“Austeridade”: história de uma fraude teórica

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Como dois economistas conservadores muito influentes omitiram dados e manipularam planilhas, para “demonstrar” que os Estados devem cortar gastos sociais

Por Alvaro Bianchi

Há anos não se via economistas heterodoxos rindo tão desbragadamente. O motivo é a descoberta de uma falha em uma planilha Excel. Tudo começou quando Thomas Herndon um estudante de pós graduação da University of Massachusetts-Amherst, resolveu apresentar um trabalho de final de semestre criticando o estudo de dois influentes economistas de Harvard, Carmen M. Reinhart and Kenneth S. Rogoff, publicado em 2010 na prestigiada e centenária The American Economic Review. A pesquisa de Reinhart e Rogoff estabelecia uma correlação negativa entre aumento do débito público e o crescimento econômico e conspirava contra o aumento dos investimentos estatais. O jovem Herndon, de 28 anos, não estava satisfeito com os resultados da pesquisa e resolveu trabalhar com os dados dos economistas de Harvard, replicando o estudo. Seus professores consideraram sua proposta típica da arrogância juvenil mas não apresentaram obstáculos, pensando que ao menos ele poderia treinar suas habilidades na tabulação e apresentação de dados econômicos.

Com a carta branca de seus mestres, Hendron arregaçou as mangas e começou o trabalho com os dados que os próprios Reinhart e Rogoff lhe forneceram. Não precisou de muito trabalho para detectar erros na planilha de cálculos. Seus olhos não acreditaram no que viram, chamou então sua companheira e lhe perguntou: “Eu estou vendo errado?”. “Acho que não, Thomas”, foi a resposta que ouviu. O estudante mostrou seus resultados para Robert Pollin, seu professor, o qual imaginou que, como costuma acontecer, o estudante estava errado: “Então exigimos mais dele, e exigimos mais e exigimos mais, e depois de cerca de um mês exigindo eu disse ‘Dane-se, ele está certo!’” (KRADY, 2013.)

A ofensiva ortodoxa

Reinhart e Rogoff são dois expoentes da linha dura ortodoxa, a primeira foi citada 16.647 em artigos acadêmicos desde 2008 e o segundo recebeu 22.910 citações no mesmo período. Ambos já foram assessores do Fundo Monetário Internacional e de organismos governamentais. São respeitados economistas, no topo da carreira, e encontram-se há anos em uma cruzada contra os altos índices de endividamento público nos Estados Unidos e na Europa.

O trabalho de Reinhart e Rogoff impressiona à primeira vista. Reunindo dados de 44 países referentes a um período de cerca de 200 anos a pesquisa incorporou mais de 3.700 observações anuais. Informações econômicas de países de diferentes regimes políticos, graus de desenvolvimento, participação no comércio internacional, instituições, taxas de câmbio e formação histórica foram colocadas lado a lado de modo a permitir um amplo estudo comparativo sobre as relações entre débito público, inflação e crescimento econômico.

Os estudos publicados por esses professores (2010a e 2010b) trabalharam com essa base de dados, tabulando informações sobre um número menor de países: 20 economias avançadas para o período de 1946-2009 e 20 economias emergentes para o período 1970-2009 (cf. 2010b). Os países foram, então, classificados, ano a ano, em uma das quatro categorias de endividamento público previamente estabelecidas por esses autores: menos de 30% do GNP, entre 30% e 60%, entre 60% e 90% e mais de 90%. Os principais resultados da pesquisa podem ser assim resumidos:

1) “enquanto o nexo entre crescimento e débito parece relativamente fraco em níveis ‘normais’ de débito, a mediana da taxa de crescimento para países com débito superior a 90% do PIB é 1% menor do que nos demais.” (2010, p. 573).

2) “a relação entre débito público e crescimento é claramente similar entre mercados emergentes e economias avançadas.” (Idem.)

3) “Não encontramos relação sistemática entre níveis elevados de débito e inflação para o grupo das economias avançadas (entretanto alguns países individuais são exceção, como os Estados Unidos). Em contraste, em mercados emergentes, níveis elevados de débito público coincidem com inflação eleveda.” (Idem.)

Deve-se destacar, entretanto, que Reinhart e Rogoff não se detiveram na análise da direção da relação entre débito e PIB, assumindo que o débito é a variável independente, ou seja, o PIB desaceleraria ou decresceria porque o débito aumenta e não o contrário. Desse modo, simplesmente ignoraram a possibilidade, nesse estudo, de que o débito aumentasse como consequência da desaceleração ou do crescimento negativo do GNP. Os dados nos quais essas conclusões se encontram baseadas podem ser vistos de modo esquemático nas Tabelas 1 e 2 (REINHART; ROGOFF, 2010b, p. 25):

Tabela 1 – Crescimento do PIB e nível de débito

(média da variação anual dos países selecionados)

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Tabela 2 – Inflação e nível de débito

(média da variação anual dos países selecionados)

130503-tabela2

Percebe-se que, de acordo com esses dados a relação entre dívida pública e crescimento econômico não se altera substancialmente nos países enquanto a primeira estiver entre 30% e 90% do PIB. Mas o crescimento econômico cai abruptamente, e nos países avançados se torna -0,1%, quando o deficit público ultrapassa o nível de 90% do GDP. As conclusões apresentadas pelos economistas de Harvard desaconselhariam fortemente o aumento do endividamento como parte de uma política de combate à crise. Assim que ultrapassasse a marca de 90% do GDP a dívida se tornaria uma barreira ao crescimento e não um estímulo.

Por essa razão, segundo Reinhart e Rogoff os governos teriam agido de um modo que impedira o combate eficaz a crise. O débito público cresceu significativamente desde 2007 na amostra dos países utilizadas na pesquisa. Cinco países que vivenciaram “crises financeiras sistêmicas” após 2007 – Finlândia, Irlanda, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos — aumentaram entre 2007 e 2009 os níveis médios de endividamento em 75%, um índice que se aproxima assustadoramente daquele que teve lugar na crise do pós-guerra, quando o débito cresceu um total de 86% nos três anos subsequentes (ver REINHART; ROGOFF, 2009).

Ao contrário do recomendado pelo senso comum, a pesquisa de Reinhart e Rogoff aponta para a conclusão de que o estímulo ao investimento público e o consequente endividamento como parte de políticas anticíclicas conspirariam contra os propósitos desejados. O artigo dos professores de Harvard foi amplamente utilizados pelos defensores da austeridade econômica e seus argumentos influenciaram, nos Estados Unidos, o comitê eleitoral do republicano Mitt Romney nas últimas eleições presidenciais. O debate continuou depois do pleito. No início de 2013, o deputado republicano Paul Ryan, presidente do the House Budget Committee e candidato a vice-presidente dos Estados Unidos na última eleição, apoiou-se fortemente no estudo de Rogoff e Reinhart para advogar cortes nos investimentos sociais. Segundo o deputado:

“Mesmo que a dívida elevada não cause uma crise, a nação poderá atravessar um longo e penoso período de declínio econômico. Um estudo muito conhecido, concluído pelos economistas Ken Rogoff e Carmen Reinhart confirma esta conclusão do senso comum. O estudo encontrou evidências empíricas conclusivas de que a dívida bruta (ou seja, toda a dívida que o governo tem, inclusive a dívida em fundos de investimento do governo) superior a 90% da economia tem um efeito negativo significativo sobre o crescimento econômico. Esta é uma má notícia para os Estados Unidos, onde a dívida bruta superou 100% do PIB no ano passado. (…) Essencialmente, o estudo confirmou que as dívidas maciças, do tipo que nossa nação está no caminho de acumular, estão associadas com ‘estagflação’ – uma mistura tóxica de estagnação econômica e o aumento da inflação.” (RYAN, 2013, p. 78)

O artigo de Rogoff e Reinhart tornou-se, também, referência incontornável para os economistas do Fundo Monetário Internacional (p. ex. KUMAR; WOO, 2010) e da Comissão Econômica Europeia (p. ex. BAUM; CHECHERITA-WESTPHAL; ROTHER, 2012), os quais tem defendido firmemente o corte de investimentos sociais para conter a crise econômica. Enfim, tratava-se de mais um caso de sucesso acadêmico da ortodoxia econômica e seus autores colocavam-se na fila para um futuro Prêmio Nobel de Economia. Isso até Herndon começar sua pesquisa…

O contra-ataque heterodoxo

A primeira coisa que Herndon percebeu é que os dados não eram tão consistentes quanto os professores de Harvard faziam acreditar. Havia importantes lacunas nos dados de alguns países, o que comprometia alguns dos resultados obtidos. Os dados referentes aos Estados Unidos remontavam a 1946, mas para alguns países estavam disponíveis apenas a partir de 1957 e para a Itália somente depois de 1980. Havia, também, alguns saltos e inconsistências nos dados apresentados. Não havia dados da relação débito público/GNP para a França durante o período de 1973 a 1978. E alguns dados simplesmente não eram críveis, como o crescimento do GNP de Portugal entre 1999 e 2000 – assombrosos 25% (HERNDON; ASH; POLLIN, 2013, p. 5-6).

Apresar dos dados não serem plenamente confiáveis, Herndon aceitou-os como eram apresentados e não procurou corrigi-los. Mas os problemas continuavam. O jovem estudante também percebeu que alguns países simplesmente desapareciam das contas em alguns anos. Era o caso da Austrália (1946-1950), Nova Zelândia (1946-1949) e Canadá (1946-1950). A exclusão da Nova Zelândia afetava particularmente os resultados, uma vez que nesses anos ela combinou um deficit público superior a 90% com altas taxas de crescimento econômico, o que contrariava o argumento de Reinhart e Rogoff.

Hendron continuou, então, sua pesquisa, mas sua surpresa só se tornou maior. Ele descobriu que um erro primário de código na planilha utilizada pelos economistas simplesmente excluía os cinco primeiros países em ordem alfabética do cálculo. Ficaram assim de fora das contas Austrália, Áustria, Bélgica, Canada e Dinamarca. Essa exclusão fazia com que o GNP dos países com débito público superior a 90% fosse 0,3 pontos percentuais a mais do que nas contas deReinhart e Rogoff (idem, p. 7).

Por último, Hendron revelou um esdrúxulo procedimento metodológico que atribuía o mesmo peso nos cálculos de Reinhart e Rogoff a coisas muito diferentes. Em suas contas os economistas de Harvard tomavam o GNP de cada país-ano e o alocavam em uma das quatro categorias. A seguir tomavam todas as aparições de um país em uma categoria e faziam uma média aritmética simples do crescimento do GNP desse país nessa categoria. Assim, por exemplo, a Inglaterra aparecia 19 vezes na categoria de débito superior a 90%. Os autores, então tomaram os 19 valores do GNP, estabeleceram a média e obtiveram o resultado de 2,4%. O problema está em que o número de aparições de cada país em uma categoria variava muito. Os Estados Unidos apareciam somente quatro vezes na categoria de débito superior a 90% e nesses anos a média de crescimento foi -2,4%. Ou seja, o número de anos nos quais um país entrava em uma categoria não era um fator de ponderação.

O impressionante é que Reinhart e Rogoff não justificaram sua decisão de estabelecer a média por país e não por país-ano, como seria mais adequado. Mas as distorções provocadas por esse procedimento eram enormes. Por exemplo, a já citada Inglaterra teve, como visto dívidas grandes, superiores a 90% do GNP durante um longo período de tempo, mas conseguiu um crescimento médio de 2,4. A Grécia teve um elevado deficit, superior a 90%, durante o mesmo número de anos – 19 – e também obteve neles um crescimento médio positivo – 2,9%. Por outro lado, a Nova Zelândia teve em apenas um único ano um deficit superior a 90% e nele amargou uma queda de -7,6% do GNP. Como os anos não foram ponderados, nas contas de Reinhart e Rogoff um ano da Nova Zelândia teve um impacto maior nos resultados obtidos que a soma de 19 anos da Inglaterra com os 19 anos da Grécia!

Identificados os erros, Hendron pôde refazer os cálculos. Estabeleceu, primeiro uma metodologia que ponderasse o número de anos que cada país comparecia em uma dada categoria, corrigiu o erro de código da planilha e as exclusões de países e anos, bem como alguns erros de digitação de dados que conseguiu detectar. Em nenhum momento Hendron substituiu dados ou acrescentou outros que não estivessem previamente na base de dados de Reinhart e Rogoff. Tratou-se, assim, de uma replicação rigorosa da pesquisa corrigindo os sérios problemas metodológicos que ela apresentava. Os resultados obtidos podem ser apreciados na Tabela 3.

Tabela 3 – Crescimento do PIB e nível de débito (1946-2009)

(variação anual dos países selecionados)

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Como visto, em vez de uma queda de -0,1% no GNP, os países com um endividamento superior a 90% do GNP tiveram um crescimento médio de 2,2%. Trata-se de um crescimento menor do que os países menos endividados, mas, ainda assim, uma elevação do produto. Os dados não poderiam, da forma apresentada por Herndon ser utilizados pelos defensores da austeridade econômica como até o momento foram aqueles expostos por Reinhart e Rogoff.

Quanta precarização?

Embora em 2012 os Estados Unidos tenham dado alguns sinais de recuperação econômica, a crise econômica está muito longe de ser superada. A resposta que tem sido dada combina aumento do deficit público, utilizado para salvar bancos e grande corporações, com cortes em investimentos sociais. O governo Barack Obama, o mesmo que destinou U$ 400 bilhões na operação de resgate do Fannie Mae e do Freddie Mac e destinou outros U$ 968 bilhões para salvar as grandes corproações por meio do American Recovery and Reinvestment Act of 2009, propôs cortes substanciais nos principais programas de assistência aos trabalhadores o Social Security e o Medicare.

A precarização do trabalho aumentou consideravelmente nos últimos anos, sem que as inciativas governamentais, voltadas a proteger as corporações em vez dos trabalhadores, tenham minimizado os efeitos perversos da crise sobre a vida dos mais pobres. Generalizaram-se os casos de lay-off, como na New York State Thruway Authority onde 234 trabalhadores perderam seus empregos em março. Em 2012, segundo o Bureau of Labour Satistics, houve 6.051 casos de layoffs que resultaram na separação de 1.152.258 pessoas de seus postos de trabalho, um número superior ao do ano anterior. Também se tornaram cada vez mais frequentes os casos dewage theft – o subpagamento ou não-pagamento de salários devido – principalmente no setor de restaurantes e na construção civil.

A pergunta que não quer calar é aquela feita por Dean Baker, do Center for Economic and Policy Reasearch: “Quanto desemprego foi causado pelo erro de aritmética de Reinhart e Rogoff?”

Alvaro Bianchi é cientista político e co-editor do Blog Convergência

Referências bibliográficas

BAUM, Anja, CHECHERITA-WESTPHAL, Cristina D.; ROTHER, Philipp. Debt and Growth: New Evidence for the Euro Area. ECB Working Paper, n. 1450, Jun. 28, 2012. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2094998

BAKER, Dean. How Much Unemployment Was Caused by Reinhart and Rogoff’s Arithmetic Mistake? Beat the Press, Apr. 16, 2013. Disponível em: http://www.cepr.net/index.php/blogs/beat-the-press/how-much-unemployment-was-caused-by-reinhart-and-rogoffs-arithmetic-mistake

HERNDON, Thomas; ASH, Michael; POLLIN, Robert Does High Public Debt Consistently Stie Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff. Working Paper Series/Political Economy Research Institute/University of Massachussets-Amherst, n. 322, Apr. 2013.

KRUDY, Edward. How a student took on eminent economists on debt issue — and won. Reuters, New York, Apr 18, 2013. Disponível em: http://in.reuters.com/article/2013/04/18/global-economy-debt-herndon-idINDEE93H01120130418

KUMAR, Manmohan; WOO, Jaejoon. Public Debt and Growth. IMF Working Papers, n. 10/174, p. 1-47, Jul. 2010. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1653188

REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S.. The Aftermath of Financial Crises. The American Economic Review, v. 99, n. 2, p. 466-472, May 2009.

REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S.. Growth in a Time of Debt. The American Economic Review , v. 100, n. 2, p. 573-578, May 2010a.

REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S.. Growth in a Time of Debt. Working Paper National Bureau of Economic Research, n. 15639, 2010b.

RYAN, Paul. (2013). The Path to Prosperity: A Blueprint for American Renewal. Fiscal Year 2013 Budget Resolution. Washington D.C. House Budget Committee: 2013.

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4 comentários para "“Austeridade”: história de uma fraude teórica"

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