Até quando esqueceremos Karl Marx?

É cada vez mais óbvio: só políticas decididas e intensas de redistribuição de riqueza permitirão enfrentar a crise econômica global, que se arrasta há oito anos

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É cada vez mais óbvio: só políticas decididas e intensas de redistribuição de riqueza — portanto, opostas às atuais —  permitirão enfrentar a crise econômica global, que se arrasta há oito anos

Por Vicenç Navarro | Tradução: Inês Castilho

Em consequência do enorme domínio que as forças conservadoras têm nos maiores meios de difusão e comunicação, inclusive acadêmicos, na Espanha, o grau de desconhecimento das diversas teorias econômicas derivadas dos escritos de Karl Marx nesses meios é esmagador. Por exemplo, se alguém sugere que para sair da Grande Recessão é necessário estimular a demanda, imediatamente penduram-lhe uma etiqueta de keynesiano, neo-keynesiano ou “o que seja” keynesiano. Na verdade, essa medida pertence não tanto a Keynes, mas às teorias de Michal Kalecki, o grande pensador polaco, claramente enraizado na tradição marxista que, segundo o economista keynesiano mais conhecido hoje no mundo, Paul Krugman, é o pensador que melhor analisou e prognosticou o capitalismo. Seu trabalhos servem melhor para entender não só a Grande Depressão como também a Grande Recessão iniciada em 2008. Para Joan Robinson, professora de Economia na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e discípula predileta de Keynes, este conhecia e foi em grande medida influenciado pelos trabalhos de Kalecki.

Contudo, como Keynes é mais tolerado que Marx no mundo universitário, muitos acadêmicos assustam-se de ser vistos como marxistas e preferem disfarçar-se sob a qualificação de keynesianos. O disfarce é uma forma de luta pela sobrevivência em ambientes tão profundamente direitistas, como ocorre na Espanha (inclusive Catalunha), onde quarenta anos de ditadura fascista e outros tantos de democracia supervisionada pelos poderes de sempre deixaram sua marca. Convido o leitor que pensa que exagero para a reflexão seguinte.

Suponha que eu, numa entrevista à TV (que é mais que improvável que ocorra, nos meios altamente controlados que nos rodeiam), dissesse que “a luta de classes, com a vitória da classe capitalista sobre a classe trabalhadora, é essencial para entender a situação social e econômica na Espanha e na Catalunha”. É mais que provável que o entrevistador e o telespectador me olhassem com ar de incredulidade, pensando que o que eu estaria dizendo era tão antiquado que seria doloroso que estivesse assim mesmo afirmando tais sandices. Na linguagem do establishment muitas vezes confunde-se antigo com antiquado, sem dar-se conta de que um princípio ou uma ideia podem ser muito antigos mas não necessariamente antiquados. A lei da gravidade é muito, mas muito antiga, e sem dúvida não é antiquada. Se não acredita nela, pule de um quarto andar e veja o que acontece.

A luta de classes existe

Pois bem, a existência de classes é um princípio muito antigo em todas as tradições analíticas sociológicas. Em todas, repito. E o mesmo quanto ao conflito de classes. Todos — repito: todos — os maiores pensadores que analisaram a estrutura social de nossas sociedades – de Weber a Marx – falam de luta de classes. A única diferença entre Weber e Marx é que, enquanto que em Weber o conflito entre classes é conjuntural, em Marx, ao contrário, é estrutural e intrínseco à existência do capitalismo. Em outras palavras, enquanto Weber fala do domínio de uma classe sobre por outra, Marx fala de exploração. Um agente (seja uma classe, uma raça, um gênero ou uma nação) explora um outro quando vive melhor às custas de que o outro viva pior. É um desafio negar que existam enormes explorações nas sociedades em que vivemos. Mas afirmar que há luta de classes não significa que alguém seja ou deixe de ser marxista. Todas as tradições sociológicas sustentam sua existência.

As teorias de Kalecki

Michal Kalecki indicou que, conforme sustentara Marx, a própria dinâmica do conflito Capital-Trabalho leva a situações como a que produziu a Grande Depressão. A vitória do capital leva a uma redução dos rendimentos do trabalho, o que cria graves problemas de demanda. Não sou muito favorável à cultura talmúdica de recorrer a citações dos grandes textos, mas me vejo obrigado a fazê-lo neste momento. Marx escreveu o seguinte n’O Capital: “Os trabalhadores são importantes para os mercados como compradores de bens e serviços. Contudo, com a dinâmica do capitalismo, os salários – o preço de um trabalho – caiam cada vez mais. Por este motivo, cria-se um problema de demanda dos bens e serviços produzidos pelo sistema capitalista. Surge um problema não só na produção como na realização dos bens e serviços. E este é o problema fundamental na dinâmica capitalista que leva ao empobrecimento da população, enquanto impede a produção e sua realização.” Claro como água. Este não é Keynes, é Karl Marx. Daí a necessidade de transcender o capitalismo estabelecendo uma dinâmica oposta, na qual a produção responda a uma lógica distinta, na verdade oposta, encaminhada para satisfazer as necessidades da população, determinadas não pelo mercado e pela acumulação do capital, mas pela vontade política dos trabalhadores.

Daí derivam vários princípios. Um deles, reverter as políticas derivadas do domínio do capital (tema sobre o qual Keynes nada fala), aumentando os salários ao invés de reduzi-los, a fim de criar um aumento da demanda (do qual sim, Keynes fala). Isso se faz por meio do aumento das rendas do trabalho, via crescimento dos salários ou do gasto público social, que inclui o Estado de bem-estar social e a proteção que Kalecki define como o salário social.

Observando os dados, percebe-se claramente que hoje as políticas neoliberais realizadas para o benefício do capital têm sido responsáveis pelo fato de que, desde os anos 1980, as rendas do capital tenham aumentado às custas da redução das rendas do trabalho (ver meu artigo “Capital-Trabalho: a origem da crise atual” no Le Monde Diplomatique, edição espanhola, julho de 2013). Criou-se um grave problema de demanda, que demorou a expressar-se em forma de crise devido à enorme dívida contraída pela classe trabalhadora e outros setores das classes populares (e das pequenas e médias empresas). Esse endividamento criou a grande expansão do capital financeiro (os bancos), os quais investiram em atividades especulativas, pois seus investimentos financeiros nas áreas da economia produtiva (onde se produzem os bens e serviços de consumo) eram de baixa rentabilidade, precisamente em consequência da escassa demanda. Os investimentos especulativos criaram as bolhas que, ao estourar, produziram a crise atual, conhecida como Grande Recessão. Essa é a evidência de que o que vem ocorrendo (ver meu livro Ataque a la democracia y al bienestar. Crítica al pensamiento económico dominante, Anagrama, 2015)

Daí que a saída da grande crise em que ainda estamos imersos passe por uma reversão de tais políticas, ampliando os rendimentos do trabalho às custas das rendas do capital. Esta é a grande contribuição de Kalecki, que mostra não só o que está acontecendo, como também por onde as forças progressistas deveriam orientar suas propostas de saída desta crise. Elas requerem uma grande mudança nas correlações de força Capital-Trabalho em cada país. Se não se fala muito disso, é porque as forças conservadoras dominam o mundo do pensamento econômico e não permitem a exposição de visões alternativas. E assim estamos, indo de mal a pior. Os últimos dados econômicos são os piores que temos visto ultimamente.

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4 comentários para "Até quando esqueceremos Karl Marx?"

  1. Hiago Lopes disse:

    Marx não é Jesus pra ser lembrado e citado em todo lugar depois de 2000 anos no entanto suas teorias falhas na aplicação práticas se tornaram vencidas pela liberação econômica da década de 80.
    Dito isto, o maior papel de Marx continua sendo na sociologia onde algum resto do pensamento Marxista continua de pé.

  2. Luiz Cláudio Fonseca disse:

    Contudo, o sistema (educacional) ensina ou induz? Induz a representação da totalidade pela diferença, produzindo a alternativa entre o corte epistemológico e a secularização do fetichismo exercido sobre o dinheiro. Para os temperamentos monásticos, a lógica matemática produziu um vínculo recorrente e direto entre o axioma da escolha e a maior abstração. Não se precisando falar em “n” ordens, abstrai-se o contexto (das alteridades, por exemplo).

  3. josé mário ferraz disse:

    Tudo que se escreveu e falou até hoje sobre economia pode ser resumido à parte selvagem que ainda habita o ser humano em sua estultice de buscar paz no dinheiro ou na religião. Ela está em cada ser, mas o problema é que o sistema educacional ensina o contrário. Aí estão dois velhos em cadeiras de roda brincando com a tocha como prova de nada terem aprendido em suas vidas senão ganhar dinheiro.

  4. Luiz Cláudio Fonseca disse:

    Para Marx nascemos pelados, para Keynes, nascemos endividados? Penso que sem o princípio racional da finalidade, a epistemologia não tem como caracterizar um sujeito. Logo, “darwinianamente”, preservar o quê? Que tipo ontológico?

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