai seguir. O mundo pós-1989 teve duas agendas com um impacto decisivo em todo o mundo. A agenda explícita foi o fim definitivo do socialismo enquanto sistema social, econômico e político liderado pelo Estado. A agenda implícita consistiu no fim de qualquer sistema social, econômico e político liderado pelo Estado.

Esta agenda implícita foi muito mais importante que a explícita, porque o socialismo de Estado estava já agonizante e, desde 1978, procurava reconstruir-se na China enquanto capitalismo de Estado na sequência das reformas promovidas por Deng Xiaoping. O efeito mais direto do fim do socialismo de tipo soviético na esquerda foi o ter desarmado momentaneamente os partidos comunistas, alguns deles há muito já distanciados da experiência soviética. A agenda implícita foi a que verdadeiramente contou; por isso, teve que ocorrer de maneira silenciosa e insidiosa, sem queda de muros. Assistiu-se, depois de 1989, à difusão sem precedentes da ideia da crise da social-democracia, que implicava uma forte intervenção do Estado na concessão de direitos sociais e econômicos. A secundá-la, a ortodoxia neoliberal doutrinava sobre o caráter predador ou, pelo menos, ineficiente do Estado e da regulação estatal.

O desarme da social-democracia foi disfarçado durante algum tempo pela nova articulação das formas de dominação que vigoram no mundo desde o século XVII: capitalismo, colonialismo e patriarcado. As reivindicações sociais passaram a orientar-se para as agendas ditas pós-materiais, os direitos culturais ou de quarta geração. Estas reivindicações eram genuínas e denunciavam modos de opressão e de discriminação repugnantes. Incidiam especificamente em dois eixos da dominação, o colonialismo (racismo, monoculturalismo) e o patriarcado (sexismo e hetero-sexismo).

O modo como as reivindicações foram orientadas fez crer aos agentes políticos que as mobilizaram (movimentos sociais, ONGs, velhos e novos partidos) que podiam levá-las a cabo com êxito sem tocar no terceiro eixo da dominação – o capitalismo. Houve mesmo uma negligência do que se foi chamando política de classe (igualdade, distribuição) em favor das políticas de raça e sexo (reconhecimento da diferença). Essa convicção provou-se fatal no momento em que o regime pós-1989 caiu. A dominação capitalista, reforçada pela legitimidade que criou nestes anos, virou-se facilmente contras as conquistas anti-racistas e anti-sexistas na busca incessante de maior acumulação e exploração. E estas, desprovidas da vontade anti-capitalista ou separadas das lutas anti-capitalistas, sentiram e sentem muitas dificuldades para resistir.

Nestes anos de interregno resulta evidente que a agenda implícita visava dar total prioridade ao princípio do mercado na regulação das sociedades modernas em detrimento do princípio do Estado e da comunidade. No início do século XX, o princípio da comunidade fora secundarizado em favor da rivalidade que então se instalou entre os princípios do Estado e do mercado. A relação entre ambos foi sempre muito tensa e contraditória. A social-democracia e os direitos econômicos e sociais significaram momentos de trégua nos conflitos mais agudos entre os dois princípios. Esses conflitos não eram resultado de meras oposições teóricas. Resultavam das lutas sociais das classes trabalhadoras que procuravam encontrar no Estado o refúgio mínimo contra as desigualdades e os despotismos gerados pelo princípio de mercado. A partir de 1989, o neoliberalismo encontrou o clima político adequado para impor o princípio do mercado, contrapondo a sua lógica à lógica do princípio do Estado, que foi  colocado na defensiva.

A globalização neoliberal, a desregulação, a privatização, os tratados de livre comércio, o papel inflacionado do Banco Mundial e do FMI foram sendo executadas paulatinamente para erodir o princípio do Estado, quer retirando-o da regulação social, quer convertendo esta numa outra forma de regulação mercantil. Para isso, foi necessária uma desvirtuação radical mas silenciosa da democracia. Esta, que no melhor dos casos fora encarregada de gerir as tensões entre o princípio do Estado e o princípio do mercado, passou a ser usada para legitimar a superioridade do princípio do mercado e, no processo, transformar-se ela própria num mercado (corrupção endêmica, lobbies, financiamento de partidos, etc.). O objetivo era que o Estado passasse de Estado capitalista-com-contradições a Estado capitalista-sem-contradições. As contradições passariam a ser exteriorizadas para a sociedade, e as crises sociais a serem resolvidas como questão de polícia e não como questão política.

Vivemos, pois, um período de interregno. Não sei se este interregno gera fenômenos mórbidos como o interregno famosamente analisado por Gramsci. Mas tem certamente assumido características profundamente dissonantes entre si. Nos últimos cinco ou dez anos, a atividade política em diferentes países e regiões do mundo adquiriu facetas e traduziu-se em manifestações surpreendentes ou desconcertantes.

Eis uma seleção possível:

  • o agravamento sem precedentes da desigualdade social e a passagem da riqueza envergonhada para a riqueza ostentada;
  • a intensificação da dominação capitalista (erosão dos direitos sociais), colonialista (intensificação do racismo, xenofobia, islamofobia, anti-semitismo) e patriarcal (sexismo, feminicídio) traduzida no que chamo fascismo social em suas diferentes formas (fascismo do apartheid social, fascismo contratual,  fascismo territorial, fascismo financeiro, fascismo da insegurança);
  • a reemergência do colonialismo interno na Europa com um país dominante, a Alemanha, que se aproveitar da crise financeira para transformar os países do sul numa espécie de protetorado informal, particularmente gritante no caso da Grécia;
  • o golpe judiciário-parlamentar contra a Presidente Dilma Rousseff, um golpe continuado com o processo de impedimento da candidatura de Lula da Silva às eleições presidenciais de 2018;
  • a saída unilateral do Reino Unido da União Europeia;
  • o fim presumível do conflito armado na Colômbia;
  • o colapso ou crise grave do bipartidismo centrista em vários países, da França à Espanha, da Itália à Alemanha;
  • a emergência de partidos de tipo novo a partir de movimentos sociais ou mobilizações anti-política, como o Podemos na Espanha, Cinco Stelle na Itália, AAP na Índia, Alternative für Deutschland na Alemanha; a constituição de um governo de esquerda muito moderado em Portugal com base num entendimento sem precedentes entre diferentes partidos de esquerda;
  • a eleição presidencial de homens de negócios bilionários com fraca ou nula experiência política, apostados em destruir a proteção social que os Estados têm garantido às classes sociais mais vulneráveis, sejam eles Macri na Argentina ou Trump nos EUA;
  • o ressurgimento da extrema-direita na Europa com o seu tradicional nacionalismo de direita, mas surpreendentemente portadora da agenda das políticas sociais que tinham sido abandonadas pela social-democracia, com a ressalva de agora valerem apenas para “nós” e não para “eles” (imigrantes, refugiados);
  • a infiltração de comportamentos fascistizantes em governos democraticamente eleitos, como, por exemplo, na Índia do BJP e do presidente Modi, nas Filipinas de Duterte, nos EUA de Trump, na Polônia de Kaczynski, na Hungria de Orban, na Rússia de Putin, na Turquia de Erdogan, no México de Peña Nieto;
  • a intensificação do terrorismo jihadista que se proclama como islâmico;
  • a maior visibilidade de manifestações de identidade nacional, de povos sem Estado, nacionalismos de direita na Suíça, e na Áustria, nacionalismos com fortes componentes de esquerda na Espanha (Catalunha mas também País Basco, Galiza e Andaluzia) e na Nova Zelândia, e nacionalismos dos povos indígenas das Américas que se recusam a ser encaixados na dicotomia esquerda/direita;
  • a agressividade sem paralelo na gravidade e na impunidade da ocupação da Palestina pelo Estado colonial de Israel;
  • as profundas transformações internas combinadas com estabilidade (pelo menos aparente) em países que durante muito tempo simbolizaram as mais avançadas conquistas das políticas de esquerda, da China ao Vietnã e a Cuba;
  • o colapso por uma combinação de erros próprios e interferência grave do imperialismo norte-americano de governos progressistas que procuraram combinar desenvolvimento capitalista com a melhoria do nível de vida das classes populares, no Brasil, Argentina e Venezuela; o novo rosto e a nova tática do imperialismo norte-americano que, em vez de impor ditaduras por via da CIA e forças militares, promove e financia iniciativas de “democracia-amiga-do mercado” através de organizações não-governamentais ultra-liberais e evangélicas e de desenvolvimento local, protestos com slogans ofensivos para as personalidades, os princípios e as políticas de esquerda, protestos na medida do possível pacíficos, mas que, em situações mais tensas, pode envolver ações violentas que depois, com a cumplicidade das mídias nacionais e internacionais, são atribuídas aos governos hostis, isto é, governos hostis aos interesses norte-americanos.

Este elenco deixa de fora os problemas sociais, econômicos e ecológicos que talvez mais preocupem os democratas em todo o mundo, tal como não menciona a violência familiar, urbana, rural ou a proliferação das guerras não-declaradas, embargos não declarados, o terrorismo e o terrorismo de Estado que estão destruindo povos inteiros (Palestina, Líbia, Síria, Afeganistão, Iêmen) e a convivência pacífica em geral. Neste sentido, este elenco é um elenco de sintomas e não de causas.

Mesmo assim, serve-me para mostrar as características principais do interregno em que nos encontramos: a democracia liberal nunca teve capacidade para se defender dos anti-democratas e fascistas com os mais diversos disfarces; mas hoje o que mais surpreende não é essa incapacidade; são antes os processos de incapacitação movidos por uma força transnacional altamente poderosa e intrinsecamente antidemocrática – o neoliberalismo (capitalismo como civilização de mercado, de concentração e de ostentação da riqueza), cada vez mais geminado com o predomínio do capital financeiro global, a que tenho chamado o “fascismo financeiro”, e acompanhado por um cortejo impressionante de instituições transnacionais, lobistas e meios de comunicação social.

Estes novos (de fato, velhos) inimigos da democracia não querem substitui-la pela ditadura. Em vez disso, buscam descaracterizá-la ao ponto de ela se transformar na reprodutora mais dócil e na voz mais legitimadora dos seus interesses. Mas, como ilustra o elenco de sintomas acima, é um processo com muitas contradições.

O que virá depois deste interregno?

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4 comentários para "Boaventura: depois das "democracias de mercado""

  1. ANTONIO CESAR DE BRITO FERREIRA Doutorando em Direito disse:

    Excelente abordagem Professor Boaventura

  2. O que virá depois meu caro Boaventura dependerá do levante dos povos oprimidos, suas lideranças e uma união ainda não vista dos movimentos de esquerda para o bem comum na busca de igualdade entre pessoas e povos, com respeito aos direitos básicos, na construção de uma nova ordem mundial que priorize a justa distribuição de riquezas, bem social e respeito a mãe terra. Se não isto o caus total, com fome e miséria global de 90% da população mundial subordinada a uma classe dominante e opressora de 1% mais 9% de forças obedientes e radicais!!!

  3. Will i Am disse:

    Mas é que nossa sociedade é uma sociedade barroca da aparência.
    Não importa o que se pensa e o que se faz de verdade. Importa o que aparece aos olhos dos outros. E não importa se esses outros saibam que é tudo jogo de cena hipócrita.
    Basta lembrar da coroação de D. Pedro 2, feita a partir de um golpe, mas cheia de fausto barroco….
    É uma ideia que faz com que determinados grupos sociais sejam atacados pela turba ensandecida.
    O fascismo brasileiro, que eu chamo de elitismo, é a união entre uma burguesia verdadeira de 0,5% da população que é a burguesia da rapina financeira, que usa juros altos para rapinar o povo por meio de uma dívida que é 90% ilegal e a classe média que tem qualificação profissional ou pequenos negócios. O que une esse povo é o ódio ao pobre, visto ou como matável, ou como burro de carga. Usam sempre o discurso da corrupção e do bode expiatório como cortina de fumaça para manter seus privilégios;
    O caso do Brasil não pode ser pensado com ferramentas para se analisar a Europa. Esses caras não são nacionalistas, pelo contrário. Problema deles é questão de ódio aos pobres. Não é como na Alemanha ou Itália que a adesão ao fascismo era feita pela glória de seus povos. Aqui é feito pela glória dos EUA. O problema de brasileiro de classe média, a verdadeira que tem qualificação profissional, é o ódio ao pobre. Sempre o ódio ao pobre. E o medo de ver o pobre se qualificando e brigando pela sua vaga no mercado de trabalho. Pobre aqui é visto como burro de carga e não ser humano. Não há amor algum dessas pessoas pelo povo brasileiro. Só há ódio pelo povo ser miscigenado. Classe média não liga para corrupção, classe média só liga de ver seus símbolos frágeis de status serem apropriados também pela classe baixa.

  4. Will i Am disse:

    No Brasil, as coisas são um pouco mais complexas.
    A principal arma dos conservadores é o chamado “bode expiatório”.
    Bode expiatório, na tradição religiosa, é um objeto, pessoa ou animal que concentra em si todo o pecado ou maldade presente em determinada sociedade.
    Esse objeto é então sacrificado para que tudo o que poderia colocar em perigo a existência de tal sociedade sumisse com ele ou ao menos fosse controlado por um tempo.
    Ele mesmo não precisa ser pecador ou malvado, mas no momento de sua morte, ele passava a encarnar todo o mal da sociedade.
    Jesus é um exemplo, pois, com sua morte, em tese, levou consigo todo o pecado da humanidade.
    Aproveitando-se dessa tradição religiosa, os conservadores vendem a mesma ideia sempre que sentem que os privilégios da elite está ameaçado.
    Hitler usou os judeus, ciganos e comunistas como bode expiatório.
    Os norte americanos sempre se utilizaram da figura do comunista para manter a ordem interna. Mas com o fim da URSS, passou a ser o terrorista (árabe de preferência). Negros, latinos e outras minorias também sempre foram bodes expiatórios na sociedade norte americana.
    No Brasil, o bode expiatório favorito é a figura do corrupto. Como somos um povo miscigenado, não dá para usar minorias raciais. Como não somos ameaçados por terroristas por nossa insignificância política, não dá para usar o terrorista. Então resta o corrupto. Sempre que a classe média alta ou a elite sentem que o povo está ganhando algum tipo de poder, a figura mágica do corrupto é colocada sobre a mesa. Essa figura geralmente vem amalgamada com a figura do comunista destruidor da moral e dos bons costumes.
    A ideia é: basta matar ou destruir o bode expiatório, que vai tudo ficar bem.
    Uma ideia simplória e estúpida, mas usada e abusada pela nossa classe média alta ignorante.
    Segundo a classe média alta udenista, Vargas era corrupto, Jango era corrupto, Juscelino era corrupto, Lula e Dilma os exemplos mais recentes. E não apenas corruptos, mas corruptos num nível muito acima do tolerável. O bode expiatório bananeiro aproveita-se do moralismo hipócrita da nossa sociedade, onde até o final do século XIX havia religião oficial de Estado. Os que bradam contra a corrupção são os mais corruptos.
    E todos os brasileiros sabem que nosso moralismo é hipócrita.

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